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Quando era pequeno, ir à barbearia do bairro era um ritual da minha masculinidade. Nem sempre voluntário, mas periodicamente inevitável, quando a juvenil guedelha hirsuta o exigia. Ao princípio ia com a minha mãe, que me entregava aos cirúrgicos cuidados do barbeiro e logo saía apressada, talvez pouco à-vontade, talvez para fazer outras coisas úteis.
Percebo perfeitamente, pois eu também não me sentia bem no território feminino, quando era forçado a acompanhar a minha avó ao cabeleireiro Brito & Brito, na Avenida da Liberdade. Eram momentos de opressão sufocante, com a ideia clara de ser um intruso naquele ambiente de laca e verniz. Aqueles estranhos capacetes espaciais, com circunspectas senhoras debaixo, de dedos em riste, pintados de fresco, e todos aqueles rolos, papelotes e turbantes nas cabeças simplesmente intimidavam-me, deixando-me estarrecido.
O que me lembro do meu barbeiro ali na Rua Almeida e Sousa em Campo de Ourique, era das suas mãos lavadas e relógio dourado no pulso. Sempre de impecável bata branca e de conversa fácil, com os seus dedos duros e frios a endireitarem firmemente a minha cabeça fugidia. Lembro-me das pinceladas de sabão morno e do raspar da navalha afiada na nuca e nas patilhas inexistentes. Era parte dos procedimentos. Lembro-me do fatal calendário de “garagem”, com uma loira bem curvada, do horário e dos diplomas emoldurados. Também sobressaíam, ao lado dos grandes espelhos, umas fotografias a preto-e-branco de garbosas e antiquadas cabeleiras, bem penteadas com Bel Hair ou Restaurador Olex. Fascinavam-me também os pesados cadeirões em ferro pintado, onde me sentava soerguido num caixote “adaptador” para as crianças pequenas. E do estofo de cabedal redondo, que com duas espanadelas se virava do avesso, para assento do cliente seguinte.
Naquele pequeno espaço, os homens comentavam as banalidades da política e do futebol ao som do Rádio Clube, com as tesouras sempre a cortar, a cortar, em golpes ritmados, tchic, tchic, tchic, tchic. Depois, vinha a pergunta redentora: “O cabelinho é para molhar?” Finalmente o sacrifício acabava, era tempo de voltar para as brincadeiras, para casa ou para a praceta, com os cabelos caídos a picar nas costas...
Um dia destes, aburguesado e imprudente com as pressas, descobri perto do escritório um moderníssimo cabeleireiro de homens, cheio de paninhos quentes e inauditas mordomias. Surpreendi-me logo com o pretensioso recepcionista, de modos efeminados, casaco fantasia e gravata Disney, que confirmava a marcação. Sentado na sala de espera, procurei em vão literatura apropriada para me entreter. Só descobri brochuras de produtos capilares milagrosos. Logo uma menina de rabo bamboleante me perguntou se queria arranjar as unhas... Eu, arranjar as unhas?!? Notei as conversas dum cliente com a manicura, talvez um bem sucedido gestor de import-export, que me soou excessivamente íntima: o homem emitia confiantes e bombásticas opiniões sobre política e finanças “de cordel”. Quando, de cabelos lavados, cheguei às mãos da decotada cabeleireira, balbuciei que não queria modernices, o que a deixou visivelmente contrafeita. Uma jovem estagiária veio oferecer uma massagem capilar... e um café. No final, paguei 25 €. Nunca me saiu tão cara uma “bica”.
Duas semanas depois, quando o cabelo mal cortado não assentava mais, decidi visitar o velho e fiel barbeiro aqui de São João do Estoril. Dispus-me a perder uma manhã de sábado a ler a imprensa popular e a cortar o cabelo como deve ser. Ouvindo o Jogo da Mala e o Bola Branca em ondas médias, sem paninhos quentes e embaraçosas mordomias. Um conservador é um conservador.
Texto reeditado
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