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As-salam alaykum - a chegada II

por Filipa Martins, em 17.08.08

 

 
  
 
 
Neste caso, esperávamos pelo controlo dos passaportes. Cada um verificado por quatro funcionários, que partilhavam o mesmo guiché. O primeiro recebia o passaporte e o visto, averiguando as validades; o seguinte colava e preenchia o visto; o terceiro verificava a autenticidade do passaporte; por último, foram-nos dados os passaportes e os votos de boa estada. Estava a par da política de empregabilidade do Governo egípcio e da crescente burocratização do país, mas, desconhecendo o paradeiro das bagagens e sob um calor irrespirável, tudo aquilo me parecia desapropriado.
 
Na outra ponta da massa humana, rebenta uma forte discussão em árabe entre um polícia e um passageiro. Um guia que acompanhava turistas brasileiros apressou-se a garantir que era natural as autoridades serem tão ríspidas e os cidadãos responderem da mesma forma. Iria aprender outras particularidades da polícia egípcia mais tarde à minha custa.  
 
Trocámos algumas palavras com os turistas brasileiros, que repetiam de forma incomodativa a expressão “agora é que caíram as fichas todas” e tinham dúvidas sobre a localização de Portugal no mapa. Como não tinha vontade de recuar até 1500, dei por finda a conversa.
 
Passado o controlo, fomos encontrar as malas em monte junto a um tapete fora de funcionamento. Depressa um rapaz se aprontou a ajudar-me a colocar a mochila de vinte quilos às costas e eu fiz as contas ao peso dos cremes desnecessários, do secador do cabelo e das sandálias que acabei por só usar uma vez na viagem. Ele esperava uma recompensa por me ter ajudado a encontrar os pertences entre aquilo que mais parecia destroços de guerra. Mas a primeira regra de um backpacker é só tirar a carteira em ultimo caso.
 
De mochila às costas, éramos presas fáceis. Neste caso, os predadores vestiam camisas semelhantes e tinham cartões fotocopiados ao peito. Conhecidos por intermediários, rapazes novos tentam angariar turistas para viagens de táxis a preços inflacionados até ao centro da cidade, ficando com uma comissão. Como numa cadeia alimentar, parte do sucesso depende das capacidades da presa. Conseguimos descer o preço para os sete euros, pagando mesmo assim três vezes mais do que um local.
 
- É a sua primeira mulher? – perguntou o motorista do táxi, referindo-se a mim. Depressa lhe expliquei que era a segunda e que a primeira não era muito dada a grandes viagens.
 
- O meu avô tem sete. Mas o Governo agora só permite ter quatro – e piscou-me o olho pelo retrovisor. Não resisti e perguntei-lhe quantas tinha em casa.
 
- Duas. Uma há trinta e cinco anos e com muitas coisas boas. Outra há vinte e dois. - O inglês do motorista, pai de uma rapariga a estudar na Universidade do Cairo, era surpreendentemente fluente. Queixava-se de uma cidade com vinte e cinco milhões de habitantes, garantiu-nos que só gostava de trabalhar à noite, sempre a fazer o mesmo percurso, e alegrou-se por saber que éramos portugueses. Manuel José, treinador de um clube egípcio, tem dado alguma felicidade ao país, segundo o que vim a saber. Comprovámos a experiência na estrada, quando, ao passarmos por uma operação stop, colocou uma rotativa luminosa no tejadilho. Na verdade, o nosso motorista não tinha licença para conduzir um táxi.
 
Como sempre, não tínhamos reservado quarto. Escolhemos um dos hotéis mais baratos do guia e não deixámos o motorista entrar. Caso contrário, iria receber uma comissão por nos ter levado e acabaríamos por pagar uma diária mais cara. O prédio, junto ao museu egípcio, tinha mais de quinze andares e terminava com enormes ecrãs publicitários ao estilo Piccadilly Circus. Estranhámos a vida da cidade àquela hora, mas à nossa custa iríamos perceber que o Cairo, principalmente no centro, funciona 24 horas por dia.
 
O acesso ao prédio era por um corredor junto a uma banca de jornais, doces e fritos empacotados, que fazia a ligação a um pátio interior. Nunca estive numa cidade bombardeada, mas consegui adivinhar algumas semelhanças. Lixo acumulado, destroços, construções inacabadas e um ou outro roedor. Sob uma arcada, algumas cadeiras que na manhã seguinte seriam ocupadas por guardas vestidos de branco imaculado que se protegiam ali do calor, uns deixando-se levar pelo sono, outros bebericando chá e fazendo palavras cruzadas, mas todos impressionantemente armados. Chamámos um elevador antigo e sem manutenção e acabámos por acordar um homem que dormia na entrada. A sua função era a de fechar a porta de correr do elevador na esperança de ser recompensado. Cumpri a promessa e mais uma vez não fui buscar a carteira. Fomos recebidos por um egípcio gordo de cabelo desenhado a gel, que ficou fascinado com o meu visto de um ano para os EUA. Talvez por isso tenha descido a diária para as 160 libras egípcias, cerca de vinte euros (valor abaixo do referido no guia).
 
O quarto era debruçado sobre uma enorme rotunda com várias avenidas que a cruzavam. Percebemos que a grande dificuldade seria dormir numa cidade que não dorme. Como não respeitam sinais luminosos, passadeiras ou prioridades, não fazem sinais de mudança de direcção e mantêm, de dia ou de noite, as luzes apagadas, buzinam o tempo todo como num cortejo matrimonial. Centenas de buzinas sobrepostas. É este o verdadeiro som de fundo do Cairo e que me acompanhou enquanto adormecia. (continua)
 


4 comentários

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De Francisco Almeida Leite a 17.08.2008 às 20:43

Aconteceu-me mais ou menos o mesmo quando, há uns anos, cheguei ao Cairo. Com a diferença de que não ia de mochila às costas... Mas devia ter ido!
Ainda bem que voltaste,
bj
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De Anónimo a 18.08.2008 às 10:24

A menina levou um secador de cabelo?! Parecer uma anedota sobre a Paris Hilton... ;)

Pedro
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De nuno granja a 18.08.2008 às 13:23

Estive o ano passado no Egipto como turista de aquário, num cruzeiro no Nilo que presumo será o expoente máximo da categoria

Confirmo tudo o que li, apesar do vidro do aquário nos preservar de algumas das situações descritas nomeadamente tratar do alojamento.

Qualquer contacto com os egípcios era precedido de uma análise sobre as hipóteses deste motivar pedido, por vezes exigência, de "gorjeta".
No caso de haver essa hipótese, passava a 2ª fase da análise:
será mesmo necessário?
Isto tinha como resultado evitar qualquer compra ou contacto que não fossem absolutamente necessários, como por exemplo tirar uma foto onde aparecesse um egípcio em primeiro plano.

Numa das primeiras abordagens para uma compra, um cartão de 1GB para máquina fotográfica, cai na asneira de aceitar que o vendedor me passasse o dito para mão "só para ver", a partir dai foi o pandemónio, tive de o pousar numa prateleira da loja pois com maus modos e ar de ofendido recusou-se a recebe-lo de volta e tive de ouvir protestos agressivos em árabe dentro da loja e já pela rua fora.

À mínima saída do barco a pé era rodeado pelos vendedores dos mais variados produtos e serviços, ao principio ainda respondia um a um, mas a partir de uma certa altura saia a durante os primeiros metros só repetia "non, non, non. non, etc etc"
A partir do 30º "non" começavam a rir-se, ria-mo-nos todos juntos, acabando por desmobilizar

O curioso é que por exemplo em Luxor, depois da passar a 2ºa rua paralela à marginal ao Nilo, entrava nas ruas interiores da cidade e passeava à vontade sem ninguém a abordar-me e sem nunca sentir algum tipo insegurança.

A presença de guardas armados em tudo quanto é lugar é uma constante, o que associado ao aspecto de muito uso das metralhadoras e marcas de balas nos abrigos é no mínimo preocupante. Em locais muito visitados por turistas, o numero de guardas armados, fardados ou não, é tal que imagino uma poder uma inocente bomba de carnaval dar origem a uma tragédia. Há nitidamente uma preocupação enorme em proteger os turístas.
Vi a polícia e tenho fotos dos agentes em causa, dentro dos carros oficiais a sacar/exigir comissões a miudos que tentam vender marcadores de livro em papiro aos turistas.

Devo sublinhar que nunca me senti inseguro e que quando tive oportunidade de falar com egípcios que não me tentavam vender nada, eram de uma enorme simpatia e curiosidade.
Ficavam muito espantados por em Portugal políticos corruptos estarem a ser julgados e correrem o risco de serem condenados ou mesmo presos. Quando falei que havia uns agentes da Bt (Algarve) presos por corrupção, creio que não acreditaram.
Notava-se uma enorme descrédito nos governantes, desanimo, falta de horizontes e esperança (sim cá "tambám há" mas o patamar é outro).
Uns teenagers de uma aldeia no arredores de Luxor, ficaram atónitos quando eu disse ter 2 computadores e duas ligações à web.

Tivemos a sorte de ter uma guia mulher (das pouquíssimas que vimos) com quem foi muito interessante conviver.
Abandonada pelo marido com 2 filhos para criar,
foi assustador ouvir na primeira pessoa as "especificidades" do estatuto social da mulher num pais islâmico e confirmá-lo observando in loco a forma como era tratada por alguns guias masculinos.

Fiquei com a imagem de um pais com uma beleza espectacular (não fui ao Cairo), com uma história monumental, mas passar por um momento de desanimo e sem grandes perspectivas de futuro.

Pormenor curioso, ao fim de 8 dias de Egípto, entro no aeroporto e reparo que já não via um computador há...8 dias.

nuno g
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De Pedro Correia a 19.08.2008 às 14:29

No Egipto, em Agosto? Admiro a tua coragem. Nem a esfinge me levaria lá.

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