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Isabela

por Pedro Correia, em 08.06.08

Um preço a loucura no horizonte

 

O meu pai conduzia a Bedford branca na picada que atravessava toda a Matola Nova até à estrada de alcatrão que ligava Lourenço Marques à Matola Velha. Eu não ia de branco. Guiava depressa demais, porque estávamos atrasados para o voo. Eu vinha nesse dia para a Metrópole. O voo era ao final da tarde, e sabia-se que precisaria de umas boas horas para  cumprimento de todos os trâmites alfandegários. Conferência de documentos. Vasculhar as malas. Passar no controle de metais, no apalpamento...

 
Ouvia o estrondo dos cabos de electricidade, sacudidos pelos buracos da picada, na caixa da carrinha, lá atrás, esse lugar que ia deixar atrás, atrás; íamos a passar junto à cantina, mais de meio caminho, do lado direito de quem ia, onde os negros esperavam pelas boleias, e vendiam tudo, lenha, montes de carvão, galinhas, cabritos, capulanas e raízes para mascar. Era aí que eu pedia  para ir comprar garrafas de cerveja Laurentina ou 2M ou Seven Up, ou bocados de gelo ou enxofre ou óleo ou azeite, ou assim qualquer coisa de que a minha mãe se tivesse esquecido de todo, e não houvesse outra solução porque o meu pai não estava por perto. Podia descalçar-me às escondidas no mato, e ir clandestinamente descalça, a ver se conseguia que os meus pés ficassem como os pés dos negros, de dedos abertos e sola dura, rachada. E gingava como uma preta, para experimentar o que era ser preta. E as mamanas passavam por mim e riam-se, e os negros também. E diziam-me coisas que eu não percebia, riam-se, a branca, a branca, essa branca do electricista. E eu ria-me. Tinham reparado em mim. Tinham-se rido. Ia descalça. E não podia.

 
À passagem da carrinha levantava-se uma nuvem de poeira vermelha que caía sobre a carapinha dos pretos e a pele castanha dos pretos e os tornava irreais, seres tão medonhos, tão extraterrenos, intensos, proibidos. Tão misteriosos. Sei que não ia de branco, porque era o dia da minha partida para a Metrópole, e tenho a certeza que cheguei a Lisboa com com calças de terilene azul-marinho. E foi junto à cantina, essa cantina, que o meu pai teve de voltar atrás. Esquecera-se de alguma coisa que fazia parte da minha bagagem. O anel de esmeraldas da minha madrinha que eu teria de passar na alfândega, no dedo médio; estava muito largo, ataram-lhe cordel para mo cintar ao dedo; mesmo assim, largo: era de ouro branco, com umas pedras desprezíveis;  tinha outra ideia do que deveria ser uma esmeralda; a minha madrinha, quando retornasse, não tinha dedos que chegassem para os anéis, pelo que os ia distribuindo.
 
Isso contrariou-me. Não o anel. Voltar atrás. Perder 20 minutos. Vestiria o que me pedissem, colocaria nos dedos os anéis que me entregassem, se quisessem até os engolia, ou entalava-os debaixo das mamas, como se fazia com as notas e as moedas. Era só pedir. Queria sair dali para fora o mais depressa possível. O resto era amendoins.
Tinha ficado tão feliz quando soube que na decisão final sobre o meu futuro tinha vencido a partida. Houve uma decisão? Não interessa. Que se tinha decidido que eu me ia embora no primeiro avião disponível. Qualquer desculpa servia: os estudos, a segurança, a minha virgindade... Dali para fora. A andar. Rápido. Queria, como uma criminosa de guerra, voltar às costas a toda aquela esquizofrenia que não me permitia ser legitimamente quem eu era nem o que eles eram; ninguém poderia ver-me ou sequer ver-se. Precisava de uma identidade. De uma gramática. Melhor, de poder mostrá-las sem medo. Sou isto, pronto, sou isto, assim, agora, olhem, arranjem-se.
 
Vestiam-me e calçavam-me de branco, mandavam-me pisar o raio da terra tão negra e húmida que chiava debaixo dos pés, ou tão vermelha que o verniz ou o couro se pintavam de uma aguarela de sangue claro. Não havia forma de poupar o meu corpo às manchas da terra, contudo estava proibida de me manchar dela. Não havia forma de me libertarem dessa necessidade de me manter imaculadamente branca. Na minha memória estou sempre vestida de branco, preocupada em não me sujar. O vestido branco que não usei nesse dia é a mais clamorosa metáfora da minha vida de pequena colona: uma branca de branco, agarrada à saia que não pode sujar, olhando os sapatos brancos que não pode empoar. É assim que me vejo, na cabina da Bedford branca, encolhida debaixo da roupa, preocupada com a poeira que entra pelas janelas.
Era Novembro, fazia muito calor e eu usava um vestido branco em tecido crepe canelado. Não me podia sujar. Tudo isto parece certo, mas é mentira. Eu vestia de azul.

 
Do lado do volante, o meu pai. Vais para a minha terra. Vais gostar. Pede à tua avó que te faça toucinho entremeado com couve branca. Do lado da janela, a minha mãe. Não te sujes. Tem cuidado para que nada chegue partido. Olha o anel da tua madrinha.
Sim, olharia por tudo. A quem entreguei o anel da minha madrinha?
 Agora, depressa, para o aeroporto. A vida na colónia era impossível. Ou se era colono, ou se era colonizado, não se podia ser qualquer coisa pelo meio, no meio daquilo, sem um preço a loucura no horizonte. 
 

Isabela (do blogue O Mundo Perfeito)

 


2 comentários

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De Rui Vasco Neto a 08.06.2008 às 23:09

isabela,
'o mundo perfeito' foi-me apresentado pelo nosso Pedro Correia, com o destaque que lhe deu aqui nas fitas. Daí para cá tenho vindo a tentar aprendê-la, um processo gratificante, diga-se, neste mundo que nada tem de perfeito.
Cumprimentos.
Sem imagem de perfil

De Isabela a 09.06.2008 às 00:55

Muito obrigada por estas vossas palavras tão simpáticas. Fico toda contente.

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