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“Tenho Alojamento Local, mas não vou ser eu que vou resolver o problema de habitação desta cidade. No dia em que a Câmara Municipal de Lisboa decida, eu deixo de ter. Mas não é cada um que, individualmente, tem de resolver um problema colectivo”. Esta declaração não é de Ricardo Robles, é de um ex-assessor do BE e de José Sá Fernandes na CML, detentor de duas unidades de Alojamento Local e proprietário de uma livraria onde promoveu “recolha de assinaturas” para o defunto referendo com vista à proibição do Alojamento Local “em todos os apartamentos privados destinados à habitação na cidade de Lisboa”.
Pois eu acho que o caminho para a resolução de problemas colectivos deveria começar sempre através do exemplo e mudança de atitude e coerência de cada indivíduo, principalmente quando assume posições publicas sobre o assunto. Vejamos: se defendermos publicamente que o automóvel é um nefasto causador de poluição, teremos de esperar sentados ao volante nos engarrafamentos da cidade por uma lei que nos proíba a circulação? Se tivermos uma posição pública contra as touradas, fará sentido comercializarmos touros para a faena? Ou ainda, se formos activistas de esquerda pelos direitos das mulheres faz sentido fazer uso das leis capitalistas para despedir duas trabalhadoras, mães recentes em período de amamentação?
Este é mais um caso exemplar da tão propalada ética republicana. Do excesso de confiança na lei e na mudança dos comportamentos pela via ortopédica. Ou uma profunda desconfiança pelo livre-arbítrio e liberdade individual. Uma velha e conhecida tentação dos progressistas com clara genealogia tirânica.
As sociedades ocidentais foram sujeitas à mais extraordinária de todas as experiências. As necessidades de mão-de-obra barata são reais. Mas tentou-se satisfazê-las abolindo as fronteiras. Nações antigas viram-se sob a ameaça de serem reduzidas a uma espécie de aeroportos internacionais, por onde as pessoas passassem sem nada mais terem em comum do que o acatamento de certas regras. Mas o fundamento das democracias liberais ou do Estado social não é simplesmente a obediência à lei, mas a comunhão de valores a que chamamos “nação”. As nações não são dados naturais: são o resultado da história, de séculos de conflito e compromisso. Na sua origem, não está qualquer homogeneidade, mas uma pluralidade que, sem desaparecer, chegou a um sentimento de solidariedade e destino comum que faz pessoas muito diferentes identificarem-se entre si. É a nação que explica que possamos ser diversos sem cairmos sempre em guerras civis. É um património que subjaz a quase tudo o que é precioso no Ocidente: a liberdade, a igualdade, a coesão social, o pluralismo. É a isso que chamamos “segurança”, que não é apenas a contenção da criminalidade, mas o sentimento de estarmos em casa.
Nada disto tem a ver com a cor da pele, dos olhos ou dos cabelos ou com origens geográficas, nem com todas as religiões ou ideologias. É uma questão de valores comuns. O problema das migrações descontroladas não é só a chegada de pessoas que não partilham tais valores, mas a proposta woke, que pareceu dominar os regimes ocidentais, de que não deveríamos pedir nem esperar adesão ou sequer respeito por esses valores. Foi o projecto woke, inspirado pelo ódio da extrema-esquerda ao Ocidente, que acima de tudo criou insegurança. O resto são tremendas dificuldades logísticas, que agravaram a falta de habitação e o colapso dos serviços públicos. O caos migratório não é compatível com qualquer integração. Através da imigração nestas condições, aquilo que a oligarquia fez foi reconstituir a massa de trabalhadores pobres e pouco qualificados que antigamente dava muito jeito à burguesia para arranjar criadas e moços de fretes. Em Lisboa, segundo os jornais, haverá em breve novos bairros de barracas para substituir os que foram eliminados há vinte anos. É isto o “progresso”?
Ler Rui Ramos no Observador na integra aqui
"O mercado imobiliário consiste numa soma de monopólios naturais espacialmente dispersos, incapazes de serem submetidos ao jogo da livre concorrência".
Não, o que escrevi acima não está numa obscura papeleta para teóricos de conspiração, está no "Documento Técnico DGOTDU 5/2011/ Análise das relações da política de solos com o sistema económico/ Estudo de enquadramento para a preparação da Nova Lei do Solo/ Pedro Bingre do Amaral/ 2011.
Não, não foi "a momentary lapse of reason", o documento é de 2011 e foi citado recentemente, pelo autor, como sintetizando bem o seu pensamento agora, em Janeiro de 2025.
É da mesma fonte esta síntese admirável: "Dadas todas estas especificidades, pode dizer-se que o mercado imobiliário é intrinsecamente iliberalizável, se por liberalização entendermos um processo de desregulamentação e redução da intervenção do Estado, de modo a facilitar a concorrência perfeita e os equilíbrios que esta última produz. Com efeito, a desregulamentação e redução da intervenção do Estado no imobiliário e, concomitantemente, no ordenamento do território, tende a resultar em fortes desequilíbrios entre a oferta e a procura devido a processos especulativos, a aniquilar a concorrência perfeita nos sectores afins da construção e agricultura, e a onerar o colectivo com as externalidades ambientais resultantes de uma ocupação do solo descoordenada".
A tranquilidade com que são usadas afirmações completamente delirantes, como a primeira citada, para chegar a conclusões como esta, através de um processo argumentativo tipicamente escolástico, coloca o ordenamento do território num plano metafísico que renega a definição central de arquitectura paisagista enunciada por Caldeira Cabral: a arte de organizar o espaço exterior em relação ao homem.
A realidade concreta e o homem que nela habita passam a questões secundárias: se através de um processo mental de definição do que é um mercado perfeito (uma abstracção platónica que só existe nos livros de economia) é possível demonstrar que o mercado do solo não pode cumprir os requisitos de um mercado perfeito, então apenas o Estado garante a optimização social do uso do solo e apenas ao Estado deve estar atribuída a faculdade de criar valor urbano a partir de um solo (a progressiva alteração do valor relativo da capacidade produtiva de um solo e do seu valor enquanto espaço urbano coincide com o aumento exponencial do poder do Estado que se verificou desde o iluminismo).
Este novelo ideológico implícito tem sido a base de grande parte dos populistas de Estado que têm vindo a terreiro criticar uma alteração da lei semelhante à que ocorreu há um ano e que, na altura, não motivou mais que tímidos protestos, porque o seu promotor era um governo do bem (isto é, de estatistas) e não o governo dos interesses (isto é, mais confiante nas pessoa e na sua liberdade).
Que o mercado fundiário seja uma realidade, resolve-se facilmente com tiradas não fundamentadas em lado nenhum, mas de excelente efeito retórico: "A responsabilidade pelo caos edificado nas cidades e o abandono nos campos podem, com alguma plausibilidade, ser atribuídos à orientação da sua Política de Solos, agravada sucessivamente por uma série de actos legislativos que de modo cumulativo vêm acentuando, desde 1965, tal pendor. Naquele ano, com a aprovação do Decreto-Lei n.º 46 673 (Regime Jurídico dos Loteamentos Urbanos), a prerrogativa dos direitos de urbanização foi entregue aos particulares, ipso facto privatizando as mais-valias geradas pelos actos administrativos de planeamento territorial, legislando-se nesta matéria em exacto contrapelo ao progresso doutrinal alcançado nos restantes países ocidentais, quaisquer que fossem as suas ideologias governativas; a legislação manteve até hoje esse espírito, pesem embora os diversos actos legiferadores no sentido de produzir novas versões da mesma lei. Com a privatização dos loteamentos urbanos não se produziu qualquer liberalização do mercado de solos urbanizáveis, mas tão-somente a instituição de oligopólios fundiários semelhantes àqueles prolixamente criticados pelos economistas clássicos do século XIX, dos quais destacaríamos o economista clássico luso-britânico David Ricardo. O Decreto-Lei n.º 794/76 (Política de Solos) revelou-se, nas três décadas que se lhe seguiram, largamente inconsequente. O Código de Expropriações (D.L. n.º 168/99) e a figura das Perequações Urbanísticas (D.L. n.º 555/99) mais não fizeram do que legitimar com todas as formalidades jurídicas e políticas um sistema político-económico no qual todo o incremento do valor do solo causado pela actuação da administração pública reverteria a favor dos particulares. Considerando-se que Portugal desde 1970 viveu pelo menos quatro decénios de expansão urbana — mais de 60% dos edifícios portugueses têm menos de 40 anos — e que os solos urbanizáveis praticamente não cessaram de valorizar-se entre 1965 e 2005, pode-se compreender melhor o protagonismo dos promotores de loteamentos privados na gestão do território nacional de há 45 anos a esta parte. De caminho, também se compreende melhor o destino último da melhor parte dos 168 mil milhões de euros que hoje os portugueses assumem em dívida imobiliária: foram encaixados no mercado de solo".
Nem a omnipresente figura do pato-bravo, que mata qualquer ligação entre a suposta formação de oligopólios e a realidade, nem o facto do abandono rural ser um fenómeno global, nem o facto da valorização constante do solo indiciar escassez constante, nem o facto das condições de habitabilidade em Portugal terem sido mais que deficitárias durante décadas, nem a existência de extensos bairros clandestinos, dos quais, muitos de barracas, que evidentemente não resultam das deficiências da lei referidas, nada, rigorosamente nada da realidade, consegue derrubar o muro escolasticamente construído para ligar a razão e a fé inquebrantável no Estado como guardião do bem comum.
E é o produto ideológico deste longo labor escolástico que domina na academia que se dedica ao ordenamento do território, que domina nas redacções dos jornais, que domina dos eleitores dos partidos estatistas (que, em Portugal, são praticamente todos, com a excepção parcial da Iniciativa Liberal e diferenças de grau nos outros que não são irrelevantes) e que tem dominado a discussão sobre uma mais que tímida alteração procedimental na forma como o Estado distribui os resultados da escassez artificial de solo urbano que continua a criar com limitações dos perímetros e limitações da construção em altura.
Ninguém compra solo, camaradas, o que se compra é aquilo que ele pode produzir ou o espaço que ele permite usar.
No primeiro caso, o solo não é uma quantidade fixa porque a sua capacidade produtiva pode ser alterada (nem a evidência da revolução do milho, em que milhares de hectares de solo de boa qualidade foi produzido em poucas décadas, por uma sociedade não industrial e sem recurso a energias fósseis, consegue destruir o mito de que o solo não pode ser produzido), seja mudando as técnicas, seja melhorando os processos de fertilização, seja usando melhor material genético, seja trazendo água, etc., etc., etc..
No segundo caso, o solo não é uma quantidade fixa porque se pode construir para cima, para baixo (perguntem ao Hamas como se faz, se houver dúvidas), ou pode-se alterar a mobilidade, tornando a localização de um terreno útil para os objectivos definidos, quando antes não era.
A ideia de um jogo de soma nula e de uma quantidade fixa de solo é uma ideia errada, tão errada como a perspectiva marxista de que o lucro do patrão era sempre roubo da mais-valia do trabalhador, no pressuposto de que a produção era sempre um jogo de soma nula em que apenas se poderia alterar a posição relativa dos detentores dos diferentes factores de produção na sua apropriação.
Infelizmente, ainda é com base nesse erro que se olha dominantemente para o ordenamento do território e, mais grave, é com base nesse erro que se continua a tentar regular administrativamente a actividade urbana, isto é, satisfação da necessidade social de abrigo que existe desde sempre.
A contestação à alteração do regime dos instrumentos de gestão territorial é um caso de estudo muito interessante sobre o comportamento de rebanho em pessoas educadas e com elevado nível de especialização técnica.
Comecemos por explicar o que está em causa: no essencial, uma alteração de procedimentos, isto é, onde era preciso um longo calvário de cinco a dez anos para alterar um Plano Director Municipal, a alteração da lei vem dizer que, não estando em causa os terrenos mais férteis, nem terrenos com elevados riscos ambientais, essa alteração passa a poder ser feitas pelas Assembleias Municipais.
No essencial, é isto que diz a lei, pouco mais.
Mas, estranhamente, desde o Conselho Nacional para o Desenvolvimento Sustentável (um conjunto de senadores ambientais do regime, alguns dos quais meus amigos pessoais próximos e que prezo), até à Ordem dos Arquitectos e a Associação Portuguesa dos Arquitectos Paisagistas, passando por muita outra gente, contesta violentamente a alteração da lei com base em pressupostos manifestamente falsos.
O que se passa é que há um sentimento generalizado de defesa de uma ideia de contenção urbana, que se considera uma ideia sagrada e, como tal, a ser defendida seja de que forma for.
Por isso, por exemplo, há gente qualificadíssima a difundir este artigo, com o título "Como transformar um terreno rústico em urbano", como se o artigo resultasse de alguma novidade prevista na lei, quando na verdade não passa de um artigo indigente, mal informado, que foi feito com este único objectivo, o de atrair atenções para aumentar o tráfego do site que o publica.
Mais interessante é que quase todos os dias o Diário da República tem coisas como as que vou citar e que resultam da legislação já existente.
Por exemplo, o "Despacho n.º 1306/2025, de 29 de janeiro", sim, é de hoje, como disse acima, quase todos os dias há coisas destas, este é um mero exemplo de hoje, diz que "A Ministra do Ambiente e Energia, o Secretário de Estado do Turismo, ao abrigo da parte x do Despacho n.º 12082/2024, de 14 de outubro, do Ministro da Economia, e o Secretário de Estado das Florestas, ao abrigo do disposto na alínea l) do n.º 4.3 do Despacho n.º 6739/2024, de 17 de junho, do Ministro da Agricultura e Pescas, e nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 2.º, no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 8.º, todos do Decreto-Lei n.º 169/2001, de 25 de maio, na sua redação atual, determinam o seguinte: 1 - Declarar de imprescindível utilidade pública a construção de um edifício destinado a armazém e indústria tipo 3, localizado na União das Freguesias de Abrantes e Alferrarede, no concelho de Abrantes".
No caso é para abater sobreiros que estão numa zona industrial para uma empresa que precisa de expandir a sua actividade, mas não pode, porque há sobreiros na zona industrial, mas afinal pode porque há um conjunto de ministros que declaram a imprescindível utilidade pública e, dessa forma, revogam discricionariamente a proibição de abate de sobreiros, mesmo que estejam dentro de uma zona industrial prevista como tal num Plano Director Municipal.
Mas agora olhemos para um caso mais curioso, porque mais directamente relacionado com a alteração da lei que agora é contestada por tanta gente, o "Aviso n.º 2788-B/2025/2, de 29 de janeiro" (sim, também de hoje, não andei a pescar decisões excepcionais, é o pão nosso de cada dia no Diário da República), do Município da Santa Maria da Feira que dá "Início de procedimento simplificado de reclassificação dos solos ― proposta de reclassificação do solo rústico para solo urbano com a categoria de espaço de atividades económicas".
É o primeiro resultado do facto desta alteração da lei ter entrado em vigor ontem? Não, é a mera aplicação de uma alteração da lei semelhante à que agora é contestada (mas que foi fracamente contestada quando era primeiro ministro o melhor político da sua geração, António Costa), como o própio aviso, naturalmente, refere: " de acordo com o disposto no artigo 72.º-A do Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio (RJIGT), com redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 10/2024, de 8 de janeiro".
Do que se trata, afinal?
"O procedimento simplificado de reclassificação de solo, enquadra-se na alínea a) do n.º 1 do artigo 72.º-A, que tem por objetivo a reclassificação como solo urbano na categoria de espaço de atividades económicas, de modo permitir o enquadramento para a implantação de uma unidade industrial, a incidir sobre uma área de 8,17 ha, contígua ao espaço de atividades económicas designado por LusoPark e próxima do Europarque, classificada e qualificada no Plano Diretor Municipal de Santa Maria da Feira como Solo Rural - Espaço Florestal de Produção, localizada na zona sudoeste do concelho, na freguesia de São João de Ver e da União de Freguesias de Santa Maria da Feira, Travanca, Sanfins e Espargo". (tem dez dias de discussão pública, ide todos a correr contestar esta coisa gravíssima de passar um monte de eucaliptos e pinheiros sem grande interesse numa fábrica onde se cria riqueza).
Olha, olha, afinal, para além do procedimento normal (kafkiano e normal, em Portugal, são frequentemente coisas compatíveis) de alteração de planos em que se transforma solo rústico em urbano, ainda há um monte de procedimentos excepcionais, relacionados ou não com o imprescindível interesse público (já foram olhar com atenção para o processo de licenciamento do IKEA de Loures?), para que a sociedade possa seguir a sua vida, desde que, bem entendido, conheça ou contrate quem conheça, não apenas os meandros da lei, mas sobretudo os meandros dos que decidem qual é a justa interpretação de leis sagradas, cuja alteração provocará, pelo menos, o fim do mundo (quiçá do Universo).
E se fossem dar uma voltinha pelo mundo real, os que não sabem que é assim, ou por um curso de ética, os que sabem perfeitamente que é assim mas que preferem seguir o rebanho, para não ser ostracizados?
Há muitos anos, no auge da contestação do movimento contra os organismos geneticamente modificados, centrado na ataque à empresa Monsanto e no uso do plantas adaptadas ao uso de glifosato, a principal activista desse movimento em Portugal escreveu umas coisas que amplificavam a ideia de que a Monsanto só tinha ganho um famoso processo judicial porque tinha comprado o sistema de justiça.
Achei aquilo estranho, o sistema de justiça canadiano não é conhecido por ser especialmente corrupto, os sistemas de justiça dos países mais civilizados não estão isentos de corrupção, mas são desenhados para limitar os seus efeitos (haver um juíz corrupto em primeira instância pode sempre acontecer, haver um conjunto de juízes corruptos todos comprados pela Monsanto, nas várias instâncias de recurso, já é menos provável), de maneira que resolvi investigar, a partir de uma discussão on line de durou meses.
A primeira coisa que fiz foi, naturalmente, ir à procura das sentenças dos tribunais (eram várias porque havia recursos) e, para meu espanto, eu aqui sentado em Portugal rapidamente tinha acesso às sentenças, que encontrava sem a menor dificuldade.
A minha segunda surpresa é que, não sendo o meu inglês de primeira água, conseguia perceber muito melhor o que estava em causa, as decisões e os seus fundamentos, do que lendo sentenças de tribunais portugueses, escritas na minha língua materna.
Vem isto a propósito de uma decisão do tribunal administrativo e fiscal de Castelo Branco que anula a avaliação de impacte (impacto e impacte é a mesma coisa, mas cansei-me de responder a quem me chateia de cada vez que escrevo impacto) ambiental da barragem do Pisão, amplamente noticiada na semana passada.
Como, pelas notícias e comunicados de imprensa das ONGs interessadas (desculpem o pleonasmo), parece que o tribunal se substitui a uma comissão técnica de avaliação de impacte, fiquei com curiosidade de ler a sentença, naturalmente com base numa fonte primária de informação, isto é, a própria sentença.
Claro que as decisões de impacte ambiental, que são decisões administrativas, podem ser contestadas judicialmente.
Por exemplo, há uma ilegalidade recorrente, e publicamente assumida, que poderia ser bastante mais vezes escrutinadas pelos tribunais, não se desse o caso das ONGs serem, frequentemente, beneficiárias dessa ilegalidade: as medidas compensatórias de um projecto não podem ser consideradas na decisão de aprovação de projectos que destroem valores naturais protegidos pela directiva Habitats, os projectos podem destruir valores protegidos, desde que não haja alternativa e haja um interesse público que se sobreponha ao interesse público de conservação desses valores e, só depois de decisão que se tem de basear nestes dois factores, é que então se definem medidas compensatórias para minimizar as perdas.
Usar as medidas compensatórias na ponderação da aprovação é um erro de direito que os tribunais têm completa competência para avaliar.
Já a discussão sobre se os impactos cumulativos de um projecto foram, ou não, adequadamente ponderados, parece-me matéria que, salvo erro grosseiro dos avaliadores, dificilmente um tribunal tem capacidade para avaliar.
Daí o meu interesse em ver a decisão do tribunal directamente na fonte.
Procurei, de várias maneiras e, não tendo encontrado, perguntei num grupo em que são que estão vários jornalistas, como é que eu poderia ter acesso a essa sentença.
Não é segredo que tenho uma péssima opinião sobre o jornalismo actual, mas não tão má que admita a hipótese de haver uma série de jornais, televisões e rádios a fazer notícias sobre uma decisão judicial que os senhores jornalistas desconhecem, confiando em fontes de informação secundárias e com interesses no assunto.
O facto é que, até agora (mas tenho esperança de que ainda se venha a alterar a situação), ainda não consegui ler a decisão do tribunal de Castelo Branco.
Esta também é uma das razões pelas quais o Canadá é mais rico que nós, não é apenas por ter um sistema de justiça que funciona melhor, é também por ter uma imprensa que cumpre regras básicas da actividade jornalística.
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Já que muitos empreenderam narrar os factos que se realizaram entre nós, como no-los transmitiram os que, desde o início, foram testemunhas oculares e ministros da palavra, também eu resolvi, depois de ter investigado cuidadosamente tudo desde as origens, escrevê-las para ti, ilustre Teófilo, para que tenhas conhecimento seguro do que te foi ensinado. Naquele tempo, Jesus voltou da Galileia, com a força do Espírito, e a sua fama propagou-se por toda a região. Ensinava nas sinagogas e era elogiado por todos. Foi então a Nazaré, onde Se tinha criado. Segundo o seu costume, entrou na sinagoga a um sábado e levantou-Se para fazer a leitura. Entregaram-Lhe o livro do profeta Isaías e, ao abrir o livro, encontrou a passagem em que estava escrito: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres. Ele me enviou a proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos, a restituir a liberdade aos oprimidos e a proclamar o ano da graça do Senhor». Depois enrolou o livro, entregou-o ao ajudante e sentou-Se. Estavam fixos em Jesus os olhos de toda a sinagoga. Começou então a dizer-lhes: «Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir».
Palavra da salvação.
Enganam-se os simpatizantes do Chega que reclamam para si o feito do discurso da imigração descontrolada estar a alcançar o espaço político do centro-esquerda. Na realidade julgo que a estratégia histriónica de André Ventura foi contraproducente. As causas políticas e as grandes reformas alcançam-se na conquista do centro político, não há outra forma. (Foi isso que fez Salazar nos anos 30 e 40 quando para a recuperação de Portugal tinha do seu lado a imensa maioria dos portugueses - o centro político - acossados pela decadência e repressão da esquerda republicana.)
O facto é confirmado hoje com a surpreendente entrevista de Pedo Nuno Santos ao Expresso, que, com um contorcionismo surpreendente, admitiu ter sido um erro a política socialista da “Manifestação de Interesse”, que sinalizava para o exterior um país de fronteiras escancaradas, impreparado para os fluxos de imigrantes que se verificaram. A adopção dum discurso anti-imigração alarve por André Ventura, só serviu para protelar uma abordagem séria deste complexo problema que nos anos da geringonça se avolumou em Portugal, sem que a trágica experiência de outros países europeus nos tenha servido de alguma coisa. O resultado do discurso de tasca foi o acantonamento dos socialistas no outro extremo, e constituiu por demasiado tempo uma dificuldade da direita moderada pegar no assunto sem ser imediatamente ostracizada pela comunicação social há muito capturada pelo “progressismo” populista. Durante demasiado tempo, enquanto os problemas causados por uma “entrada intensa de trabalhadores estrangeiros num país impreparado para o fenómeno em matérias como o SNS, a educação ou a habitação”, (para citar Pedro Nuno Santos) foi impossível um debate racional e consequentes medidas preventivas.
Na suspeita de que a emancipação da liderança socialista em relação aos “encostados à parede”, o bloco da esquerda radical, já não chega a tempo de emendar a mão, deixa-lhes livre o terreno para surfar o seu catecismo Woke. Vamos ver qual será o posicionamento do PS nas eleições autárquicas, onde a realidade da rua e a proximidade com os eleitores, dispensa demasiados preconceitos ideológicos. Para já a boa notícia é que os socialistas parecem já não querer estar virados para a parede. A política não se faz assim, e falta agora o Ventura perceber isso.
“P: Limitei-me a perguntar-te se esses investimentos do Estado são, forçosamente, mais eficientes que a espontânea adaptação das pessoas e empresas a situações de escassez.
R: Eu sou pragmático e gosto de deixar ao Estado o que é do Estado e aos privados o que é dos privados. As grandes infraestruturas (e.g., distribuição de energia, ferrovia) ou auxílios à adoção de tecnologia em transição requerem investimento público para serem implementados e/ou acelerados. … A dicotomia sobre a mão invisível versus planeamento, neste contexto, é conversa para boi dormir pois é evidente que há espaço a ambos. O outro dia sorri com a insistência nesta dicotomia num podcast (do Observador) de tipo litúrgico em que participaste”.
Este diálogo surgiu a propósito da retirada dos EUA do acordo de Paris, mas só marginalmente se prende com o assunto, é um diálogo (na verdade, dois monólogos) sobre uma divergência muito mais funda.
A pergunta, feita por mim, e a resposta, de um amigo, partem de pressupostos tão diferentes, que nem sequer conseguem ter um chão comum de discussão.
A pergunta é uma pergunta clássica sobre o que é o Estado, como funciona o Estado e qual o seu papel na economia, a resposta evita qualquer hipótese de discussão ao responder com uma alegação dogmática (logo, fora de qualquer discussão) que é exactamente o que a pergunta questiona "As grandes infraestruturas (e.g., distribuição de energia, ferrovia) ou auxílios à adoção de tecnologia em transição requerem investimento público para serem implementados e/ou acelerados".
Ora a pergunta mantém-se: existe alguma evidência de que o investimento público seja "forçosamente" um acelerador, como se pretende?
Por mim, vale pena manter a discussão neste ponto, neste "forçosamente", eliminando o ruído introduzido pela afirmação posterior de que "há espaço a ambos", que em nenhum momento é questionada.
A resposta das sociedades ao seu contexto assume muitas formas, mas não existe corpo teórico nem evidência empírica de que o investimento público (mais alargadamente, a intervenção do Estado, visto que pode ter outras formas relevantes, como a regulamentação) seja a forma mais eficiente de responder às alterações de contexto, forçosamente desconhecidas à partida e demasiado complexas para serem reduzidas a processos racionais de formalização da informação.
Note-se que esta afirmação não implica o dogmatismo reverso que consiste em dizer que há mercados perfeitos e que os mercados têm respostas sociais satisfatórias perfeitas, sem intervenção do Estado: por um lado os únicos sítios em que existem mercados perfeitos são os livros de economia, por outro lado nem todas as respostas sociais satisfatórias são monetarizadas, logo, podem não ter resposta satisfatória nos mercados, como por exemplo, o acesso universal a cuidados de saúde ou educação.
Para além da questão central de que apenas exercício do monopólio da violência legal pelos Estados, associado ao primado de leis democráticas, permitem amenizar razoavelmente os problemas sociais decorrentes do primado da lei do mais forte.
Os Estados usam, forçosamente, processos longos, pesados e parciais, de transmissão de informação aos mercados.
Quando essa informação está correcta e é transmitida em tempo, os Estados podem acelerar processos sociais em curso e que se consideram desejáveis.
Um dos problemas é que, frequentemente, os Estados transmitem estímulos errados aos mercados, resultando em ineficiência, ou seja, atrasam os processos de adaptação das sociedades ao seu contexto em evolução.
Outro dos problemas é que os Estados confundem, frequentemente, a sobrevivência dos mais fortes com a sobrevivência dos mais aptos, acabando por atrasar a substituição dos mais fortes pelos mais aptos.
Os mercados - insisto, só existem mercados perfeitos em livros de economia - não são mais que interacções entre pessoas.
O mecanismo central de transmissão de informação é o preço, mecanismo esse que é imensamente mais eficiente que os processos de produção, validação e devolução de informação usada pelos Estados.
É por estas razões que não se pode dar como adquirida a afirmação de que "As grandes infraestruturas (e.g., distribuição de energia, ferrovia) ou auxílios à adoção de tecnologia em transição requerem investimento público para serem implementados e/ou acelerados", pode acontecer, mas para isso é preciso que os Estados tenham informação correcta e desenhem os incentivos adequados de adaptação ao contexto, sendo muito fácil (e por isso frequente) que os Estados rapidamente transformem incentivos à adaptação das pessoas a novos contextos em mecanismos de preservação do poder de quem decide no Estado.
Liturgia, religião e coisas que tais são expressões que servem para anular a discussão sobre cada decisão e cada opção, em especial, para anular qualquer discussão sobre a eficiência de cada opção.
Um exemplo cuja informação base não confirmei (lá está, o preço das coisas transmite-me informação muito mais eficientemente) mas que serve para ilustrar.
A propósito das afirmações de Trump sobre a Gronelândia, li algures que se espera que, com algum aquecimento (para além de desenvolvimento tecnológico), as rotas marítimas do ártico possam ser crescentemente usadas no Verão, reduzindo em 40% as rotas comerciais entre a Ásia e a Europa e a Ásia e a América.
Qual é a probabilidade dos Estados processarem esta informação, que pode ter impactos relevantes na eficiência (e consequente redução de emissões) do transporte marítimo de mercadorias, de forma mais rápida e eficaz que os mercados, através do preço?
Eu diria que essa probabilidade é baixíssima.
E este é só um exemplo de como a flexibilidade dos mercados tem muito mais probabilidades de criar eficiência que os Estados.
Argumento diferente, e bastante mais sólido, é o de que os mercados são muito eficientes a processar informação no presente, mas frequentemente falham na capacidade de integrar as novas realidades do futuro, em especial se não for claro o seu impacto económico no presente (por exemplo, as emissões de hoje impactam o clima de amanhã, sem que se conheçam mecanismos de mercado que possam lidar eficientemente com este problema, para além da percepção que cada um tem do que virá a ser o futuro).
Convenhamos, no entanto, que o registo histórico dos estados fundados em visões de amanhãs que cantam também não é de molde a deixar-nos tranquilos quanto à sua lucidez sobre o futuro.
Este boneco apareceu-me numa coisa qualquer em que alguém chamava a atenção para o antigo nome da Avenida de Berlim, que ligava o aeroporto terrestre e o aeroporto fluvial.
A mim, por causa de toda a discussão sobre a pequena alteração à legislação dos instrumentos de gestão territorial (antigamente eram planos, agora são instrumentos de gestão territorial, e eu acho bem, porque a complexificação do nome traduz bem a evolução do sistema do planeamento que temos), em especial, por causa da argumentação de alguns dos seus críticos mais radicais - os que defendem o monopólio do loteamento do Estado, como condição essencial para a garantir a qualidade do espaço em que vivemos -, o que me chamou a atenção foi o bairro da Encarnação.
E chamou-me a atenção porque o bairro da Encarnação aparece nessa argumentação como um exemplo demonstrativo da superioridade do monopólio do loteamento pelo Estado, o único método que permite tomar decisões racionais e assentes no bem comum, por oposição ao caos criado pela especulação que nasce da possibilidade de loteamento por privados (por convenção genericamente aceite, da mesma maneira que aos planos se passou a chamar instrumentos de gestão territorial, ao mercado fundiário passou a chamar-se especulação).
O bairro da Encarnação é de 1938 e corresponde à materialização das ideias reaccionárias do Estado Novo inicial em matéria de habitação social, respondendo, não às necessidades sociais existentes mas ao interesse ideológico do regime num Portugal ruralista, que Reinaldo Ferreira, na sua longínqua Lourenço Marques, nos anos 50, sintetiza como ninguém: "Quatro paredes caiadas,/ um cheirinho a alecrim,/ um cacho de uvas doiradas,/ duas rosas num jardim,/ um São José de azulejo/ sob um sol de primavera,/ uma promessa de beijos/ dois braços à minha espera...".
Numa altura de rápido crescimento de Lisboa, correspondendo à rápida urbanização do último país agrícola da Europa (como lhe chamou Pedro Lains, usando o peso do sector primário no PIB do país, como critério), com profundíssimas carências habitacionais - casas mais que sobrelotadas, na sua maioria sem infraestuturas básicas, como saneamento e electricidade, muitas sem água corrente, etc. - o Estado escolhe criar espaços de qualidade para as classes dominantes e um programa de "novos bairros" que sacrificam a capacidade de dar um tecto a quem precisa, construindo mais densamente, à ideia de um Portugal dos Pequenitos, cheia de casas portuguesas, em que "A alegria da pobreza/ Está nesta grande riqueza/ De dar e ficar contente".
Ao contrário do fascismo italiano, industrialista e futurista, o Estado Novo, sobretudo o Estado Novo inicial, é ideologicamente ruralista e reaccionário e desenha a cidade em função dessa opção.
O espantoso é usar-se uma ideia romântica do urbanismo do Estado Novo (volto a insistir, sobretudo do Estado Novo inicial, a partir dos anos 50 do século XX a realidade impôs-se, avassaladora, através de construção clandestina, criação de bairros de barracas, etc., uma verdadeira crise de habitação de dimensões estratosféricas, obrigando o regime a rever a forma como o assunto era tratado), baseando-se no que hoje são os espaços urbanos desenhados para as classes dominantes nessa altura e num evidente anacronismo de análise em relação a bairros sociais criados, manifestamente desligados do tecido urbano existente (não, não é só aqui na Encarnação que o bairro aparece como uma espécie de quisto numa matriz rural, Caselas, Serafina e outros que tais, mesmo o Arco do Cego, que é anterior e projectado ainda na primeira república, tem uma localização sub-urbana e desligada do tecido urbano existente, na altura em que é desenhado), e que respondem mais às necessidades políticas dos regimes que os promovem que às verdadeiras necessidades da população.
Usar estes bairros para contestar a criação de habitação mais barata através da afectação de terrenos rurais a usos urbanos, quando foi exactamente isso que foi feito nesses bairros, não deixa de ser uma ironia divertida, extraordinariamente eficaz para arregimentar politicamente tropas para quem a história e a realidade são coisas sem grande interesse.
«A União Europeia é muito má para nós» - diz Trump. «Juiz Conselheiro acusado de recorrer à prostituição de seis menores»... Outras várias: o deputado do Chega anda no gamanço de malas nos aeroportos; nos EUA mais um tiroteio numa escola, mais um suicídio; O F. C. Famalicão já vai na segunda metade da tabela classificativa e eu coxeio do pé, resisti uma hora de andança à caça. O preço dos combustíveis sobe e o supermercado faz eco. Há empresarios que «apoiam a área metropolitana do Minho contra "visão minifundiária" [ó desditoso Minho, berço da Nação!]».
São tudo notícias pescadas no Sapo por quem, em regra, só pesca à linha e em lugares de ar puro.
A nossa vida deu nisto. E, não indo a pormenores (só para não dormir pior), a cavalgada do Trump historicamente desejo e rezo seja a do Gen. Custer. The Long Battle of the Litlle BigHorn, o massacre. Oxalá morram menos. Mas que Trump nem tenha tempo de descalçar as botas. Em nome da Humanidade! O penteado está menos dado a caricaturas. A pose é sobranceira, arrogante, e os pés devem cheirar a quem os tem sobre o mundo a ferver. A Europa jaz «posta nos cotovelos: de Oriente a Ocidente jaz, fitando,/E toldam-lhe românticos cabelos/Olhos gregos, lembrando.» (in Mensagem, Fernando Pessoa.)
O mais é desnecessário, a não ser que prossigamos essa Mensagem. («Sem a loucura que é o homem/Mais que a besta sadia,/ Cadáver adiado que procria?»)
Já não sabemos. Mas será prudente antes de procriarmos averiguar o que vai nos EUA, na China, no Médio Oriente e na desgraçada Ucrânia. E em nós mesmos, europeus. Alvíssaras pela cabeça de Putin. Ponto de fé: Trump escorregará em definitivo por si abaixo.
(E com Famalicão e o meu pé coxo aguentarei eu sozinho. Há males, para início do ano, bem piores!!! Como a violência que se expande, e os preços do supermercado também.)
Em boa parte das notícias sobre a demissão do responsável pelo SNS, aparece a informação de que teria sido autorizado a acumular funções de médico, desde que sem pagamento.
Não me lembro de alguém ter dado realce a este pequeno pormenor.
Não faço ideia quem autorizou a acumulação de funções, desde que não remuneradas, o que me interessa é que este tipo de jogo de sombras com as regras que existem é o pão nosso de cada dia na administração.
Claro que quem autorizou sabia perfeitamente que o senhor ia fazer o que é corrente: formalmente não há pagamentos porque se faz uma empresa que é receptora dos pagamentos.
A autorização é para contornar a regra que impede a acumulação, a referência à ausência de pagamentos é para justificar uma decisão legal, mas ilegítima e injustificável.
Há dezenas, centenas, milhares de situações destas na administração pública, usando formalmente excepções e quejandos, que tornam letra morta as regras formais, substituídas por práticas que toda a gente sabe que existem, que são materialmente ilegais, embora possam ser formalmente justificadas tornando a administração pública um imenso mercado de pequenos favores e silêncios, só quebrados quando alguém se sente suficientemente injustiçado para fazer chegar uma denúncia documentada onde for mais útil (a hierarquia, os jornais, o amigo do Governo, o amigo da oposição, depende das circunstâncias).
Quando brevemente fui vice-presidente do ICN tinha um motorista (penso que essa atribuição de motorista nem teria grande base legal, não sei) e das primeiras coisas que me informaram é que os motoristas da direcção recebiam mais 30% de ordenado em horas extraordinárias (os dos gabinetes do governo acho que eram mais 60%, em princípio, mas tudo isso era negociável, pessoa a pessoa) que tinham de ser autorizadas e validadas por mim (coitado do desgraçado a quem calhou ser meu motorista).
Note-se que ser motorista de alta direcção é um cargo bastante desejado (pelas razões que referi e outras), embora sujeita aos maiores abusos por parte de dirigentes sem carácter (exemplo, um dia Sócrates, ainda ministro do ambiente num governo empenhado na tolerância zero nas estradas, entra no carro em Aveiro e diz ao motorista que tem uma reunião dentro de hora e meia em Lisboa a que quer chegar a horas, mas que o motorista é o responsável pelo cumprimento pelas regras de trânsito, sabendo perfeitamente que tem instruções estritas dele, ministro, para não passar os limites de velocidade, e que ia aproveitar a viagem para dormir, confiando que chegava a horas à reunião), mas é também uma posição de elevada confiança pessoal porque a quantidade de informação que chega aos motoristas é muito elevada (irrelevante para quem genericamente cumpre as regras, mas questão muito sensível para outros).
Num registo menos directo, toda a gente conhece a história dos professores universitários turbo, que estavam em muitos sítios ao mesmo tempo (a carreira universitária é das que mais usam esquemas para receber mais pela exclusividade, sem perder a possibilidade de ter outras fontes de rendimento).
Ou a muito conhecida história de António Costa que recebia mais por ser presidente de câmara em exclusividade, o que não o impedia de ter um segundo ordenado, maior que o primeiro, para participar semanalmente num programa da SIC, ao abrigo de uma interpretação criativa da excepção que existe para os direitos de autor, que lhe permitia receber os serviços prestados de comentador político como direitos de autor.
O alheamento geral e desinteresse pela investigação dessa autorização que permitia acumular funções, desde que condicionada a uma circunstância que todos sabiam que não se iria verificar, usando um esquema manhoso para formalmente todos puderem dizer que cumpriram formalmente a lei, é um bom retrato do alheamento e desinteresse com que se olha para a gestão da administração pública.
Com os resultados conhecidos e crescentemente piores.
Um croquete de jeito é um croquete que tem o sabor e a consistência que se pretende, o que implica encontrar um delicado equilíbrio entre a necessidade de se manter firme e hirto durante a fritura, mas macio e delicado na mordedura.
Assim são os grandes acordos internacionais, têm de, ao mesmo tempo, serem sólidos para durarem, e flexíveis para se adaptar a realidades muito diferentes e em mutação constante.
Lembrei-me disto porque estava exactamente na enésima tentativa de conseguir fazer uns croquetes de jeito feitos por mim quando recebi uma mensagem com a "executive order" de Trump que retira os Estados Unidos do acordo de Paris.
Tenho a certeza de que muitos dos meus amigos acharão esta decisão catastrófica, porque acham que a única forma de lidar com alterações climáticas é através de um acordo supranacional, vinculativo, que obrigue os governos a aplicar as medidas necessárias para gerir os problemas relacionados com o assunto.
Eu, que há muito me rendi à lucidez de Deng Xiao Ping, e portanto acho que tanto faz a cor do gato, o que interessa é que cace ratos, deixei-me destes fervores sobre a bondade do multilateralismo como solução única, sobretudo se vinculativa, para garantir uma vida boa às pessoas comuns (se ainda tivesse dúvidas, ter-me-ia bastado acompanhar a inacreditável deriva da ONU em relação ao conflito na palestina para me vacinar contra qualquer crença na bondade das burocracias internacionais).
A mim parece-me evidente que o esforço destas burocracias internacionais e plutocráticas (vão lá estudar as origens sociais dos decisores destas burocracias, se tiverem dúvidas) para impor a linha justa aos estados, preferencialmente de forma vinculativa, acabaria sempre por gerar movimentos de sentido contrário no sentido dos estados resgatarem o poder que tinham cedido a organizações complexas, opacas (frequentemente as decisões são justificadas com a ciência que se produz atrás de biombos que as pessoas comuns não conseguem entender) e dificilmente escrutináveis, cujas chefias não são produzidas por processos democráticos (por exemplo, o Secretário-Geral das Nações Unidas depende mais do voto de ditaduras que de governos legítimos).
Trump, deste ponto de vista, não é nenhuma novidade, é apenas a reacção aos excessos multilateralistas que deram origem ao Brexit e outras coisas que tais.
Se esperarmos tempo suficiente, o pêndulo volta a andar no sentido inverso.
No entretanto, como sempre, as sociedades vão-se adaptando aos novos contextos em que vivem, incluindo os que resultam de alterações climáticos, como mais ou menos choro e ranger de dentes, como sempre.
Oeiras tinha dos melhores solos agrícolas do país, daí a velha piada de que os solos eram tão bons que até o betão crescia.
Com o actual sistema de planeamento e ordenamento do país, Oeiras tem hoje 75% do seu território classificado como urbano (uma percentagem ainda longe dos 100% de Lisboa, incluindo o Parque de Monsanto).
Como demonstração da capacidade do actual sistema de planeamento e ordenamento salvaguardar valores naturais fundamentais, como o solo agrícola mais fértil do país, parece-me que estamos conversados.
Mas, aparentemente, há quem ache que o verdadeiro perigo para o património natural do país é uma mera alteração de procedimento - onde havia um longo, opaco, complexo, discricionário e arbitrário processo de alteração de solos rurais em urbanos, passa a haver um processo mais simples e que responsabiliza politicamente os responsáveis - que permite fazer exactamente o que já se fazia, mas de outra maneira.
Não tenho informação sobre as características dos 25% do concelho de Oeiras que não é urbano, mas suspeito, conhecendo o sistema como o conheço, que sejam os 25% que Isaltino não conseguiu transformar em área urbana (Isaltino não é António Costa, que conseguiu chegar aos 100% urbanos em Lisboa e garantiu uma portaria reconhecendo a inexistência de Reserva Ecológica Nacional no concelho a que presidia), exactamente porque são 25% em que seria mais difícil fazer aceitar a sua urbanização.
O que posso garantir é que para qualquer presidente de câmara de Oeiras é imensamente mais fácil politicamente (embora mais demorado e incerto) conseguir a transformação desses solos rústicos em urbanos através de uma revisão do PDM (quando não mesmo da sua suspensão, um mecanismo previsto na lei) que através de decisões pontuais, ao abrigo de processos extraordinários, na Assembleia Municipal.
No opaco e kafkiano processo de ordenamento que temos, o Presidente de Câmara escudar-se-á na administração central para justificar os resultados obtidos, atirando responsabilidades de ocupação de solos agrícolas para cima de terceiros, mas quando a proposta é dele e dos seus serviços, é ele que fica nos cornos do toiro, quando tiver de fazer a discussão na Assembleia Municipal e a discussão pública das suas propostas.
Simplificar processos permite responsabilizar mais que enfiá-los num buraco negro administrativo do qual saem resultados estranhos como por milagre, sem que ninguém seja responsável por eles.
Leitura da primeira Epístola do apóstolo S. Paulo aos Coríntios
Irmãos: Há diversidade de dons espirituais, mas o Espírito é o mesmo. Há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo. Há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. Em cada um se manifestam os dons do Espírito para o bem comum. A um o Espírito dá a mensagem da sabedoria, a outro a mensagem da ciência, segundo o mesmo Espírito. É um só e o mesmo Espírito que dá a um o dom da fé, a outro o poder de curar; a um dá o poder de fazer milagres, a outro o de falar em nome de Deus; a um dá o discernimento dos espíritos, a outro o de falar diversas línguas, a outro o dom de as interpretar. Mas é um só e o mesmo Espírito que faz tudo isto, distribuindo os dons a cada um conforme Lhe agrada.
Palavra do Senhor.
"contestam que a crise da habitação se resolva com a desafetação de solos de Reserva Agrícola Nacional, tendo em conta que apenas 4% do território nacional é ocupado por solos muito férteis e que a selagem dos solos promoverá uma degradação total e irreversível à escala humana".
Este parágrafo é um dos pontos de uma petição com mais de um ano, contra a medida tomada então pelo governo de António Costa, semelhante à que agora foi tomada pelo governo de Montenegro, com a diferença essencial de que no primeiro caso a passagem de solo rústico a urbano - por um processo centrado nas Assembleias Municipais e não na kafkiana consulta a diversos organismos da administração central em que cada funcionário diz uma coisa diferente - apenas poderia ser usado para promoção pública, e a segunda alarga essa possibilidade a promoção privada (ambas condicionadas quanto ao preço final das casas, na primeira venda, uma espécie de tributo que o vício paga à virtude).
Não sei de onde vem o valor de 4% do território ocupado por solos muito férteis, mas os terrenos muito férteis não podem ser ocupados ao abrigo desta legislação, apenas podem ser ocupados ao abrigo da legislação geral, através do ínvio processo de delimitação da Reserva Agrícola Nacional nos PDM, ou da desafectação de terrenos em concreto, que é o pão nosso de cada dia.
O que sei é que o parágrafo em causa é bem a demonstração da falta de seriedade nestas discussões e da preguiça da imprensa (ou, na hipótese mais caridosa, ignorância) em assuntos com alguma tecnicidade.
Comecemos pelo básico: apesar da sugestão implícita que é feita, a Reserva Agrícola Nacional não ocupa 4% do território, ocupa 16% do território.
Ou seja, a área de RAN, que é sempre descrita pelos que defendem a sacralidade das regras que existem como extremamente rara, corresponde a mais 50% da área ocupada por eucaliptos, que é sistematicamente referida como sendo evidentemente excessiva, às vezes pelos mesmos.
Repare-se agora nesta frase, retirada do relatório do ordenamento do território de 2024: "Na Golegã, Alpiarça, São João da Pesqueira e Mirandela a RAN representava mais de 50% da área municipal". A que se pode acrescentar mais esta informação: "Em 2018, 68% da RAN continental (disponível em formato vetorial) era efetivamente explorada para fins agrícolas. Em São João da Pesqueira, Campo Maior e Golegã a superfície de RAN ocupada por agricultura ultrapassava mesmo os 90%. Por outro lado, o potencial produtivo deste tipo de solos encontrava-se desaproveitado (percentagem de RAN ocupada com agricultura inferior a 25%) em seis municípios (Barrancos, Barreiro, Seixal, Espinho, Almodôvar e Nisa)".
E um vulgar de Lineu pergunta-se: mas é em São João da Pesqueira que se concentram solos férteis de Portugal?
Não, só que há muito que a Reserva Agrícola Nacional deixou de ser o conjunto de solos mais férteis do país, para incluir muitas outras coisas, como os socalcos do Douro, que são agricolamente muito valiosos, mas de férteis têm muito pouco.
É aliás muito curioso ver como a economia resiste à irracionalidade administrativa: em São João da Pesqueira, em que o vinho do Porto paga a gestão, mais de 90% da área de RAN é ocupada agricolamente, mas em Barrancos, em que a pobre agricultura de cereais de sequeiro predomina, menos de 25% dos solos da RAN estão dedicados à agricultura.
Por mais que se grite, se façam regras, petições e manifestações, no fim a economia vai gerir sempre a paisagem, os planos deveriam servir para compreender os processos de gestão da paisagem, permitindo desenhar medidas que os influenciassem no sentido pretendido pelas comunidades, em vez de serem os instrumentos de canalização da incompetência dos técnicos que, por não compreenderem o mundo em que vivem, querem usar a lei e o monopólio da violência legal que caracteriza o Estado, para impor aos outros as paisagens com que sonham.
Por alguma razão Ilídio de Araújo insistia que o mais relevante de um plano era o que sobraria se no dia da sua apresentação um mafarrico qualquer queimasse todos os seus elementos materiais.
E, pelas mesmas razões, há uns quinze anos, escrevi um epitáfio da Reserva Agrícola Nacional, em forma de relatório da sua autópsia.
Daí para cá, só tenho vindo a reforçar as razões que tenho para ficar deprimido de cada vez que acabo a encolver-me no que quer que seja ligado ao absurdo sistema legal e administrativo a que chamam ordenamento do território.
A discussão sobre uma mera alteração procedimental na lei dos instrumentos de gestão territorial (a passagem de solo rústico a urbano, que tipicamente é feito em complicados processos burocráticos que duram anos porque temos uma administração discricionária e arbitrária em que cada funcionário faz o que entende, passa a ser feita num processo simplificado totalmente controlado pelas Assembleias Municipais) tem sido exemplar na demonstração do que é a falta de qualidade do processo de decisão público e, mais ainda, de discussão no espaço público, em especial nas redacções dos jornais (nos comentadores encontra-se mais diversidade e bom senso que nos jornalistas, basta ler o que hoje escreve no Expresso Luís Aguiar-Conraria).
Comecemos por uma verdadeira indignidade a que a imprensa não dá importância nenhuma.
O Senhor Presidente da República promulga um diploma que considera uma entorse ao processo de planeamento mas, para justificar o facto de promulgar um diploma que considera errado (tem duas hipóteses, ou veta por ser inconstitucional, ou veta politicamente, se acha que é uma entorse), fundamenta-se numa mentira evidente, a execução do PRR, que não tem nenhuma relação com o diploma (eu não tenho pretensão de ensinar direito ao Senhor Presidente da República, até porque não é por ignorância que esquece a lei, é mesmo por indignidade, e na verdade a sua decisão não é um acto administrativo, portanto não tem de cumprir esta norma, mas seria bom que se exigisse aos mais altos responsáveis institucionais que cumpram o básico dos básicos na relação com as pessoas comuns: "A preterição da fundamentação do ato administrativo (no sentido de falta / ausência ou sua insuficiência) gera a sua invalidade, ainda que se discuta se a mesma se traduz na anulabilidade (artigo 163.º do CPA) ou nulidade (artigos 161.º, n.º 2, alíneas d) ou g) e 162.º do CPA)".
Pois bem, a imprensa primeiro repete esta evidente mentira como se fosse verdade e, quando a oposição resolve pegar nesta mentira para atacar o processo legislativo, negando que ela seja relevante (o que é verdade), a imprensa não se vira para o Senhor Presidente da República pedindo-lhe que explique por que razão resolveu invocar, oficial e formalmente, uma mentira como fundamentação para uma decisão sua, nem faz inflamados artigos de opinião realçando que a degradação das instituições é, em grande parte, a normalização deste tipo de actuações por parte dos responsáveis pelo bom funcionamento das instituições.
Deixemos agora de lado esta chuva dissolvente que Marcelo Rebelo de Sousa tem vindo a aspergir pelas instituições e olhemos para a forma como o jornalismo trata este assunto, partindo da inacreditável peça em que Rafaela Burd Relvas resolve expor a sua ignorância económica hoje, no Público.
De acordo com a grande economista Rafaela Burd Relvas, o jornal Público tem um preço de capa especulativo, porque o preço do Público está acima da mediana do preço dos jornais.
É exactamente isto que a Senhora Rafaela Burd Relvas defende hoje numa peça de duas páginas em que confunde a mediana do mercado com o valor de mercado, em que esquece que a mediana da venda de casas inclui a venda de casas usadas e não é a mediana da venda de casas novas, em que confunde preços de referência com tectos máximos de venda de casas e, sobretudo, acha que o preço das casas reais que são objecto de transações reais é definido pelo tecto máximo de um diploma legal e não pela lei da oferta e da procura.
A ideia de que em Guimarães as casas vão aumentar porque o tecto máximo de venda de casas prevista na lei que permite aumentar a oferta está acima da mediana do mercado real é uma ideia genial, ao mesmo nível da afirmação, peremptória, de Pedro Bingre do Amaral, no debate em que estive na Quarta-feira, de que a terra é o maior monopólio, portanto não se lhe aplica a lei da oferta e da procura.
Vender imóveis novos a preços mais altos que a mediana dos preços de vendas reais, que incluem imóveis usados, de acordo com Rafaela Burd Relvas, uma jornalista de referência de um jornal de referência, é a definição de especulação, não a criação de artificial de escassez para obter preços mais altos, como insistem, erradamente, os manuais de economia.
Com Presidentes da República e jornais assim, como raio se pode pretender que a qualidade das políticas públicas seja elevada?
Podemos debater a importância da aparência de um candidato a um cargo político? É evitável que o eleitor estabeleça juízos com base no aspecto físico de um candidato? Não será a elegibilidade, popularidade de um candidato dependente do cruzamento de diferentes factores, para além da eloquência, inteligência, assertividade e empatia? A beleza não conta? Todos sabemos que sim.
De pouco nos serve menosprezar a natureza humana, e o eleitor ainda não responde aos estímulos como um algoritmo gerado pelos critérios equidistantes e racionais (?) da bolha duma redacção de jornal. Evidentemente que, na hora de adesão a um determinado candidato, se a ideologia – o modo como vê o mundo - com que ele se reveste para cativar um determinado segmento de eleitorado é relevante, muitos outros factores serão marcantes.
Como acontece numa carreira profissional, o que contribui para o sucesso, não é só a acuidade técnica ou grau de inteligência, o triunfo de um político depende do entrecruzar de muitos factores de carácter. Se o grau de combatividade e a resistência à frustração podem mitigar algumas falhas, a capacidade de liderança, de convencer os outros, desde logo os seus confrades, da bondade dos seus métodos e razões; a empatia, capacidade de cativá-los, para lá de questões objectivas – a aptidão empática também é um dado objetivo – será um factor determinante no sucesso dessa empreitada. Se tudo isto é importante no jogo da vida profissional, os defeitos físicos são determinantes nesse concurso. Evidentemente que no fim das contas, o “bom aspecto” também contribui para o sucesso: isso facilita as relações, abre portas e pontes, promove a boa vontade. Evidentemente, que num microcosmo de uma empresa ou instituição, as “falhas físicas” com mais ou menos esforço do individuo são superáveis, pela gestão das suas relações e persistência do seu redobrado esforço de afirmação interpessoal. O ser humano, mediante os seus handicaps “constrói-se” quase sempre dotado de habilidades que compensam e superam as suas deficiências. Como bem sabemos, uma pessoa muito estrábica, muito baixa, ou demasiado gorda, só para dar alguns exemplos, não está condenada ao fracasso profissional ou sentimental.
Mas estou convencido que na disputa política as coisas não se jogam exatamente assim. O desafio da afirmação pessoal no espaço público torna-se exponencialmente ampliado. Que qualidades são necessárias para compensar uma baixa estatura de um candidato presidencial, o estrabismo exagerado dum aspirante a presidente da Câmara, ou a obesidade duma candidata a primeira-ministra?
De nada serve fazer-se tabu dos defeitos físicos de um líder político porque na sua profissão eles serão sempre exageradamente exibidos pelas circunstâncias e natureza do “negócio” eleitoral. Essas imperfeições, se demasiadamente marcadas, na impossibilidade de uma relação pessoal com os interlocutores, ampliarão sempre a má vontade de quem não esteja convencido das virtudes do personagem.
É da natureza humana. E a democracia...
Estranhamente, para mim, continua a haver um monte de gente com uma fé inabalável no combate para a gestão do fogo, apesar de em contextos urbanos, em Portugal, haver fortíssima regulamentação para a prevenção de fogos.
Comecemos por este boneco:
O boneco não é dos melhores para o que pretendo, mas serve para explicar aos incautos que há limites de extinção dos fogos e que é muito fácil a um fogo estar a lavrar gerando tanta energia que não há meios de extinção capazes de o parar, e que esses limites são rapidamente atingidos num fogo que está a desenvolver-se num contexto meteorológico favorável ao fogo, com combustível disponível.
Basta que haja combustível disponível (o que significa, seco) e os ventos sejam fortes (e secos) e o fogo desenvolve-se para lá da capacidade de extinção e, frequentemente, provocando uma chuva de faúlhas à sua frente, tornando o combate um mero sistema de mitigação de efeitos, muito limitado e eficaz em circunstâncias particulares pontuais.
Ou seja, assentar um sistema de gestão de risco que assenta num instrumento que não funciona nas condições em que é mais preciso, a mim parece-me bastante estúpido (havia um manda-chuva dos bombeiros que dizia que o sistema de protecção funcionava optimamente em 98% das ignições, omitindo, naturalmente, que os 2% de ignições em que o sistema não funciona, são responsáveis por mais de 90% da área ardida e dos efeitos negativos dos fogos).
Passemos agora a outros dois bonecos:
Os dois bonecos refectem a realidade de que o crescimento dos meios de combate não se traduz em diminuições relevantes da área ardida, traduz-se na diminuição do número de fogos, isto é, menos fogos que são maiores, mais perigosos e mais intensos.
O estranho, bem visível num dos bonecos, é que a alteração do padrão de fogo, de mais fogos, mais contidos e menos intensos, para menos fogos, menos controláveis, maiores, mais intensos e nmais destrutivos, resulta da acumulação de combustível (combinada com condições meteorológicos extremas em curtos períodos).
Ora essa acumulação é, frequentemente, favorecida por políticas públicas obcecadas pela supressão do fogo, sejam medidas regulamentares, seja o reforço de meios de combate e o que se vê num dos bonecos é exactamente que após o resultado dessas políticas (um ano especialmente mau de fogos) é o investimento no reforço dos meios de combate nos anos seguintes (e poderia usar aqui o boneco clássico que relaciona a produção legislativa com a área ardida em cada ano, que vai no mesmo sentido) e outras coisas igualmente absurdas, que parcialmente, contribuem para o que cenário futuro seja ainda pior.
Ou melhor, o que é absurdo é que apesar da evidência de que gerir fogos é gerir contexto (o que é a política corrente nos fogos urbanos, pacificamente), continuemos placidamente a ignorar que o contexto dos fogos florestais está a piorar (não, não é por causa das alterações climáticas, cujo efeito não sabemos qual vai ser nos fogos porque se é verdade que pode haver um futuro com mais dias favoráveis ao fogo, também é verdade que esse futuro pode diminuir a produtividade primária, diminuindo a acumulação de combustível) e a executar políticas públicas que ignoram o contexto económico e social que favorece a acumulação de combustível, isto é, que piora o contexto.
Vir falar de combate quando estão a ocorrer fogos extremos, dizendo que o que é preciso é reforçar os meios de combate e a sua eficiência, é mesmo um disparate e um disparate monumental.
O boneco acima foi publicado por Paulo Fernandes, com a seguinte legenda: "Há duas Califórnias, uma rica em recursos e conhecimento, com o mais poderoso exército de combate a incêndios do mundo ..., a outra pobre em ambas as coisas mas com muito gado e um mosaico de fogo frequente e pequeno. O mapa mostra bem quem obtém os melhores resultados".
O mesmo Paulo Fernandes deu-me a conhecer um fogo que ele descreveu do seguinte modo: "Foram 1742 ha, 17 de dezembro de 2001 em Góis. Algum vento (20 km/h) mas nada de especial e globalmente perigo meteorológico apenas moderado". Aqui está a fotografia do dito fogo:
E acrescentou informação que me parece de interesse geral: "Em fev-março costumam ocorrer fogos de vento Fohen, como na Califórnia, nas serras de Aveiro, com vento leste. Não é difícil antever que possam ser mais graves com a conjugação certa de vento e secura".
O que se passou na Califórnea (tanto quanto percebi do que fui lendo, se já me custa perceber o fogo em Portugal, menos ainda me sinto à vontade para falar de fogos fora deste cantinho) foi uma conjugação de uma seca prolongada, ventos habituais, mas que desta vez mais fortes e uma lógica de gestão do território que esqueceu as lições do passado sobre o risco de fogo, nomeadamente no que diz respeito à necessidade de preparar as casas para as chuvas de fagulhas que ocorrem nos incêndios deste tipo (muito intensos, com ventos muitos fortes e uma grande quantidade de combustíveis secos disponíveis).
Nestas circunstâncias o combate é practicamente inútil, e o que há a fazer é sair da frente por um caminho seguro, deixando para trás o que tiver de ser.
O facto de isto ter ocorrido no Inverno não é muito relevante, a temperatura não é um factor determinante, sobretudo se comparado com secura e vento, nem um sinal relevante de alterações climáticas (vale a pena ouvir aqui a sensatez de Carlos da Câmara sobre este ponto em concreto).
Falar de alterações climáticas sobre estas matérias, como explica aqui quem sabe, não é muito útil, podendo mesmo ser contraproducente, não porque não estejam a ocorrer alterações climáticas, mas porque para a gestão do fogo é muito mais relevante a gestão de combustíveis e a engenharia das construções que as adaptem para as poucas vezes em que o fogo ocorre em condições extremas porque, tarde ou cedo, isso acontecerá e o combate será pouco mais que inútil.
Fogos de Inverno sempre houve e haverá, a maior parte dos quais, muitíssimos úteis e que devem ser deixados em paz, acompanhados, mas deixados em paz, porque são uma maneira muito barata e eficiente de evitar problemas no Verão.
Mas com combinações de vento e secura que, sendo raras, podem acontecer, a coisa pode ser um problema sério, num Inverno qualquer, se continuarmos neste sonambulismo sobre gestão de combustíveis finos que resulta do abandono das terras marginais e pobres.
Há uns quatro anos ter Marques Mendes como futuro Presidente da República parecia uma inevitabilidade. E a razão era simples, um público infantilizado adorava Marcelo e o clone de Marcelo mais à mão seria Marques Mendes.
Hoje, justamente por se assemelhar demasiadamente a Marcelo, o caminho de Marques Mendes não está fácil. De facto, o mimetismo entre os dois é grande. Ambos foram líderes do PSD, sem grande sucesso, e ambos ganharam popularidade no comentariado, optando sempre por, sem riscos, dizerem aquilo que as pessoas querem ouvir.
Ainda que haja idiossincrasias que os distingam, de certa forma Marcelo é "one-of-kind", irrepetível, Marques Mendes terá dificuldade em se distanciar de Marcelo.
É indiscutível que as atitudes "tira batatas fritas", "muda cuecas" e "irrompe flash interviews futebolísticas" contribuíram muito para a erosão da função presidencial. Neste momento os portugueses querem resgatar o cargo, restituir-lhe gravitas e acabar com o seu carácter clownesco. E é neste sentido que se agarram a alguém que, mesmo não sabendo o que pensa acerca da maior parte dos temas, poderá, na sua visão, ter as características para trazer de volta a dignidade do cargo. E é assim que surge um almirante, alto, bem-apessoado, que mesmo para missões civis trajava à militar.
Se a principal característica de Marques Mendes é ser próximo de Marcelo, a principal característica de Gouveia e Melo, aquilo que o distingue e faz emergir, é ser, de certo modo, um anti-Marcelo.
Mas será o Almirante Gouveia e Melo uma inevitabilidade, não disporá o PSD de uma personalidade alternativa que lhe possa fazer frente?
Penso que Gouveia e Melo não é uma inevitabilidade. A principal razão é que a sua actual aparente unanimidade irá, necessariamente, desvanecer-se. Gouveia e Melo é actualmente um candidato "catch all", recolhendo preferências em todo o espectro político. À medida que a campanha se for desenvolvendo Gouveia e Melo terá que esclarecer melhor as suas opções políticas, e como tal, necessariamente, a sua base de apoio irá estreitar-se. Claro que uma campanha presidencial permite algum discurso do tipo "miss mundo", mas, ainda assim, terão que ser dito coisas que não são consensuais e, como tal, divisivas.
Tendo o perfil de Marques Mendes dificuldade em ganhar tração, e isto apesar da sua enorme exposição mediática, seria importante que o PSD pudesse promover um candidato que desse corpo à principal demanda do povo, restituir dignidade ao cargo presidencial.
Estando Passos Coelho voluntariamente afastado da corrida, só encontro um nome que possa corresponder à encomenda social do momento. E esse nome é Aguiar-Branco. Aguiar-Branco tem desempenhado o cargo de Presidente da Assembleia da República com elevação, sobriedade e dignidade. Até por contraste com os anteriores ocupantes do cargo, Ferro Rodrigues e Santos Silva, parece-me claro que Aguiar-Branco soube encontrar o tom e a forma condizente com a respeitabilidade do cargo.
Poderemos dizer "contra" Aguiar-Branco que ele não será muito carismático, ou que ainda é insuficientemente conhecido. Ainda assim, após a overdose carismática marceliana, o regresso de uma certa normalidade seria, quanto a mim, desejável. Desejável e saudável.
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