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Rui Vasco Neto

por Pedro Correia, em 13.05.08

 

 

 

Fátima: fé e trocos

 

Por estes dias de Maio, todos os caminhos vão dar a Fátima, altar do mundo, capital da Fé. No calendário da cristandade, Fátima é senhora do Maio treze, dona da data por mandato mariano, entregue de viva voz e sem burocracias colegiais que obrigassem a muito roçagar de batinas, muita negociação de cabido. Veio do alto, sim, mas do alto de uma oliveira e ao nível exacto do coração de criança das três que o receberam à época, uma rusticidade há muito emoldurada e pendurada num canto qualquer do mito, hoje em versão avenida, monumental e funcional. Adequada, numa palavra. A quê, verdadeiramente, só Deus e a Igreja sabem. Cada um com as suas razões, entenda-se.

Por estes dias de Maio, a fé do povo vem peregrina e convicta pelos caminhos do tal Portugal profundo que virou chavão eleitoral. É o país que acredita, genuíno e genuinamente, o bater de um coração humilde que adora e teme e está sempre lá, aos pés da mãe veneranda. Custe o que custar. Porque crêem, porque precisam, porque expostos se penitenciam, pelo que seja para cada um, os peregrinos são todos um só na postura despojada e de louvor. Por essa postura de entrega se fazem à estrada, são dela um retrato vivo ao passar pelas localidades que entermeiam o percurso. Quem nelas os vê chegar, sabe quem lá vem e como. Quem nas suas casas os recebe conhece-lhes as necessidades, sabe do que precisam estes estranhos afinal tão familiares. Ano após ano mudam os rostos, apenas a fé é uma só, sempre igual. E a dor não muda, nunca. Talvez por isso apareça cada vez mais gente que já aguarda estes milhares e milhares de peregrinos, ao longo dos vários percursos, prevenida com todo o tipo de soluções para todo o tipo de problemas que possa ter esta maré de feição, assim uma espécie de resposta terrena às suas preces. Pagando, evidentemente. Assim nascem os mercados: junta-se a fome com a vontade de comer.

Por estes dias de Maio, pelos caminhos da fé, um banho quente com direito a toalha pode custar dois, três euros, numa das inúmeras casas particulares cujas portas abrem ao peregrino mal começa a época, todos os anos. Uma refeição pode ficar por cinco, seis, sete euros. Pernoitar custa entre os sete e os doze, treze, quinze euros. Para chegar a essas casas, os peregrinos são aconselhados por guias que recebem por cabeça, valores variáveis, entre o poucochinho e o absurdo. Uma reportagem desta semana identificava exemplos de 45, 50, 60 euros por pessoa e por dia, mais o caso de um guia de Peso da Régua que estipulou 300 euros por cabeça, vezes as nove da sua excursão, sete dias de caminhada. Às tantas, contas feitas, é este grupo mesmo a prova dos nove. Alguma coisa tem que estar muito errada, mais que errante no peregrinar desta fé, para dar este resultado.

Não é tanto o oportunismo mercantil do meu povo que me aflige, ou ver o crente feito crédulo que paga e não bufa, consolado porque em nome da fé e da magia de Fátima. A questão vai mais longe e mais fundo no abismo negro da alma humana. Tem que haver um limite, traçado algures, para o cinismo galopante desta sociedade que somos. Tem que existir uma zona vermelha da hipocrisia, um qualquer sinal de alarme que avise uma parte de nós que está a passar-se para o outro lado, já em queda livre para o mesmo inferno de que tanto quer fugir a outra parte, que segue para Fátima pelos caminhos da fé.

Só há um preço possível para qualquer serviço prestado aos peregrinos que rumam ao altar do mundo, por estes dias de Maio. Só esse devia poder ser escolhido cobrar por quem assim o entendesse. Trinta moedas de prata, nem menos um tuste. Porque não sendo esse preço tabelado do cinismo universal, uma opção em aberto há dois mil anos, qualquer euro sacado ao bolso roto e esmifrado do crente é uma afronta à miséria com aprovação tácita da Santa Madre Igreja, que nem por isso vê na coisa algo de especial. É nada mais, no fundo, do que aquilo que ela própria costuma fazer. Aos mesmos.

 

Rui Vasco Neto (do blogue Sete Vidas como os Gatos


18 comentários

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De João Távora a 14.05.2008 às 11:30

Caro Rui Vasco:

Eu não o julguei nem o acusei de nada. Sou claro ao escrever que “parece-me” o que confere subjectividade ao juízo. O que eu reclamo como menos ético é a não concretização das acusações. Não será demasiado fácil atirar simplesmente epítetos para o ar? De resto é verdade, sou um cristão que “corro por dentro”, numa Igreja com 2.000 anos feita de homens e pelas suas contradições, às quais eu naturalmente não escapo.
Experiências pessoais menos boas também as tenho, e acredito que posso ter um papel para a mudança, sem perder o realismo e não esquecendo nunca o Essencial.

Respeitosos cumprimentos

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