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Há bastante anos (1998), Pedro Santana Lopes era presidente de câmara da Figueira, em exclusividade de funções, e, ao mesmo tempo, escrevia uns artigos para um jornal desportivo, e fazia comentário aqui e ali, pelo que recebia uns trocos a mais.
A Direcção Geral da Administração Autárquica achou que estava a violar os seus deveres de exclusividade e, em conformidade, cortou-lhe o ordenado para metade (os presidentes de câmara podem não exercer o cargo em exclusividade, ganham é bastante mais quando o exercem em exclusividade).
Santana Lopes não achou bem, reclamou para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra (em 2003, já era, então, presidente dacâmara de Lisboa) que lhe deu razão "por tal actividade revestir natureza artística ou literária", isto é, por essa prestação de serviços ser, fraudulentamente (digo eu), cobrada como direitos de autor.
O Estado poderia ter recorrido da sentença mas eis que surge António Costa, o responsável político que na altura tinha o poder de decidir recorrer (era então ministro da administração interna, portanto, com tutela sobre as autarquias), e decide não recorrer.
Santana Lopes recebeu 75 mil euros de ordenados que tinham sido reduzidos a metade.
Até aqui é tudo bastante melancólico mas, apesar de tudo, aceitável.
O esquema verdadeiro começa no facto desta sentença, da qual António Costa decide não recorrer, abrir um precedente sobre o entendimento do que é a exclusividade dos autarcas e da classificação de prestação de serviços de comentador como direitos de autor.
Surpresa, surpresa, anos mais tarde, António Costa ganha um pouco mais de cinco mil euros como presidente de câmara de Lisboa, em exclusividade de funções, acumulando esse rendimento com 7 700 euros provenientes de "direitos de autor", pela participação num programa de comentário político na SIC.
Por que razão uma televisão paga a um político 7 700 euros por mês para o promover num programa televisivo, mesmo considerando que um dos homens fortes dessa televisão é um irmão do dito político, eu não quero discutir (mesmo estando a fazer um post sobre o que é um esquema), a mim só me interessa o facto do dito político aceitar pacificamente um precedente mais que duvidoso, impedindo o recurso de uma decisão judicial, de que anos mais tarde beneficia directamente.
Que a comunicação social, enterrada até às orelhas em esquemas manhosos deste tipo, se tenha esquecido de escrutinar o assunto (o escrutínio foi essencialmente feito por um blog, o "Porta da Loja") mas agora rasgue as vestes pelos esquemas de Montenegro, é uma boa demonstração de que não é a exigência ética que está na base do ataque permanente a que a comunicação social se dedicou nos últimos meses, e que acabaram com a sua (sua, da comunicação social, não de Montenegro) derrota estrondosa nas eleições de 18 de Maio.
O PS saiu abalado destas eleições, mas pode, com propriedade, usar a velha piada "mas nem imaginas como ficou o outro", referindo-se à comunicação social.
Não percebo grande coisa de futebol jogado. Mas interessa-me o futebol como fenómeno social — um verdadeiro laboratório de comportamentos, emoções e estratégias coletivas.
Uma das formas mais eficazes de gerar unidade num grupo, organização ou país é a criação de um inimigo externo. Quando todos se concentram numa ameaça comum, as divisões internas tendem a ser temporariamente ultrapassadas ou esquecidas.
A História está repleta de exemplos. Quando a ditadura militar argentina enfrentava forte contestação interna, optou por invadir as Ilhas Malvinas. O gesto teve o efeito imediato de mobilizar grande parte da opinião pública em torno da "causa nacional".
Anos mais tarde, num contexto completamente distinto, Vladimir Putin, perante a estagnação económica e a erosão da sua popularidade, lançou a ofensiva sobre a Ucrânia — reativando o sentimento de unidade nacional através da perceção de ameaça externa.
Mesmo em democracias consolidadas, a lógica repete-se. Quando António Costa assumiu o cargo de primeiro-ministro com uma legitimidade diminuída por ter perdido as eleições, não tardou a ganhar força política ao confrontar, numa cimeira europeia, um responsável da Holanda — país símbolo da austeridade do Norte —, apresentando-se como defensor da honra e dos interesses portugueses. O efeito simbólico foi imediato.
Algo semelhante parece ocorrer, agora, no universo do Benfica. Em ano de eleições, a intensificação do discurso contra inimigos externos — árbitros, conselhos disciplinares, estruturas do futebol — poderá servir como forma de reforçar a coesão interna e desviar a atenção de fragilidades e frustrações acumuladas.
Naturalmente, não discuto aqui se o clube tem ou não razão nas queixas que apresenta. Não tenho conhecimentos suficientes para isso. O ponto que procuro sublinhar é outro: a utilização do inimigo externo como instrumento simbólico de reforço da liderança em momentos de tensão ou fragilidade interna. Uma técnica recorrente, tanto na política como no futebol — onde, aliás, o tribalismo torna este recurso ainda mais eficaz e acessível.
De entre as poucas coisas em que discordo do que vai dizendo Carlos Guimarães Pinto, a mais importante será, provavelmente, a forma como os dois olhamos para a corrupção.
Cito um amigo que fez uma síntese bem melhor do que eu conseguiria, quando eu disse que a força da incompetência era muito mais poderosa que a da corrupção:
"É quase uma Lei da Física. Para que ocorram problemas devidos a incompetência é preciso fazer muito pouco, frequentemente até resultam da inação. Isso torna a sua ocorrência muito mais fácil e frequente, a incompetência é aparentada com a entropia.
Já a corrupção exige reflexão, organização, intencionalidade, agência, eficácia. Não é que não ocorra, mas ao ser muito mais complexa, é menos provável.
Quando vejo casos de crime organizado em Portugal, vem-me uma restiazinha de esperança. Não seria a minha primeira escolha, mas revela que não somos completamente desprovidos da capacidade de organização".
Lembrei-me disto a propósito do comentário de António Nunes, o presidente da CIP dos bombeiros, cujo nome oficial é Liga dos Bombeiros Portugueses, apesar de não representar nenhum bombeiro, mas os patrões dos bombeiros, sobre a operação Torre de Controlo, uma operação judicial que investiga a cartelização das empresas de helicópteros que prestam serviços no combate aos fogos.
Diz António Nunes que "meios aéreos do Estado evitam situações pouco claras com privados".
Bem sei que António Nunes é presidente da Liga dos Bombeiros por razões que desconheço, tal como desconheço a sua ligação ao sector anterior ao exercício deste cargo, mas esta ideia de que o Estado é intrinsecamente melhor que os privados a prestar serviços é especialmente estranha neste domínio, e tudo isto me parece uma metáfora tão boa da administração pública que vou tentar descrevê-la.
O país tem, como tem qualquer outro país, questões de protecção civil a tratar.
Há muitos anos, por circunstâncias históricas fortuitas, a gestão dos fogos florestais passou a ser uma das grandes questões que o país trata no contexto da protecção civil (em vez de ser, como devia, uma questão de gestão florestal), na qual têm um peso esmagador umas associações humanitárias, que não são financiadas pelas comunidades mas pelos contribuintes, e que não têm, na sua génese, competências de ecologia do fogo (estão, portanto, na posição do indivíduo que todos os dias come, e por isso tem uma relação profunda com a comida, mas nunca aprendeu a cozinhar).
Apesar de todos os anos este modelo absorver mais recursos dos contribuintes, os mecanismos de avaliação e controlo na gestão desses recursos são frágeis, quando existentes, e muito pouco relacionados com os resultados que se pretendem obter, o que, naturalmente, não contribui para que se aumente a eficiência no uso dos recursos, e se redesenhe permanentemente o modelo, em função do que funciona, e deve ser mantido, e do que não funciona, e deve ser abandonado.
É assim que um indivíduo sem especial qualificação na matéria é escolhido por um jornalista para se pronunciar sobre uma investigação judicial, acabando a sugerir soluções que só um extra-terrestre poderá ignorar que foram adoptadas anteriormente, com resultados inacreditáveis: a compra de helicópterps KAMOV e a invenção do SIRESP.
Foi exactamente com a tineta de que os meios próprios do Estado evitam situações menos claras, que um responsável político (por acaso, António Costa, a que alguns chamam o melhor político da sua geração, apesar de não se conseguir perceber bem a ideia, a partir dos resultados para as pessoas comuns que foi obtendo ao longo da sua longa carreira política) comprou helicópteros e criou o SIRESP, que não pouparam dinheiro, não deram transparência ao uso dos recursos disponibilizados pelos contribuintes, não resolveram nenhum dos problemas que pretendiam resolver e acabaram envolvidos em investigações judiciais e processos manhosos de gestão de recursos.
Por que razão, com este histórico, António Nunes pode continuar a propor coisas do mesmo tipo?
Porque pode, como podem todos os agentes do sector.
Sapadores florestais? São caros e não servem para o que foram criados, mas quem avalia seriamente o retorno dos recursos que os contribuintes gastam nisso?
Faixas de gestão de combustível? Caras, frequentemente inexequíveis, limitadoras da livre iniciativa das pessoas e sem resultados relevantes para os fins para que foram criadas, mas quem avalia seriamente?
Legislação de defesa contra fogos? Tecnicamente absurda, resultando num poder claramente abusivo, cara e ineficaz, mas quem avalia seriamente?
Planos de transformação da paisagem? Tecnicamente frágeis, inexequíveis, caros e sem qualquer utilidade para o que se pretende, mas quem avalia seriamente?
Etc., etc., etc..
Não, o post não é sobre a gestão do fogo em Portugal, o que está descrito acima é aplicável ao SNS, ao sistema educativo (o ministro ainda anda às voltas para tentar ter informação de base séria para gerir alguma coisa) e a grande parte da administração pública.
A corrupção é um problema sério que deve ser levado a sério, e ter mecanismos de limitação dos seus efeitos negativos sérios, mas comparada com a ineficiência que a incompetência cria na máquina do Estado, a corrupção não passa de um problemazinho sem grande relevância.
Basta aumentar um bocadinho a temperatura, e lá vem a conversa dos riscos, dos fogos, das limpezas e, já agora, dos interesses obscuros à roda dos fogos.
Por partes.
Aumentar a temperatura, por si, aumenta pouco o risco de incêndio (quando eu escrevo risco de incêndio não estou a falar de haver mais ou menos fogos, mas sim de cada um deles representar um aumento do risco de dar origem a grande fogos incontroláveis).
Eu não entendo a conversa, vinda de bombeiros, protecção civil, jornalismo e fontes diversas, sobre alertas e afins sobre estes dias de temperaturas altas, não vi nada de relevante quer na intensidade do vento, quer na humidade atmosférica, que justifique o barulho público (coisa diferente é a informação técnica para quem combate fogos, que com certeza deve circular, porque vai haver mais uns fogos, e um bocadinho maiores e mais demorados, sem grandes riscos associados, mas que é preciso gerir).
Esta psicose é que dá origem às confusões que são referidas na ligação acima, sobre a contratação de meios aéreos, mas sobre financiamento de bombeiros, sobre vendas de equipamentos, sobre fornecimento de refeições, sobre utilização de combustíveis, o que se entender, quando existe um serviço que precisa de ser prestado com urgência e em quantidades razoáveis, o risco de más decisões (umas por corrupção, outras por incompetência, convém nunca desvalorizar o potencial negativo da incompetência) é altíssimo.
A montante de tudo isto está uma doutrina errada sobre fogos, que dá origem a muita legislação performativa (nem conhecia este conceito, mas Paulo Fernandes vai-me mandando umas coisas curiosas e divertidas que me permitem ir-me actualizando), isto é, legislação com objectivos, medidas, calendários que visam demonstrar que se quer fazer alguma coisa, mas que ninguém sabe como se aplica na realidade, a muita decisão igualmente performativa no mesmo sentido, como a da semana passada sobre mais dinheiro despejado sobre as equipas de sapadores florestais.
Esta coisa dos sapadores florestais é mesmo um bom exemplo, uma ideia que parece boa (o Estado pagar a pessoas para fazer gestão florestal que é fundamental para gerir o risco de fogo), mas cujo desenho esquece a realidade, criando um monstro sugador de recursos, completamente ineficiente e sem avaliação consequente.
As equipas de sapadores, que custam uns 65 mil euros anuais por equipa ao Estado, gerem em média uns 40 hectares de combustíveis, um pastor com 150 cabras gere uns 100 hectares de combustíveis, e toda a gente tem medo de desenhar um programa sério para lhe pagar esse serviço, por causa da fraude, porque torna, porque deixa, e lá continuam os sapadores a torrar dinheiro sem efeitos visiveis, seja qual for o governo.
Quem diz pastor diz resineiro, caçador, conservacionista, qualquer agente económico (empresário puro e duro ou de sectores sociais), cuja remuneração pelo serviço de gestão de combustíveis seria incomparavelmente mais eficiente que com equipas de sapadores florestais ou a permanente invenção de novas medidas, sempre complicadas, sempre com intermediários, que alguém acha mais eficiente que o pagamento directo a quem presta o serviço.
Sempre, sempre, com medo da fraude que esses agentes possam cometer, como se a complicação e emaranhado de regras das alternativas não dessem origem a fraudes de muito maiores dimensões.
O país tem um cancro no mundo rural (o abandono por falta de competitividade da gestão de grandes áreas) e passamos o tempo, governo após governo, a distribuir aspirinas para controlar os sintomas (os incêndios).
Se a minha mãe não tivesse insistido tanto na ideia de que há limites de boa educação que nunca devem ser ultrapassados, eu dir-vos-ia o que fazer à conversa sobre fogos.
28 de Maio de 1926, não é apenas o fim da "República velha", mas de um século de experiência liberal, de 1820 a 1926, com diversas interrupções, guerras civis e revoluções à mistura na fornalha ideológica saída dos compêndios iluministas. Foi o fim de um paradigma ideológico que acompanha o terramoto político europeu entre as duas guerras. A decadência anunciada desde a Geração de 70 encontrava ali um desfecho e, à falência institucional apenas agravada pela República, decidia-se uma resposta cirúrgica e imediata: a ditadura. Como correlativo apenas o golpe cesarista dos tempos finais da República Romana, ou o 18 do Brumário napoleónico. Contudo - e apesar das circunstâncias - não havia ali um César, mas um triunvirato de aspirantes ao lugar cimeiro. E como na história romana de Suetónio, seria igualmente marcada pela ascensão da autocracia do princeps senatus. Entre reviravoltas, o destino reservaria o consulado vitalício para um civil (não a um general); e à aspiração dos césares das espadas e esporas seguir-se-ia a prudência catedrática de borla e capelo.
João Miguel Tavares, como é público e notório, não tem grande apreço por Montenegro, tendo um dia destes levantado a hipótese de que ele seja o príncipe dos esquemas.
Eu não tenho a mesma acrimónia em relação a Montenegro, mas acho que hipótese merece ser discutida, não em função das especulações sobre a vida e o carácter de Montenegro (o que anteriormente se chamaria, fazendo um processo de intenções), mas em função da sua vida, longa vida, como político.
Em 2011 não votei em Passos Coelho, exactamente porque na minha avaliação (e com certeza não terei estado sozinho nessa avaliação, a julgar pelo que diz José Miguel Júdice nesta entrevista muito divertida e útil) Passos Coelho tinha uma história de jotinha muito mal explicada, sem nada de relevante que o recomendasse para as funções a que se candidatava (em 2011 votei contra Sócrates, bem entendido, que, esse sim, conhecia de ginjeira há muito tempo, ao contrário da esmagadora maioria dos membros do PS, que nunca tiveram grandes dúvidas sobre a sua excelência, tal como nunca tiveram dúvidas sobre a excelência de Costa ou Pedro Nuno Santos, bem aventurados os pobres de espírito).
Avaliei mal Passos Coelho e hoje reconheço que teria feito melhor em ter votado em Passos Coelho (como votei em 2015), razão pela qual fiquei mais cauteloso em relação a apreciações de carácter dos políticos.
Há, na biografia política de Montenegro, zonas de sombra que me incomodam, a principal das quais uma quase esquecida história de pertença à maçonaria de que nem Passos Coelho tinha conhecimento na altura, incluindo a rápida desvinculação que Montenegro garantiu na altura.
E há, no último ano de governo, zonas de sombra que me incomodam igualmente, em especial uma lógica de protecção partidária (em rigor, uma lógica de protecção, seja de que tipo for) de algumas pessoas que a mim não me parecem ser dignas dessa protecção.
Aliás, o seu governo parece ser uma espécie de governo híbrido, com uma componente de assuntos sérios, para a resolução dos quais se escolhe gente que pode falhar, mas seguramente tentará fazer com que as coisas funcionem, e outra componente, que por facilidade eu chamaria a componente aparelhística e autárquica, que anda para ali a encanar a perna à rã e a anunciar milhões para isto e aquilo, procurando sobretudo manter-se próxima do poder que permite o exercício dos pequenos poderes em que se especializaram os aparelhos partidários.
Finanças, Justiça, Educação, Saúde, Migrações, Economia e Trabalho e Segurança Social são áreas em que manifestamente há uma vontade de fazer, e fazer bem.
Quando se critica Fernando Alexandre por ter usado números errados, e depois adjudicar e pagar uns milhares de euros numa auditoria que não vai conseguir dar os números que se pretendia, está a fazer-se a crítica errada, a crítica certa seria aos ministros anteriores que governaram sem se preocuparem em preparar a administração para a produção de informação relevante.
Quando se critica a Ministra da Saúde por não conseguir os objectivos definidos no plano de emergência a que se vinculou, está a fazer-se a crítica errada (a menos que a Ministra tentasse martelar os números não mudar nada em relação ao previsto), porque a crítica certa é aos anteriores ministros que se furtaram a estabelecer metas e calendários verificáveis, bem como à gestão desse plano e calendário em função dos resultados verificados.
Ou seja, nas matérias que citei, o governo de Montenegro é manifestamente um governo que serve, no sentido em que tenta identificar problemas e resolver, mesmo que tenha o problema de todos os governos portugueses que é o de assentar a sua acção numa administração que é péssima a produzir informação de gestão fiável (uma absoluta necessidade que me parece que vai sendo olhada com atenção por Miranda Sarmento, mas é cedo para perceber se realmente é assim).
Noutras matérias, que me escuso de citar (e que pessoalmente me chateiam bastante, porque incluem aquelas que são as minhas áreas de actividade profissional), o modelo parece ser o esquemático, isto é, a gestão de esquemas que evitem ondas, ou seja, deixar tudo na mesma.
Eu não tenho a psicose das reformas, o meu critério central de voto nas próximas autárquicas não se prende com o candidato que tem melhores ideias e reformas para a autarquia em que voto, mas sim com a minha convicção de qual é o candidato que, mais provavelmente, me garante que as sarjetas funcionam correctamente.
Talvez por isso eu fique pouco impressionado com os políticos carismáticos e me interesse tanto por políticos cinzentos que se focam em fazer o seu trabalho tão bem quanto conseguem, sabendo que não são génios que criam soluções miraculosas para problemas persistentes, mas pessoas que procuram tornar a vida dos outros mais fácil.
Não tenho uma opinião definitiva sobre Montenegro mas, até agora, não tenho razão nenhuma para lhe chamar príncipe do que quer que seja, parece-me ser uma pessoa normal, a tentar fazer razoavelmente o trabalho que tem entre mãos.
Espero não me enganar.
Se precisasse de traçar o protótipo do "escrito maldito", com todo o romantismo necessário para edificar a grandeza poética dos amaldiçoados, então Céline ocuparia o Panteão supremo. Não sei descrever a influência que dele recebi quando descobri a tradução do "Viagem ao Fim da Noite". Lê-lo é mergulhar no mais obscuro da nossa identidade. Céline e Proust são a face oposta da mesma França, e diria da mesma Europa. Se Proust vagueou nos salões da aristocracia e edificou uma prosa sustentada nos prazeres mundanos, recheando cada imagem de brilhantes ritmos de poesia, Céline conduziu-nos ao mais recôndito dos becos, às ruas da classe operária, ao decadentismo do século que amargurava entre guerras, à mordaça da insatisfação que devora as almas corrompidas pelo sacrilégio do descontentamento.
Céline foi esse poeta que não cantou heróis magnânimos, nem romantizou as paixões burguesas, nem perdeu tempo com floreados para encantar as massas, mas antes o desconforto, a miséria, os vícios, a pobreza, o desalento. Não há outra tragédia que não seja errar por um mundo que parece ter perdido todo o sentido, qual promeneur solitaire arrancado de todas as grandiloquências do passado para a modorra do mundo moderno onde é reduzido a insecto, esmagado por uma civilização inconsequente.
A passagem política de Céline foi derradeira. Do lado errado da história, dirão muitos, no sentido que se posicionou do lado das forças derrotadas, como grande para da inteligência, Maurras, Brasillach, Rebatet, Drieu de la Rochelle. Tantos e tantos. A vida de Céline foi como o século XX - viveu perigosamente e radicalmente. Dançou com as forças que gravitavam na alvorada do novo mundo, protagonizando a superação da civilização burguesa, fosse o comunismo, o fascismo ou o nacional-socialismo. Como o século, viveu e sucumbiu nas intempéries que devastaram o velho mundo.
Infelizmente, para muitos, Céline continuou ( e continua) vivo. Uma silhueta que assombra os arautos do politicamente correcto dos nossos dias, daqueles que pretendem, uma linguagem lavada e polida, as novilínguas dos académicos das teorias críticas e outros dislates intelectuais. Face aos novos tiranos Céline, mesmo que não se concorde completamente com todas as suas posições políticas, continua mais livre, mais vibrante, mais irreverente do que nunca. E, se passadas décadas, ele ainda continua a assombrar, a chocar, a intimidar, é porque foi sem dúvida o maior dos escritores do século XX.
Quem terão sido os agressores dos enfermeiros, quantos eram, que idade teriam, onde residem?
Não, não, não se quer saber a etnia ou o sexo dos mesmos.... Isso é com os do Chega, relacionar comportamentos deste tipo com famílias ciganas.
Incontestavelmente é assim: passámos 15 dias de campanha eleitoral (e os meses antecedentes ainda de mais viva voz) ouvindo o PS proclamar-se de Esquerda e Pedro Nuno, no seu desvario, cerrando o punho e fazendo dele uma ameaça brandida.
A pessoas como eu colocaram-as no dito "centro-direita". É mentira - eu sou da Direita, tout court, e sou social-democrata convicto.
Sobreveio o naufrágio do PS. Ouvi recentemente Vitalino Canas, mas outros já diziam o mesmo, em plena borrasca na noite fatal: o PS é agora um partido social-democrata, um partido do centro, enfim, com mais precisão, do centro-esquerda. Moderadíssimo e irmanado com o PSD. Consensual por natureza. A Geringonça não existiu, foi apenas uma visão colectiva...
E se assim não for - eles detestam ser contrariados - então o PSD (e o CDS e a IL) estão irremediavelmente conotados com o Chega. O fascismo ameaça de novo e será preciso "resistir" (quem o pateta que já falava em "resistir" nas mesas-redondas da noite eleitoral?... Ah! Já sei: José Manuel Pureza).
Nada disto é importante. Se o PS é social-democrata, o eleitorado é parvo, indo nessa lengalenga. O PS não é um partido de reformas, é sim, um partido de instalados e de poder. Que o seja. Mas não me situe no centro-esquerda, dando de barato que não me bane da social-democracia.
Falamos apenas, afinal, da tendência de sempre para a sobranceria da Esquerda e da facilidade com que dogmaticamente rotula os outros, sempre maniqueísta.
Gonçalo Ribeiro Telles nasceu em Lisboa a 25 de Maio de 1922. Mais do que o militante, ou melhor dizendo, o resistente monárquico, também o percursor da defesa do ambientalismo, da ecologia e do municipalismo, afinal nada mais do que a interpretação escorreita do organicismo tradicionalista e das teses integralistas influindo na contemporaneidade política.
Lembrando que antes das teses ecologistas gravitarem para a esquerda (e extrema-esquerda) tiveram na sua génese movimentos à "direita", críticos da revolução industrial, desde a militância aristocrática do grupo Young England (e do 'social Toryism'), ao legitimismo francês e aos românticos anti-modernos. Na essência e com as especificidades próprias, os arautos da contra-revolução e do tradicionalismo organicista anti-industrial continham muitos dos elementos que hoje poderiam ser reivindicados por grupos ambientalistas.
Herança também partilhada pelo Integralismo que idealizava essa sociedade assente nos corpos intermédios, na valorização do mundo rural e na defesa das liberdades locais, opondo-se ao individualismo desenraizado e a um progresso desenfreado e contrário às singularidades nacionais. Como nos lembra a máxima do tradicionalismo, "a tradição é um passado que merece ser futuro".
Assim, Ribeiro Telles estabeleceu a ponte entre as gerações integralistas, desafiando os novos ventos e assumindo a postura derradeira em nome da terra portuguesa. Postura de combate, num momento em que a revolução de 1974 radicalizava posições e a possibilidade de restaurar a monarquia parecia cada vez mais longínqua.
Dos monárquicos não alinhados com o Estado Novo formaram-se grupos e organizações que constituíram o PPM (nos antípodas do que hoje se tornou), onde ainda Rolão Preto brandava o seu verbo venturoso, João Camossa o seu idealismo anarco-comunalista, e Barrilaro Ruas o pensamento exacto e articulado. Mas Ribeiro Telles foi muito mais além do que os teóricos e sonhadores e realizou no espaço público o seu pensamento. Hoje faz-nos muita falta. Foram homens de outros tempos, sem dúvida.
O assunto Spinumviva é uma criação mediática, cavalgada pelos partidos da oposição e a polícia da moralidade, até ver (amanhã não sabemos o que vai acontecer).
Há um comentador do Corta-fitas que resolveu fazer uma demonstração, ao vivo e a cores, de como funciona o processo.
Argumento inicial: "nas últimas semanas veio a público que as empresas tidas como clientes da Spinumviva tinham aumentado a relação comercial com o Estado já no governo de Montenegro. Para mais, como já era sabido, a Spinumviva continuou a existir e a receber dinheiro desses clientes".
Perante a contestação ao argumento, com base no que é factual (nem está demonstrado que haja algum aumento de facturação, porque depende do período de tempo considerado para avaliação, nem os contratos em que se baseia a afirmação foram construídos pelo governo, representam resultados de concursos públicos anteriores à tomada de posse do governo, nem as decisões são do governo, mas de entidades autónomas do Estado, nem é verdade que esses clientes tenham continuado a ser clientes da Spinumviva), a reacção é a habitual, mudar o argumento e juntar ligações sem qualquer ligação.
"A Solverde continuou a ser cliente. Tanto assim foi que veio anunciar que deixava de contar com a Spinumviva", acontece que a Solverde não aumentou facturação nenhuma, nem tem contratos com o Estado, portanto não serve para demonstrar o primeiro argumento, na medida em que não faz parte das tais "empresas tidas como clientes da Spinumviva [que] tinham aumentado a relação comercial com o Estado".
Acresce que uma das técnicas mais frequentes para manter o assunto vivo é a insinuação através de perguntas retóricas que esquecem a informação existente: "Como é que sabe que nenhuma dessas decisões vem deste governo? E como sabe que deixaram de ser clientes?".
Perante as respostas objectivas e baseadas na informação que existe a esta pergunta, volta-se a alterar o argumento inicial.
"Instituições que dependem do governo", é um argumento tão frequente, como estúpido, visto que a Santa Casa da Misericórida de Lisboa depender, dentro de limites, do Governo, não torna qualquer Primeiro Ministro responsável pela contratação de serviços de refeições através de concursos públicos, com júris conhecidos.
Se assim fosse, todos os primeiros ministros do país estavam presos, a começar por aqueles que eram primeiros ministros quando a Santa Casa da Misericórdia resolveu estoirar milhões de euros num processo de internacionalização que levantam muito mais dúvidas que uma das principais empresas de refeições do país ganhar um concurso de fornecimento de refeições lançado por uma instituição do Estado.
"A decisão pode ter sido tomada durante o governo de Costa mas isso não implicava que os contratos fossem assinados. As decisões podem sempre ser alteradas". Esta concepção de um governo que não tem de cumprir regras e pode fazer o que lhe dá na telha, incluindo reverter decisões tomadas por terceiros, sem que isso implique responsabilidades jurídicas para com os prejudicados é muito, muito difundida, mas não deixa de ser o que é: pura ignorância.
No caso, a ideia de que um governo qualquer pode reverter decisões dos serviços sob sua tutela porque em algum momento alguém tinha sido cliente de uma empresa em que a pessoa que transitoriamente ocupa o lugar de primeiro ministro trabalhava, quando não estava na política activa, é verdadeiramente extraordinária.
"Não há aqui absolutamente nenhuma mistura de assuntos. Todas são empresas clientes da Spinumviva e do estado. A realidade é esta , por mais perturbadora que possa ser. Veremos o que o tempo irá revelar".
A Spinumviva tem, tanto quanto se sabe, dois períodos de vida diferentes, um quando Montenegro está a trabalhar na empresa, e outro quando entrega a sua gestão à família, para se dedicar à política.
Na primeira fase, há um conjunto de trabalhos relacionados com gestão empresarial, que evidentemente assentam em Montenegro e que, com a sua saída, deixam de ser prestados pela empresa.
É dessa fase que são os clientes envolvidos nesta conversa do aumento de facturação, bem como a gasolineira e coisas que tais.
Numa segunda fase, com a saída de Montenegro, a empresa perde capacidade (incluindo de contactos e relação pessoal que assentavam em Montenegro), mas mantém actividade numa área específica em que já tinha ganho maturidade, a da protecção de dados.
O que a polícia da moralidade tem procurado fazer é misturar as duas coisas, afirmando, falsamente, que Montenegro continuou a receber dinheiro (Susana Peralta, que é professora numa escola de gestão e economia, apresentou o mais ridículo argumento para justificar os macaquinhos que tem na cabeça sobre este assunto, ao ir buscar um estudo que diz o que qualquer pessoa que alguma vez teve uma empresa sabe, isto é, que é possível, e generalizado, os donos das empresas imputarem despesas da sua esfera pessoal à empresa para pagarem menos impostos. Susana Peralta, conclui que é muito provável que Montenegro tenha beneficiado da empresa, mesmo passando-a aos familiares, porque pode haver despesas do agregado familiar que tenham sido imputadas à empresa. Susana Peralta considera isto uma coisa gravíssima, provavelmente porque, penso eu, nunca criou nenhuma empresa e não sabe os custos não documentáveis, incluindo em horas de trabalho, que os donos das empresas entregam às empresas para as fazer sobreviver e, se possível, crescer).
Que a situação da Spinumviva merece escrutínio, com certeza, que é preciso olhar com atenção para situações como a da renovação da concessão de jogo em que a Solverde estará interessada, com certeza (e isso é independente da existência da empresa, basta que os donos da Solverde sejam, como são, amigos de Montenegro, para que o jornalismo deve estar especialmente atento a essas amizades, não as tratando como tratou a amizade de Diogo Lacerda Machado e António Costa, com explícitos reflexos em decisões do governo), o que não vale a pena é continuar nestas chiquelinas retóricas com base nas quais rasgam as vestes, escandalizados que estão com a baixeza moral que o assunto revela, dizem eles.
No Irão também é assim, os zelotas acham uma baixeza moral uma mulher andar sem hijab e, consequentemente, não perdoam às mulheres que andam da rua sem hijab.
Leitura dos Atos dos Apóstolos
Naqueles dias, alguns homens que desceram da Judeia ensinavam aos irmãos de Antioquia: «Se não receberdes a circuncisão, segundo a Lei de Moisés, não podereis salvar-vos». Isto provocou muita agitação e uma discussão intensa que Paulo e Barnabé tiveram com eles. Então decidiram que Paulo e Barnabé e mais alguns discípulos subissem a Jerusalém, para tratarem dessa questão com os Apóstolos e os anciãos. Os Apóstolos e os anciãos, de acordo com toda a Igreja, decidiram escolher alguns irmãos e mandá-los a Antioquia com Barnabé e Paulo. Eram Judas, a quem chamavam Barsabás, e Silas, homens de autoridade entre os irmãos. Mandaram por eles esta carta: «Os Apóstolos e os anciãos, irmãos vossos, saúdam os irmãos de origem pagã residentes em Antioquia, na Síria e na Cilícia. Tendo sabido que, sem nossa autorização, alguns dos nossos vos foram inquietar, perturbando as vossas almas com as suas palavras, resolvemos, de comum acordo, escolher delegados para vo-los enviarmos, juntamente com os nossos queridos Barnabé e Paulo, homens que expuseram a sua vida pelo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. Por isso vos mandamos Judas e Silas, que vos transmitirão de viva voz as nossas decisões. O Espírito Santo e nós decidimos não vos impor mais nenhuma obrigação, além destas que são indispensáveis: abster-vos da carne imolada aos ídolos, do sangue, das carnes sufocadas e das relações imorais. Procedereis bem, evitando tudo isso. Adeus».
Palavra do Senhor.
O título deste post é um parêntesis numa frase completamente absurda de Rui Ramos, no seu artigo de ontem: "através de uma cascata de casos e operações (Marquês, Tutti Frutti, Influencer, Spinumviva), revelou que o poder político, precisamente pelos obstáculos que levanta à economia, se tornou o mais rendoso negócio que há em Portugal".
O que aprecio em Rui Ramos historiador não tem qualquer relação com a opinião que tenho de Rui Ramos analista político, ainda assim, o absurdo desta afirmação ultrapassa tudo o que eu poderia imaginar.
Comecemos por aquilo que é um absurdo objectivo, visto que o resto que me parece absurdo cai dentro da grande latitude das diferenças de opinião.
Marquês, Tutti Frutti, Influencer, Spinumviva é uma lista de coisas que não se relacionam entre si, as três primeiras são nomes de investigações judiciais, a última é o nome de uma empresa que, até ao momento, não está envolvida em qualquer investigação judicial.
Pretender, como faz Rui Ramos, fazer qualquer equivalência entre o processo Marquês - uma investigação judicial que dura há anos, sobre a qual já foram tomadas dezenas de decisões por instâncias judiciais e que, mesmo que se venha a demonstrar em julgamento que não é possível provar qualquer crime, contém informação sobre a actuação de um primeiro ministro enquanto tal, incluindo a utilização que fez do cargo para se permitir um estilo de vida incompatível com os recursos a que teria acesso - e a questão Spinumviva - uma criação mediática que não deu origem a qualquer diligência jurídica relevante, até ao momento, e que se refere à actuação de um político que mais tarde veio a ser primeiro-ministro - só pode resultar de uma visão do mundo que dispensa qualquer relação com a realidade.
E é exactamente a demonstração dessa falta de relação com a realidade que o resto da frase de Rui Ramos concretiza, a de que vivemos numa sociedade em que os políticos criam, voluntariamente, obstáculos à economia para enriquecerem, ao ponto da política ser o negócio mais rendoso do país.
Como se os poucos milionários que o país tem fossem políticos.
Como teoria de conspiração é, apesar de tudo, do melhor que se encontra escrito, mas não deixa de ser o que é, uma teoria de conspiração sem qualquer relação com a realidade.
Rui Ramos entende que o PSD deveria juntar-se ao Chega (ou o inverso, é quase irrelevante) porque assim teria uma maioria matemática no parlamento que lhe permitiria reformar o país de alto a baixo.
Não vou discutir esta ideia de que o Chega tem algum interesse em afrontar os seus eleitores fazendo reformas que, no curto prazo, podem ser impopulares, e muito menos a ideia de que maiorias aritméticas de deputados fazem maiorias políticas, o que verdadeiramente me espanta é como um intelectual como Rui Ramos consegue ter uma visão tão sectária do mundo que não veja a pouca importância que os governos têm.
Estranho que Rui Ramos tenha uma visão tão cesarista da política que ache que o governo certo muda a sociedade apenas com base na sua vontade, apesar dos inúmeros exemplos históricos de que são as sociedades que geram os governos e as circunstâncias em que exercem o poder, mas o que me impressiona mesmo é que por ter essa visão política, ou outra qualquer, deixe de ter capacidade para entender a sociedade que toda a vida foi o seu objecto de análise.
O programa "Contra-corrente" de ontem, no Observador, foi bastante interessante.
Já tenho escrito aqui sobre o desfasamento entre a imprensa e a sociedade, tal como entre a academia e a realidade e até tenho falado de uma sociedade dual, cuja consciência me fez mudar a opinião sobre o serviço militar obrigatório.
A estratificação social muito marcada sempre existiu, e sempre houve pessoas cujo contacto com realidades sociais muito diferentes era praticamente inexistente (por vezes, activamente evitado) mas, aparentemente, a consciência dessa realidade era mais presente, como demonstra a história (verdadeira ou falsa é irrelevante para o argumento) da Rainha Vitória ir com as suas mais opulentas jóias visitar os bairros mais miseráveis, por entender que as pessoas queriam ver a rainha, e não a senhora dona Vitória (ela própria nunca se designaria a si desta maneira, trata-se de uma liberdade literária minha para dar expressão ao que quero dizer).
Havia, ainda assim, processos sociais que obrigavam a algum contacto entre realidades sociais diferentes, desde o contacto muito próximo de um grande número de criados e trabalhadores mais ou menos especializados e classes altas, até à guerra (Júlio César, como Napoleão, poderiam nunca ter contacto com as casas infectas dos seus concidadãos mais pobres, mas seguramente conheciam directa e razoavelmente bem, um extraordinário número dos seus soldados).
Para além de haver um complexo sistema de mediação entre elementos das diversas classes, de que são exemplo as cortes medievais, em que se procuravam representar as diferentes classes sociais, exactamente porque se reconhecia a dificuldade de um nobre representar interesses do povo, e vice-versa.
Aparentemente, com a estratificação nas escolas, com o abandono de espaços religiosos comuns, com a facilidade de deslocação que nos leva à estratificação dos tempos livres (a Condessa de Ségur ver-se-ia grega para escrever os seus livros hoje, porque as férias dos meninos ricos já não são em propriedades das famílias que forçavam o contacto com realidades diferentes), com a ausência de guerra ou, sequer, de serviço militar obrigatório, com a estratificação urbana, em que os criados já não vivem com as famílias que servem, e as famílias ricas esperam que "as senhoras que ajudam lá em casa" (para usar a fabulosa expressão de Francisco Louçã para designar a sua mulher a dias, sem expôr a sua condição de patrão privilegiado) consigam apanhar transportes que os tragam de onde moram, a mais de uma hora de distância, sem prejudicar os seus próprios horários, com a despersonalização do contacto em restaurantes que implica a entrega de comida em casa, etc., etc., etc., conseguimos manter a ilusão de uma sociedade democrática e aberta, ao mesmo tempo que, na realidade, parece haver cada vez mais gente sem qualquer contacto real e prolongado com grupos sociais que têm quotidianos radicalmente diferentes.
Para além de alguma mistura nas bancadas dos campos de futebol, das praias, dos centros comerciais, e mesmo assim bastante limitada, aparentemente, estamos a criar sociedades em que não nos conhecemos uns aos outros, crescentemente.
Talvez seja a altura de fazer um esforço para investirmos em mecanismos de contacto social menos cristalizado, uns mais voluntários (permitir que todos consigam escolher a escola dos filhos, sem grande relação com as condições económicas de base) e outros menos voluntários (o serviço militar obrigatório, por exemplo).
Não tenho soluções, mas não gosto do grau de ignorância que todos vamos tendo do dia a dia de tantos outros.
Abre-se o site do Expresso e temos isto:
Mário Centeno, do Partido Socialista de José Sócrates, que levou Portugal à bancarrota e impôs um regate internacional, de que o governo PSD/CDS nos livrou, a advertir/criticar o novo governo PSD/CDS
Mais abaixo, em letra miúda, a informação de que o Banco de Portugal, governado por Centeno, do PS, conseguiu pelo segundo ano consecutivo uma perda operacional de mais de um milhão de euros.
São as hierarquias noticiosas do Expresso.
Vítor Bento produziu este gráfico (atenção, o sinal das variações de abstenção está invertido) mas o que vejo a partir dele só me responsabiliza a mim.
O gráfico interessou-me por ser muito expressivo a identificar uma aparente (o tempo dirá) alteração na natureza do crescimento do Chega nestas últimas eleições.
Aparentemente (puro achismo meu), até às eleições de 2024, o Chega cresceu ocupando o espaço deixado vazio pelos outros partidos, isto é, mobilizando os que tinham desistido de votar, por sentir que ninguém respondia ao que lhes interessava, isso parece muito claro na correlação entre aumento do Chega e diminuição da abstenção.
Entre 2024 e 2025 este processo de crescimento esgotou-se e o Chega cresceu à custa de outros partidos, o que parece claro ao olhar para o crescimento, simultâneo, do Chega e da abstenção (não esquecer que a coluna da abstenção tem o sinal invertido, cresce para baixo, diminui para cima).
Nada disto é preto e branco, as transferências podem não ser directas, o Chega pode continuar a alimentar-se da abstenção, e serem os outros partidos a alimentar a abstenção, mas essas subtilezas não me parecem essenciais.
O que me parece essencial é que usar a distinção esquerda/ direita é muito pouco útil na discussão sobre o que está a acontecer, parece-me melhor distinguir entre partidos que defendem uma forma razoavelmente liberal de democracia (não confundir com o liberalismo económico) e os que defendem formas iliberais, populistas, se quisermos, de representação democrática (neste sentido, para muitos dos seus apoiantes, o Chega não é um partido de representação popular, é o povo, ele mesmo).
Até 2024, PSD, CDS, IL e PS eram essencialmente defensores de uma democracia representativa liberal, os outros eram partidos mais iliberais e populistas.
Há uma tendência global que tem vindo a corroer a democracia mais liberal, a favor de modelos mais musculados e nacionalistas, assente nas críticas históricas ao liberalismo (corrupção e protecção endogâmica das elites, excluindo informalmente o povo do processo democrático, deixando-o sem representação, apesar da manutenção dos formalismos democráticos).
O que me parece mais relevante, entre 2024 e 2025, é a transferência do PS (no meio de um complicado processo de dissolução ideológica que vem de muito longe) do campo das democracias representativas liberais para o campo do populismo.
Talvez a melhor ilustração dessa mudança de campo do PS seja mesmo o processo Spinumviva em que a extrema dependência do espaço mediático em que vivia o PS há demasiado tempo acabou por o levar a cavalgar a campanha moralista (uma das características essenciais do populismo) à volta da Spinumviva.
O PS resolveu abandonar a pedagogia que o assunto deveria merecer (por exemplo, deixar claro que ter a sede de uma empresa na casa de alguém não só é o normal, como não dá qualquer indício de irregularidade, está dentro do que é a liberdade económica de que todos os agentes económicos e políticos devem gozar) para abraçar, com força, as teses populistas de que a história está tão mal contada que, embora não haja nenhuma demonstração de comportamentos censuráveis, alguma coisa vai aparecer qualquer dia, com certeza.
Note-se que a Iniciativa Liberal, por puro cálculo táctico, embora mantendo uma posição menos populista, abandonou a defesa da liberdade dos indivíduos para se juntar à tese de que há, no caso Spinumviva, uma questão ética qualquer (que nunca é concretizada).
Esta aliança entre o espaço mediático e alguns partidos tradicionais do campo liberal acabou por contribuir para a ideia de que são todos iguais ou que, pelo menos, Montenegro estaria mais próximo de Sócrates e Manuel Pinho que da santidade exigível aos agentes políticos, acabando por deixar a Aliança Democrática, sozinha, no campo da democracia representativa liberal.
Ouvi um dirigente do PS a lembrar que nos últimos 30 anos, o PS governou 22 anos (dos outros oito, quatro dizem respeito ao governo da troica, o que quer dizer que os partidos da AD verdadeiramente só governaram, a espaços, quatro anos, nos últimos trinta, acrescento eu).
O que tem o PS a apresentar ao fim desses 22 anos de Governo?
O inepto Guterres, com tanto medo de desagradar que foge de um pântano que se escusa a identificar, o reformista Sócrates (sim, Sócrates era manifestamente um reformista) que, esquecendo todas as questões judiciais, executou uma política suicidária de reforço do Estado, do controlo da vida das pessoas e de investimento e gastos públicos irresponsáveis e António Costa, que prefiro caracterizar transcrevendo um parágrafo de Nuno Gonçalo Poças, publicado ontem no Observador:
"António Costa foi um desastre institucional, disfarçado de pragmático talentoso. Ele sim um terramoto, mas apreciado. Aclamado por tantos como mestre da manobra, foi apenas um sobrevivente dotado de instinto partidário, mas destituído de sentido de regime. Quebrou regras não escritas, relativizou a ética institucional, e transformou a convivência com a extrema-esquerda em normalidade funcional. Criou a ideia de que tudo é táctico, tudo é negociável, tudo é descartável".
É sobre este histórico de governação do PS que a actual direcção do PS resolveu achar que era boa ideia cavalgar uma suposta pureza ética, com insinuações constantes (Alexandra Leitão já apresentou alguma coisa de substancial, meses depois da acusação de procuradoria ilícita?), como base de actuação e relação com o governo que, com todas as suas fragilidades, era um governo que resultava, legitimamente, de eleições democráticas.
Não sei como vai evoluir a situação, o que sei é que o campo da defesa clara da democracia representantiva liberal está hoje reduzido à AD, a que se junta o surpreendente agnosticismo da Iniciativa Liberal, cega pela tática política, com a oposição de todos os outros.
Por mim, o que seria mais positivo, é que o PS percebesse que por mais agruras que tenha de sofrer no curto prazo, longe do poder que tanto o atrai, há mais futuro para si em retomar a sua antiga tradição de estar do lado da democracia representativa liberal, que na actual deriva moralista iliberal, de que se alimenta o populismo.
É que os que escolhem essa posição populista, como estas eleições parecem demonstrar, parecem preferir os originais às cópias mal amanhadas.
Um terramoto político, uma reconfiguração do espectro político, uma revolução parlamentar? Nada! Apenas um abalo brusco que nos deixará na mesma.
A AD com votos bastantes para ficar na mesma
Tenho uma profunda simpatia por Pedro Passos Coelho, pelo trabalho que fez e pelas opiniões que expende, nomeadamente quando confessa o «desejo profundo que, nestes anos que temos pela frente, o PSD possa fazer pleno jus à sua tradição reformista em Portugal», e que as reformas sejam feitas «quer ao nível da segurança e da defesa, quer ao nível económico e político».
Foi com profunda simpatia que constatei a completa falta de vontade reformista de Luís Montenegro ao longo de todo o seu primeiro mandato, sobretudo por ela ter por fundamento um pormenor muito prático: não tinha votos para fazer reformas sózinho, nem com quem somar votos para fazê-las.
Em vez de reformar, Montenegro tratou de reforçar-se. Tratou de sossegar os pensionistas, porque não é possível ser-se eleito contra os 3.552.710 de pensionistas – os 2.938.814 da Segurança Social, mais os 613.896 da Caixa Geral de Aposentações – e respectivas famílias. Aumentou os funcionários públicos e falou-lhes com voz doce e incentivadora, porque é difícil ser-se eleito contra os 758 889 funcionários públicos e respectivas famílias. E, sem chegar a apagar fogos, aspergiu suficiente água sobre problemas mais acesos na educação, na saúde, na habitação, nas infraestruturas, no fisco e na segurança pública.
E resultou. A inabilidade de Pedro Nuno Santos & Séquito, aliada ao enviesamento dos media, deram na altura adequada a Montenegro o pretexto para eleições intercalares. A AD aproveitou e obteve maior maioria com 32,7% e 89 deputados.
Conclui Montenegro: «[Os portugueses] querem este governo e não querem nenhum outro». E promete estabilidade, governando sozinho, porque o PS não existe de momento, e porque considerou, ainda na noite de dia 18, que o cenário de acordos com o Chega é «não credível» e possível meramente «do ponto de vista aritmético».
É, portanto, com enorme antipatia que reconheço no PSD de Montenegro a completa falta de vontade reformista – de que foi claro sintoma o nojo com que reagiu à ideia de uma revisão constitucional para varrer do texto o «caminho para uma sociedade socialista».
Um dia, para que tudo fique na mesma, a AD há-de negociar (já lá iremos); entretanto, prudentemente, governará na mesma, à peça.
O Chega com mais país e demasiado umbigo
Tenho franca simpatia pelas enormes qualidades de André Ventura como tribuno e polemista, e em inúmeras oportunidades essa simpatia acentuou-se ao ver classificadas – por desatenção, enviesamento, estupidez ou vergonha – como derrotas todas as vitórias sobre os opositores nos debates.
Lembrei-me naturalmente do Chega a cada episódio sobre cenas de violência, abusos e facadas perpetradas por «grupos familiares» ou «comunidades» (quem não conhece alguma cena, na rua, na repartição, no hospital, ou no hipermercado?); sobre a falta de segurança pública (há quantos anos não vê um polícia na sua rua?); sobre o incómodo dos multiculturalismos que desfiguram ruas, praças e usos. Alguma vez alguém se perguntou por que razão o Chega cresceu tão depressa no Algarve e em Portalegre, precisamente?
Acusados de fascistas, reles, ignorantes e inimigos da democracia, por verem aquilo que as redacções e os fora dos outros partidos não veem, os do Chega foram crescendo: 67.826 votos e 1 deputado em 2019; 7,18% e 12 deputados em 2022; 18,07% e 50 deputados; 22,6% e 58 (até agora) deputados em 2025. Com 1 345 575 de votos (até agora).
É com desgosto profundo que concluo que não vai servir para nada. Como Montenegro com o seu governo a sós («porque o povo quer»), também Ventura pensa uma coisa só: que o Chega «tornou-se um partido de poder e de governo por mérito próprio» e é «uma verdadeira alternativa política». O Chega promete ser «garante de estabilidade», mas «sem ceder um milímetro».
São dois umbigos para uma impossibilidade de negociação e reformas.
O PS e o enigma dos tempos
Pedro Nuno Santos explica que os tempos são difíceis. Com Isabel Moreira espreitando-lhe sobre o ombro, Alexandra Leitão lamenta estarem tão difíceis os tempos. Ana Catarina Mendes apela a «uma reflexão profunda», e também não percebeu nada.
Dos 42,5% de votos, 120 deputados e maioria absoluta de janeiro de 2022, o PS passou para 23,4% e 58 deputados. Pelo caminho, António Costa aliara-se à extrema-esquerda para sobreviver, mas Pedro Nuno Santos & Séquito pensaram que era amor sincero. E António Costa comeu a extrema-esquerda. António Costa insuflou o Chega para entalar o PSD, mas Pedro Nuno Santos & Séquito pensaram que era ódio verdadeiro. E depois o Chega comeu o PS. Tempos difíceis, de facto. Necessidade de reflexão profunda, sem dúvida, com o pré-requisito de que ela não seja feita pelos mesmos.
Detestei tanto as iniciativas «fracturantes» de Sérgio Sousa Pinto quanto admiro a sua genuína convicção e prática de democrata, muito mais raras do que se supõe. Quando Sousa Pinto fala do socialismo – com mercado, com liberdade de expressão, com livre comércio, com menos Estado, com criação de riqueza –, o socialismo chega a parecer-me estimável. É coisa passageira. Depois penso na «redistribuição», em quem a faz, a que custo fiscal e com que critérios, e a estima esfuma-se.
Menos mal se o PS que há-de sair da reflexão profunda fosse um PS à Sousa Pinto. Mas não vai ser. Vai ser o PS por que sonham o PS assustado, os media desalentados… e o PSD. Um PS do centrão, para aliar-se à AD, e os dois empastelarem o centro.
Uma ideia nova: mais do mesmo
Membro dessa espécie em extinção que ainda é fluente em francês, volto muitas vezes a Proust, para deliciar-me com a sabedoria e detença das descrições, e com uma das mais bonitas línguas do Mundo. Não me ofendeu e fez-me rir certa vez a feroz crítica de Boris Vian a Em Busca do Tempo Perdido: é como se Proust estivesse na banheira, beberricando de vez em quando da água suja e inerte do banho.
O Centrão lembra-me isto.
No painel da noite eleitoral na Sic, Sebastião Bugalho o Novo advertiu: mais perigoso que o Chega é desvalorizar o Chega; mais perigosas são as sondagens falhadas [os canais televisivos em uníssono tinham iniciado a noite com prognósticos clamorosamente errados sobre a abstenção], e as sucessivas derrotas anunciadas por comentadores alinhados; mais perigoso é não atender às preocupações de que só o Chega fala, elas estão nas redes sociais. «Não conheço nem frequento», são vias de intoxicação, disse Miguel Sousa Tavares o Velho. E logo decretou que não se interessa pelos extremos anti-sistema, pareceu-me que sem neles incluir os da esquerda.
Em tempos, Rui Tavares já tivera a mesma ideia, ao decretar que sem o Chega a esquerda tinha maioria. Mas, no líder do Livre era apenas uma sugestão para se fazer interessante para o PS, um convite em bicos dos pés para a dança. Em Miguel Sousa Tavares, perante a impossibilidade de uma solução de esquerda, é apenas a atracção pelo centro.
Tem vasta companhia.
Montenegro declarou-se único e bastante, e fica à espera de um PS com que se possa negociar ao centro.
António Vitorino, na noite eleitoral, na Sic, sonha com a busca no PS de um novo «ponto de equilíbrio».
No Expresso, sempre indispensável para auscultar os modos de sobrevivência da esquerda, João Vieira Pereira recomenda ao PS «trabalhar com o PSD para juntos (…) convencer o eleitorado que os partidos tradicionais (…) continuam a ser essenciais», e Paulo Baldaia espera «que os socialistas vão negociar com a AD um cordão sanitário que acabará por se traduzir num Bloco Central informal».
Outras moscas
Teremos, portanto, um PS reequilibrado, sem vontade de reforma alguma, a negociar razoavelmente com uma AD que bem dispensa reformas. E assim será durante oito anos. Durante os quais os media – o «quarto poder», coitados – se entusiasmarão com o Livre, agora que ficaram sem berloque. Oito anos após os quais a frustração nos oferecerá o Chega como primeiro partido e no governo. Um Chega estatista, defensor dos serviços públicos «essenciais», do controlo estatal dos sectores estratégicos [que são o que cada governo preferir chamar estratégico, como se sabe], talvez a falar de reindustrialização como política pública e de proteccionismo como instinto de defesa. E um Chega sem necessidade de gritos ou polémicas. Ao centro mais uns anos. Sem reformas. Na mesma. Como os outros.
Publicado aqui
A 12 de Março de 2025, na CNN, Miguel Pinheiro dizia:
“Cada vez há mais pessoas a fazerem contas à derrota de Luís Montenegro, dentro do PSD … parece-me que isso é o mínimo da responsabilidade política, é nós termos pessoas que possam ter cargos de alguma importância no PSD, a tentarem olhar para o que é que vai acontecer daqui a dois ou três meses … até porque se o objectivo de Luís Montenegro é ir para eleições com esta estratégia … que é a estratégia assobiar para o lado, então isto vai ser uma hecatombe … Alguém que acha que este discurso cola, é alguém que ainda não percebeu o que está a acontecer”.
Não vou transcrever o resto, que pode ser ouvido e é exemplar, ouvido agora depois dos resultados eleitorais.
Não é a discussão sobre estar certo ou errado que me interessa, estar certo e errado acontece-nos a todos em diferentes momentos, o que me interessa é que, nessa altura, eu resolvi guardar a ligação para esta entrevista, exactamente por me ter parecido, nessa altura, não hoje, que os pressupostos da análise não só eram completamente delirantes, como eram baseados numa bolha mediática sem qualquer relação com a realidade.
De facto, uns dias antes, Miguel Santos Carrapatoso escrevia, num daqueles longos textos cheios de especulações, sem factos verificáveis e baseados em fontes anónimas que o caracterizam: “Ao longo dos últimos dias, foram crescendo alguns rumores de que poderiam estar em curso movimentações internas para tentar derrubar Luís Montenegro. Colocavam-se, essencialmente, dois cenários: o PSD indicava outro primeiro-ministro para se manter no Governo (solução Durão Barroso-Santana Lopes) ou, havendo dissolução da Assembleia da República e convocação de eleições antecipadas, as tropas anti-Montenegro organizavam-se para tentar indicar outro candidato a primeiro-ministro que não o atual líder social-democrata”.
Poderia citar inúmeros textos delirantes da bolha mediática – três ou quatro dias antes destas eleições, Pedro Adão e Silva escrevia, Público, uma crónica totalmente baseada na ideia de que as sondagens eram tão iguais às de há um ano, que era evidente que as eleições de 18 de Maio eram completamente inúteis porque ia ficar tudo na mesma – e Sebastião Bugalho, já na discussão dos resultados, chamava a atenção para o desfasamento entre a importância do Bloco no mundo mediático e a sua expressão eleitoral (e, acrescento eu, mais expressivo desse desfasamento seria olhar para a influência eleitoral do Chega quando comparada com a sua influência mediática).
Para fugir à discussão partidarizada, podemos usar outro exemplo do desfasamento entre a bolha mediática e a sociedade, falando na trivialidade com que se repetem as acusações de que Israel ataca sistematicamente hospitais em Gaza, sem qualquer correspondência nas vezes em que se diz que o Hamas é acusado de usar sistematicamente os hospitais como base para as suas acções militares, apesar de as duas afirmações serem equivalentes e se relacionarem directamente.
Claro que podemos falar nas dificuldades das sondagens reflectirem a realidade eleitoral, mas por que razão evitamos discutir o que leva a bolha mediática a não ver sinais de alteração social que desemboca nos resultados eleitorais que vamos conhecendo, independentemente das sondagens?
Os jornalistas não têm vizinhos, não vão ao supermercado, não andam em transportes públicos, não falam com estranhos ao balcão de um tasco, não frequentam reuniões de condomínio, não conversam nas reuniões de pais das escolas, etc., etc., etc.?
A questão está longe, muito longe, de ser especificamente portuguesa, alguma coisa mudou na forma como o jornalismo (e toda a bolha mediática relacionada) é produzido de tal forma que hoje o jornalismo não parece ter qualquer competência para ser o canário na mina, produzindo sinais avançados sobre a evolução da sociedade.
Aparentemente, o jornalismo, e a bolha mediática de que se alimenta e alimenta, perdeu a ligação com a sociedade, passou de um espectador relativamente amoral do mundo para um actor moralmente empenhado em criar mundos novos.
Para mal dos pecados da imprensa e do negócio jornalístico, para entreter há alternativas melhores, para mudar o mundo há instrumentos mais eficientes. Ao contrário do que parece ser a convicção de boa parte dos jornalistas, a importância do jornalismo é, hoje, bastante limitada.
Se dúvidas houvesse, é ver quantos jornalistas, nesta campanha eleitoral, se queixaram amargamente do facto de alguns actores políticos não lhe passarem cartão, preferindo ser entrevistados através de uma mediação diferente da do jornalismo.
A quantidade de jornalistas que concluíram que isso resultava da vontade de fugir ao escrutínio não tem conta.
O mais espantoso, para mim, é que a esmagadora maioria dos jornalistas que dizem isto nem se dão conta de como estão a demonstrar a sua própria irrelevância: o escrutínio jornalístico que interessa e tem valor não é aquele que depende da boa vontade do escrutinado, é mesmo aquele que é feito contra a vontade do escrutinado.
Se estão à espera de que os escrutinados queiram ser entrevistados para os escrutinar, não admira que a sociedade não atribua grande valor ao seu trabalho.
Acredito que o único partido de esquerda que genuinamente gosta do povo e vive “em comunhão” com ele é o PCP.
Basta observar as imagens dos tradicionais almoços de carne assada promovidos pelo partido. Ali vemos gente real — pessoas que comem carne assada e frequentam as coletividades da terra. Não são aqueles que preferem sushi ou tofu e que enchem as noites do Lux.
Apesar dessa proximidade com o povo, o PCP é, paradoxalmente, um dos responsáveis por agravar as dificuldades do mesmo povo que diz defender. Através da promoção sistemática — e muitas vezes injustificada — de greves nos serviços públicos, o partido penaliza diretamente quem mais depende deles: os que não têm transporte próprio, os que não podem colocar os filhos em colégios privados, os que não têm acesso a cuidados de saúde fora do SNS. É no setor público — o único onde as greves realmente têm impacto — que o PCP exerce esta forma de pressão, com consequências nefastas para os mais vulneráveis.
Enquanto organização marxista-leninista, a lógica do PCP é menos política do que quase religiosa. Os seus prazos não são os da vida comum, mas os da utopia. Assim, o partido sente-se confortável em sacrificar o bem-estar de uma geração concreta de povo real, em nome de objetivos abstratos e futuros. Castiga-se o povo de hoje para manter o controlo dos sindicatos — controlo visto como essencial para alcançar os míticos “amanhãs que cantam”. O problema é que esse mesmo povo, mais preocupado em garantir o dia de hoje, há muito deixou de acreditar em amanhãs redentores. E por isso, afasta-se de quem, mesmo jurando-lhe amor, se mostra disposto a imolá-lo num altar de sacrifício ideológico.
Por isso mesmo — ainda que lentamente — o PCP vai definhando.
Temos um sistema de financiamento partidário que se auto-alimenta: como o financiamento depende do número de votos, quem tem mais votos tem mais recursos disponíveis até à eleição seguinte.
Bem sei que ter mais recursos não tem relação directa com os resultados da eleição seguinte, mas não é completamente irrelevante, portanto vale a pena olhar para o outro resultado das eleições, a riqueza dos partidos.
Comecemos pelo ADN, que, sem eleger qualquer deputado, no ano passado passou a ter um financiamento anual de cerca de 340 mil euros. Este ano perdeu cerca de um quinto dos votos, portanto vai ter menos uns 65 mil euros anuais (todas estas minhas contas, neste post, são aproximações muito grosseiras).
O PAN está, mais ou menos, nas mesmas circunstâncias.
Já para o Bloco, a coisa parece que vai ficar ainda mais complicada, ainda por cima porque acentua os problemas anteriores, que começaram há algum tempo com a descida vertiginosa de 19 para 1 deputado. O Bloco passou de cerca de 275 mil votos em 2024 (920 mil euros anuais) para os actuais 120 mil, portanto deve andar pelos mesmos 350 mil, mais coisa, menos coisa, do ADN e do PAN do ano passado. É uma perda muito relevante para um partido que tinha vindo a construir uma estrutura pesada de apoio.
O PC perdeu cerca de 20 mil votos, portanto deve ficar pelos 600 mil euros de financiamento anual (uma perda de que não anda longe dos 10%), tem vindo a perder financiamento, de forma mais gradual, mas consistente, desde há muitas eleições.
O LIVRE faz o caminho inverso, ganhando 50 mil votos, aproximando-se de um financiamento de 900 mil euros anuais (um bocadinho abaixo do Bloco, no ano passado). Pode ser que tenha aprendido com o Bloco a gastar menos em estrutura em mais em produção de informação que lhe permita maior relação com os eleitores, o que lhe permitiria gerir melhor futuras flutuações de votações.
A Iniciativa Liberal tinha, no ano passado, um milhão de euros de financiamento, com os mais 20 mil votos de agora, deve crescer qualquer coisa à volta dos 50 mil euros, é dinheiro, mas é uma variação relativamente marginal.
O Chega cresceu uns 250 mil votos, portanto deve crescer uns 900 mil euros anuais de financiamento, o que deve colocar o seu financiamento anual em torno dos quatro milhões e meio de euros, provavelmente um bocadinho mais.
O PS, para além dos outros problemas todos, perdeu uns 350 mil votos, ou seja, deve perder um milhão de euros anuais, ficando aí pelos 5 milhões de financiamento (provavelmente, um bocadinho menos).
Já a AD deve poder contar com mais de meio milhão euros de crescimento, num total de mais de seis milhões e meio.
Por mim, achava útil discutir um bocadinho este outro resultado das eleições e a forma como o dinheiro dos contribuintes entra nos partidos, mas duvido que isso seja assunto que interesse a muita gente.
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A Europa inteira tem este problema comum, que não ...
A lei foi escrita, essencialmente, por Almeida San...
Exactamente. Este país tem aturado tanta aberração...
"As elites globalistas portuguesas tal como os seu...
Caro Henrique,Normalmente estou de acordo consigo....