Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]
A inveja
O que gosto mais, quando jogo badmington com a Clotilde, é lançar a pena a voar num arco que a obrigue a esticar a raqueta e a inclinar ligeiramente o seu corpo delicado. Para interceptar o meu vólei, ela dá um gracioso salto e a saia curta ergue-se com esplendor, presa no ar por um curioso efeito de anti-gravidade, que me encanta.
E aquela visão dá-me para desatar as minhas angústias:
“O pessoal do corta-fitas nem sequer me convida para os jantares ou para convidado de honra. Mas o pior é que secaram os comentários. Cada vez que escrevo, zero comentários”.
E bati com raiva na pena, que se ergueu, elegante, tombando num ângulo difícil para a minha Clotilde, que dessa vez deixou escapar.
“Os teus posts são demasiado longos”, disse ela.
“Pois é. Já não existe o gosto pela leitura”.
“Tenta escrever mais curto”.
“Jamais o farei. Afinal, tenho a minha dignidade. Em arte, não há concessões”.
“Mas isto não é arte, querido. É só um blogue”.
Disparei a pena com intensidade, num golpe que forçou o plástico a voar sobre a rede e a cair no campo dela numa rota imprevista, que a forçou a inclinar o corpo ainda mais um pouco, a perna direita inclinada, num equilíbrio precário.
“E agora veio o Carlos Leone, o nosso convidado de honra, dizer que só o Villalobos o surpreende no corta-fitas. O resto não passa de comentarismo. Achas-me com cara de comentador?”
“O Carlos Leone só estava a dizer aquilo que pensa. É um crítico”.
“A Ritinha recebe sempre imensos comentários. Dois ou três, pelo menos”.
“Estás com inveja, Adolfo Ernesto”.
Disparei a pena num golpe certeiro, criando uma trajectória balística absolutamente imprevisível.
“Espera aí, Clotilde. Se estou com inveja, é porque já me transformei num verdadeiro artista”.
“Estás a exagerar, meu crocodilozinho, chuchu. A inveja faz parte da condição humana e é mais banal do que imaginas”, disse a Clotilde, para acrescentar logo um modesto exemplo: “Todas as raparigas lá da nossa rua têm inveja de mim, é natural”.
“E tu não tens inveja delas?”
De súbito, a Clotilde parecia um pássaro: esticou a raqueta in extremis e apanhou a pena em pleno voo e a saia ergueu-se com serenidade e o braço desenhava um arco perfeito e a perna esquerda, inclinada para trás, completava a imagem de uma onda e a pele iluminada lembrava um campo de margaridas dourado pelo brilho do sol e sob a carícia de uma brisa de seda.
Mas a pena bateu na rede e caiu. A Clotilde ficou direita, a rir-se muito. Recuperou o fôlego e respondeu à minha pergunta:
“Não tenho nenhuma inveja delas! Mas essa Ritinha, que não precisa de depilação, já me está a irritar!”
Adolfo Ernesto
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.
Sou habitual leitor do Público, mas a Bárbara Reis...
HPS, veja estas imagens de outro jornalista "ideol...
correcção: " credível "
Não vejo qual é o escândalo. Faltar oxigénio é com...
Concordo com a sua análise e é extraordinário tudo...