Neste caso, esperávamos pelo controlo dos passaportes. Cada um verificado por quatro funcionários, que partilhavam o mesmo guiché. O primeiro recebia o passaporte e o visto, averiguando as validades; o seguinte colava e preenchia o visto; o terceiro verificava a autenticidade do passaporte; por último, foram-nos dados os passaportes e os votos de boa estada. Estava a par da política de empregabilidade do Governo egípcio e da crescente burocratização do país, mas, desconhecendo o paradeiro das bagagens e sob um calor irrespirável, tudo aquilo me parecia desapropriado.
Na outra ponta da massa humana, rebenta uma forte discussão em árabe entre um polícia e um passageiro. Um guia que acompanhava turistas brasileiros apressou-se a garantir que era natural as autoridades serem tão ríspidas e os cidadãos responderem da mesma forma. Iria aprender outras particularidades da polícia egípcia mais tarde à minha custa.
Trocámos algumas palavras com os turistas brasileiros, que repetiam de forma incomodativa a expressão “agora é que caíram as fichas todas” e tinham dúvidas sobre a localização de Portugal no mapa. Como não tinha vontade de recuar até 1500, dei por finda a conversa.
Passado o controlo, fomos encontrar as malas em monte junto a um tapete fora de funcionamento. Depressa um rapaz se aprontou a ajudar-me a colocar a mochila de vinte quilos às costas e eu fiz as contas ao peso dos cremes desnecessários, do secador do cabelo e das sandálias que acabei por só usar uma vez na viagem. Ele esperava uma recompensa por me ter ajudado a encontrar os pertences entre aquilo que mais parecia destroços de guerra. Mas a primeira regra de um backpacker é só tirar a carteira em ultimo caso.
De mochila às costas, éramos presas fáceis. Neste caso, os predadores vestiam camisas semelhantes e tinham cartões fotocopiados ao peito. Conhecidos por intermediários, rapazes novos tentam angariar turistas para viagens de táxis a preços inflacionados até ao centro da cidade, ficando com uma comissão. Como numa cadeia alimentar, parte do sucesso depende das capacidades da presa. Conseguimos descer o preço para os sete euros, pagando mesmo assim três vezes mais do que um local.
- É a sua primeira mulher? – perguntou o motorista do táxi, referindo-se a mim. Depressa lhe expliquei que era a segunda e que a primeira não era muito dada a grandes viagens.
- O meu avô tem sete. Mas o Governo agora só permite ter quatro – e piscou-me o olho pelo retrovisor. Não resisti e perguntei-lhe quantas tinha em casa.
- Duas. Uma há trinta e cinco anos e com muitas coisas boas. Outra há vinte e dois. - O inglês do motorista, pai de uma rapariga a estudar na Universidade do Cairo, era surpreendentemente fluente. Queixava-se de uma cidade com vinte e cinco milhões de habitantes, garantiu-nos que só gostava de trabalhar à noite, sempre a fazer o mesmo percurso, e alegrou-se por saber que éramos portugueses. Manuel José, treinador de um clube egípcio, tem dado alguma felicidade ao país, segundo o que vim a saber. Comprovámos a experiência na estrada, quando, ao passarmos por uma operação stop, colocou uma rotativa luminosa no tejadilho. Na verdade, o nosso motorista não tinha licença para conduzir um táxi.
Como sempre, não tínhamos reservado quarto. Escolhemos um dos hotéis mais baratos do guia e não deixámos o motorista entrar. Caso contrário, iria receber uma comissão por nos ter levado e acabaríamos por pagar uma diária mais cara. O prédio, junto ao museu egípcio, tinha mais de quinze andares e terminava com enormes ecrãs publicitários ao estilo Piccadilly Circus. Estranhámos a vida da cidade àquela hora, mas à nossa custa iríamos perceber que o Cairo, principalmente no centro, funciona 24 horas por dia.
O acesso ao prédio era por um corredor junto a uma banca de jornais, doces e fritos empacotados, que fazia a ligação a um pátio interior. Nunca estive numa cidade bombardeada, mas consegui adivinhar algumas semelhanças. Lixo acumulado, destroços, construções inacabadas e um ou outro roedor. Sob uma arcada, algumas cadeiras que na manhã seguinte seriam ocupadas por guardas vestidos de branco imaculado que se protegiam ali do calor, uns deixando-se levar pelo sono, outros bebericando chá e fazendo palavras cruzadas, mas todos impressionantemente armados. Chamámos um elevador antigo e sem manutenção e acabámos por acordar um homem que dormia na entrada. A sua função era a de fechar a porta de correr do elevador na esperança de ser recompensado. Cumpri a promessa e mais uma vez não fui buscar a carteira. Fomos recebidos por um egípcio gordo de cabelo desenhado a gel, que ficou fascinado com o meu visto de um ano para os EUA. Talvez por isso tenha descido a diária para as 160 libras egípcias, cerca de vinte euros (valor abaixo do referido no guia).
O quarto era debruçado sobre uma enorme rotunda com várias avenidas que a cruzavam. Percebemos que a grande dificuldade seria dormir numa cidade que não dorme. Como não respeitam sinais luminosos, passadeiras ou prioridades, não fazem sinais de mudança de direcção e mantêm, de dia ou de noite, as luzes apagadas, buzinam o tempo todo como num cortejo matrimonial. Centenas de buzinas sobrepostas. É este o verdadeiro som de fundo do Cairo e que me acompanhou enquanto adormecia. (continua)