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Um emblema da liberdade

por Pedro Correia, em 11.12.08

 

No dia em que Soljenitsine (1918-2008) faria 90 anos

 

Alexandr Issaévitch Soljenitsine, falecido a 3 de Agosto, foi um dos grandes escritores políticos do século XX - ao nível de um George Orwell e de um Arthur Koestler. Basta reparar que criou um substantivo comum: gulag. Palavra que deriva de um dos mais sinistros acrónimos de todos os tempos: Glavnoie Upravlenie Laguerei. O nome da direcção-geral que estendia os seus tentáculos por todo o território soviético, transformando o maior país do globo num gigantesco campo de concentração. Antes dele, existia o medo - nada mais do que o medo cego. Depois dele, o mundo abriu os olhos: estava ali, plasmada naquelas mil páginas documentais, a autópsia de um dos regimes mais criminosos da História.

"Soljenitsine não considerava a literatura um assunto privado, uma diversão, um exercício literário ou uma forma de se sentir realizado, mas algo com um sentido muito mais profundo. Melhor que ninguém, ele foi um dos que no século XX confirmaram a tradição de que um escritor na Rússia é mais que um escritor. Ele planeou - e cumpriu - a missão de devolver a memória à Rússia." Palavras de Ludmila Saráskina, talvez a sua melhor biógrafa, numa das páginas do obituário que lhe dedicou há quatro meses o diário El País.

Foi "um dos últimos escritores heróicos" - como lhe chamou, no mesmo jornal, José María Guelbenzu. Seguindo uma notável linhagem, de Tolstoi a Pasternak, Soljenitsine "estava convencido de que a sua missão na Terra era deixar testemunho do horror" que afectou todas as vítimas do estalinismo, esse sistema concentracionário que esmagava o homem enquanto dizia libertá-lo, pervertendo o significado de todas as palavras, como Orwell tão bem nos ensinou.

 

Mas podemos também retirar o rótulo "político" a Soljenitsine e continuamos com um grande romancista. Foi ele o melhor cronista, em admiráveis páginas de ficção, dos anos de chumbo do totalitarismo soviético - o dos campos de concentração, o do quotidiano cinzento e desesperado dos presídios hospitalares, o dos horizontes sem esperança de uma revolução que tudo prometeu e a todos traiu. Foi ainda o criador de uma vasta galeria de personagens literárias que jamais nos desaparecem da memória. Ivan Denisovich Shukhov, encarcerado por um crime que não cometeu, alguém que vegeta no limiar da sobrevivência no campo de internamento onde deixou de ter um nome para passar a ser um número: acompanhamo-lo em Um Dia na Vida de Ivan Denisovich (1962) - "um dia vulgar, sem sombras, um dia quase feliz". Matriona Vasilevna, a camponesa idosa que "era como o justo sem o qual, como diz o provérbio, não existe a aldeia. Nem a cidade. Nem toda a nossa terra": travamos conhecimento com ela em A Casa de Matriona (1963). Oleg Filimonovitch, protagonista dessa imensa parábola do sistema soviético que é O Pavilhão dos Cancerosos (1968): "um homem solitário pode dormir sobre tábuas ou no chão, enquanto o peito lhe albergar fé ou ambição."

Exilado no Casaquistão com Estaline, expulso da Rússia durante o consulado de Brejnev, desapossado da nacionalidade, regressou já na era democrática, com Ieltsine: as barbas e o porte de profeta ajudaram a compor-lhe a iniludível imagem de ícone cultural. Foi um dos raros galardoados com o Nobel da Literatura (1970) a merecer tal distinção na segunda metade do século XX - "pela força moral com quem prosseguiu a tradição da literatura russa", segundo justificou a Academia de Estocolmo.

 

Mas não era só um homem de letras: foi também um homem de acção. Ofereceu-se para combater os nazis na II Guerra Mundial, ascendeu à patente de capitão, foi duas vezes condecorado. Em 1945, uma carta escrita a um amigo, interceptada pela censura militar, traçou-lhe o destino: nela fazia uma crítica jocosa aos bigodes de Estaline que lhe valeu 11 anos de cativeiro.

Num fabuloso livro de memórias, O Carvalho e o Bezerro (1975), Soljenitsine recorda o momento em que foi detido e transportado por dois agentes à sede da sinistra Lubianka, em Moscovo: na estação de metro de Belaruskaya, esteve para gritar, pedindo socorro. Mas conteve-se: "Pressentia vagamente que um dia poderia gritar para 200 milhões de pessoas."

Assim fez. Como sublinhou Raúl Rivero, "desafiou um império que parecia eterno, convertendo-se num emblema da liberdade".


13 comentários

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De PDuarte a 11.12.2008 às 00:27

muito bom, Pedro.
realmente muito bom. falta aqui a referência ao único livro que li dele e que o tornou internacionalmente conhecido.
um post realmente quase perfeito e escolhido cirurgicamente dez anos depois.
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De Pedro Correia a 11.12.2008 às 11:02

Obrigado, meu caro.
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De mike a 11.12.2008 às 01:08

Pedro, há homens que merecem, no mínimo, o respeito de todos, para não falar também em admiração. Homenagem soberba esta sua.
Abraço.
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De Pedro Correia a 11.12.2008 às 11:03

Um abraço, Mike. Obrigado pelas suas palavras.
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De J.C. a 11.12.2008 às 01:23

Um belo fôlego de justiça. Não peca. Se pecasse seria por defeito. Mas não peca.
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De Pedro Correia a 11.12.2008 às 11:03

Pois não, J. C.
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De João André a 11.12.2008 às 08:44

Um aplauso por não cair na asneira de escrever o nome de Soljenitsine à inglesa (Solzhenitsyn). Mas, se me permite Pedro, uma pequena correcção ao restante nome (do meu ponto de vista), para que a passagem do cirílico Алекса́ндр Иса́евич seja feita mais foneticamente, penso que deveria vir como Alexandr Issaévitch. Pouco importante no caso em concreto, apenas uma observação.
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De Pedro Correia a 11.12.2008 às 11:06

Também detesto as transliterações "à inglesa" de outros alfabetos, como o cirílico, ou de línguas não-alfabéticas, como o árabe. Neste caso devemos adaptar o fonema à nossa grafia e não à dos americanos. Tem razão nessa observação, que levarei em devida nota, João André.
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De Anónimo a 11.12.2008 às 09:57

O camarada Bernardino assina, decerto, por baixo.
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De Fonte próxima a 11.12.2008 às 10:19

Gosto tanto de te ler!
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De Pedro Correia a 11.12.2008 às 11:06

Obrigado, Fonte Próxima.
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De Odete a 11.12.2008 às 10:52

Palavras que odeio: Soljenitsine.
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De J.C. a 11.12.2008 às 12:23

Está no seu direito. No caso, é um defeito de certas Odetes...

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