por Corta-fitas, em 30.11.07
Pouco depois de Liduvina ter saído, entrou o cão.
Vem cá, Orfeu – disse o dono – vem cá! Pobrezito, que já tens poucos dias para viveres comigo! Ela não te quer lá em casa. Mas aonde te vou largar? que vou fazer de ti? que serás tu sem mim? És capaz de morrer, eu sei! Só um cão é capaz de morrer quando não vê o seu dono. E eu fui mais que o teu dono, fui o teu pai, o teu deus! Ela não te quer lá em casa, afasta-te de junto de mim! Porque tu és o símbolo da fidelidade, estorvarás lá em casa? Quem sabe!... Acaso um cão surpreende os mais secretos pensamentos das pessoas com quem vive e embora se cale... Mas eu tenho de me casar, não tenho outro remédio senão casar-me... De contrário, sabes, nunca mais deixo de sonhar! E tenho de despertar.
Mas porque me olhas desse modo, Orfeu? Parece que choras sem lágrimas... Queres dizer alguma coisa? Vejo que sofres por não poderes falar. Mas depressa me apercebi que tu não sonhas! Tu é que me estás a fazer sonhar, Orfeu! Porque é que existem cães, gatos, cavalos, bois, ovelhas e animais de toda a espécie e sobretudo domésticos? Na falta de animais domésticos para descarregar o peso da animalidade da vida, o homem podia chegar à sua humanidade? Se o homem não tivesse domesticado o cavalo, não andaria uma parte da nossa linhagem às costas da outra metade? Sim, é a vós que se deve a civilização. E também às mulheres. Mas não será a mulher outro animal doméstico? E se não houvesse mulheres, os homens seriam homens? Ah, Orfeu, vem de fora quem da casa te põe fora!
E apertou-o contra o peito e o cão, que parecia estar de facto a chorar, lambia-lhe a barba. – Miguel de Unamuno in Névoa