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Mitigação e adaptação

por henrique pereira dos santos, em 31.10.24

Hoje, no Observador, João Adrião tem um artigo que, no essencial poderia dispensar este post.

De maneira geral, João Adrião e eu temos opiniões que têm uma grande área de sobreposição, mas o João tem mais certezas que eu em relação a muita coisa, o que se nota especialmente nas discussões sobre alterações climáticas, visto que o João discute a substância da argumentação e eu limito-me a reconhecer a minha ignorância e, consequentemente, não discutir o clima do futuro.

De resto, esta é frequentemente a minha posição base em assuntos excessivamente complexos para a minha cabecinha, não me passa pela cabeça discutir se a Terra anda à volta do Sol ou a inversa, parto do princípio de que se a opinião científica sobre o assunto é esmagadoramente num sentido, e se eu não sei o suficiente do assunto para ter posições minoritárias que consiga sustentar, não faz sentido tentar discutir se a menor distância entre dois pontos é sempre uma recta ou não.

Questão diferente é a discussão social decorrente do que hoje se sabe (sim, eu sei, hoje há conquilhas, amanhã não sabemos), em que tenho algumas opiniões (que, de maneria geral, com eventuais nuances, coincidem com as de João Adrião em matérias relacionadas com a gestão da paisagem).

Na discussão das políticas relacionadas com o clima, há dois grandes grupos de políticas, as que dizem respeito à mitigação, isto é, à procura de limitação da dimensão das alterações climáticas (aquilo em que se baseiam os radicais como Greta Thundberg, que acha que vamos morrer todos assados nos próximos anos se não reduzirmos imediatamente a actividade humana para os níveis que ela acha adequados), e as que dizem respeito à adaptação, isto é, as que procuram ter em atenção eventuais alterações de contexto para desenhar políticas de adaptação aos novos contextos.

Quanto às políticas de mitigação, raramente me meto nessas discussões porque tenho uma opinião ideológica, muito clara para mim, que é muito minoritária, sendo razoavelmente inútil qualquer discussão porque as posições estão muito extremadas.

O que defendo é que os mercados e os mecanismos de preços associados são instrumentos muito mais poderosos de criação de eficiência que as medidas normativas centralizadas, como definir em tratados internacionais que não se pode ultrapassar este ou aquele limite disto ou daquilo.

Como sei que mercados perfeitos só existem em livros de economia, naturalmente não tenho problema nenhum em reconhecer o papel que os Estados, incluindo os tratados internacionais, podem ter para influenciar esses mercados, mas a questão central é que o assunto e as sociedades são demasiado complexas para que seja possível impor medidas radicais para a redução de emissões sem que isso acabe, forçosamente, por sacrificar a liberdade e a democracia.

O argumento a que é mais difícil de responder aos que criticam este meu distanciamento das discussões sobre mitigação é o argumento de que, mesmo considerando que as políticas de adaptação devem ter prioridade, o facto é que a adaptação é tanto mais difícil e cara (sob todos os pontos de vista, incluindo sociais) quanto maior for a necessidade de adaptação.

Ainda assim, o risco de asneira e a dificuldade de a corrigir, parece-me demasiado grande para confiar em acções centralizadas, globais e aplicadas coercivamente.

Assim sendo, interessam-me muito mais as políticas de adaptação, mantendo a minha ideia de que os mercados e as sociedades são mais eficientes a produzir soluções que os Estados.

O que se passou por estes dias em Valência, os fogos, a construção no litoral, as políticas de produção de alimentos e fibras (incluindo o regadio e a produção industrial de fibras), ganham em retirar da equação a conversa das alterações climáticas para nos centrar no essencial: com ou sem alterações climáticas, teremos sempre cheias repentinas, teremos sempre fogos, teremos sempre problemas relacionados com a ocupação do espaço, teremos sempre de produzir alimentos e fibras, etc., etc., etc..

E, em cada um desses assuntos, é muito mais útil discutir questões que conseguimos influenciar, a escalas que conseguimos controlar, como reduzir combustíveis finos, não ocupar leitos de cheia, desenvolver mecanismos de alerta precoce eficientes, etc., etc., etc., que andar sempre com a bengala das alterações climáticas na conversa que, além de razoavelmente inútil, tem o efeito perverso de desvalorizar responsabilidades pelas acções que realmente dão origem a problemas sociais graves.

Eu sei que os meus amigos mais radicais chamam a isto confiar excessivamente na tecnologia e nos mercados perfeitos, mas eu posso reconhecer os limites que em cada momento existem nas aplicações das tecnologias e sei muito bem que não existem mercados perfeitos, o que não compreendo é a alternativa de confiar excessivamente no Estado que, para mim, é sempre um instrumento repressivo nas mãos das classes dominantes, mesmo que não seja apenas isso.

O discurso da extrema esquerda

por henrique pereira dos santos, em 30.10.24

“Nós temos é que matar o homem branco como sugeria o [Frantz] Fanon. O homem branco que nos trouxe até aqui tem de ser morto. Para evitarmos – como dizia Orlando Patterson – a morte social do sujeito político negro é preciso matar o homem branco, assassino, colonial e racista“.

Esta é uma famosa frase de Mamadou Ba, que os polígrafos desta vida dizem que não pode ser descontextualizada e que o próprio Mamadou Ba considera desonestamente citada, se tirada do contexto, mas a frase é mesmo esta e Mamadou Ba está (evidentemente em sentido figurado) a reconhecer razão a Fanon (que tinha sido referido por alguém da assistência a quem Mamadou Ba está a responder).

Agora imaginemos que uma frase absolutamente simétrica (incluindo no contexto) era dita por alguém da "extrema-direita".

Lembrei-me disto porque um amigo meu ficou muito indignado por eu ter feito um post a perguntar qual era mesmo o perigo da extrema-direita, tendo esse meu amigo ficado à espera que eu escrevesse um post sobre as declarações de dirigentes e afins do Chega.

Como há milhares de pessoas a sinalizar a sua virtude assinando uma petição para criminalizar a liberdade de expressão, como eu não preciso de fazer essa sinalização e não tenho qualquer razão para andar a comentar as tolices de Ventura e afins (sendo as tolices auto-evidentes, para mim, não se ganha nada em andar a martelar na mesma tecla, excepto no caso de achar que a liberdade de expressão deve ser limitada à expressão da virtude), achei boa ideia passar antes os olhos pelo discurso da extrema-esquerda sobre a gestão dos subúrbios pobres das grandes cidades.

Como disse, e muito bem, Rui Moreira, o discurso de que a única face do Estado nesses subúrbios é a polícia é falso, a habitação, ou pelo menos os serviços urbanos de água, electricidade e tratamento de resíduos, é providenciada pelo Estado, as prestações sociais são uma das grandes fontes de rendimento desses bairros (não há, nesta afirmação, qualquer juízo de valor, também é a Segurança Social o principal financiador do mundo rural, actualmente), os transportes públicos servem esses bairros, as escolas e creches existem, a prestação de cuidados de saúde existe, etc..

Mas mais, que não disse Rui Moreira, boa parte das associações que trabalham com essas comunidades são financiadas, pelo menos parcialmente, pelo Estado.

A esquerda insiste em contestar sistematicamente o funcionamento das instituições, o que é especialmente visível quando os tribunais decidem de forma diferente daquilo que serviria melhor a agenda a extrema-esquerda, dando origem a comunicados inflamados protestando contra o racismo do sistema de justiça português.

"Em todos os casos de brutalidade policial que resultou nas mortes de cidadãos negros, racializados, a PSP nunca foi convincente sobre as condições e motivos destas mortes. Portanto, num país cuja polícia está inegavelmente infiltrada pela extrema-direita racista, as mortes de pessoas negras às mãos de agentes policiais levantam as maiores dúvidas e preocupações sobre as reais motivações das intervenções policiais que acabam nestas mortes".

O parágrafo citado é do SOS Racismo, mas corresponde ao discurso dominante da extrema esquerda, a mesma que se ofende pelo facto de Israel falar da inflitração das agências da ONU pelo Hamas.

Estranhamente, a extrema-esquerda não se apercebe de que se é verdade que há uma sobre representação de ciganos e não brancos nas vítimas das acções policiais, também é verdade que essa sobre representação também se verifica em todo o percurso relacionado com o crime, incluindo no sistema prisional.

E quando alguém estuda o assunto, identifica rapidamente a principal (há várias) raiz dessa sobre representação no mundo do crime: a pobreza.

É uma extrema esquerda que prefere falar da violência policial (o fim de linha), esquecendo-se de defender seriamente as duas principais instituições que melhor defendem os deserdados da vida dos contextos adversos em que sobrevivem: a família e a escola.

Por mim, uns e outros podem dizer o que quiserem, não são as palavras que matam ou ferem pessoas e, na maior parte dos casos o discurso é tão troglodita que auto-limita os seus efeitos mas, se tiver de escolher, eu diria que o discurso da extrema-esquerda é bem pior que o discurso da extrema-direita, não no conteúdo, que é igualmente cavernícola, mas no facto de ser muito mais levado a sério por muito mais gente, que deveria ter muito mais juízo que o que tem.

Há cem anos, Königsberg era uma das mais alemãs das cidades alemãs. Foi capital da Prússia, o mais emblemático dos estados que deram origem ao Império Alemão. Era a cidade de Kant. 

Hoje chama-se Kaliningrado, faz parte da Rússia, e não há alemães por lá. Os alemães saíram, ou melhor foram forçados a sair, e integraram-se noutras geografia da Alemanha à América do Sul. Foi um processo doloroso, mas que a longo prazo funcionou. Iniciado em 1945, em 1955 já ninguém falava dela. 

A crise israelo-palestiniana dura há mais de 75 anos. Nestes anos os refugiados têm sido usados, pelos países árabes como peões políticos. São tratados como uns apátridas sem qualquer possibilidade, e muito menos incentivo, à integração. 

Israel tem 22.000 Km2, aproximadamente o tamanho do Alentejo. Os países árabes têm cerca de 6550000 Km2, cerca de 300 vezes mais área do que Israel. Será que a solução não deveria passar mais pela integração dos palestinianos nos países árabes do que na criação de uma "bomba demográfica" de refugiados apátridas? Sim, falo de "bomba demográfica" pois, apesar das alegações de genocídio, o número de "palestinianos" não cessa de crescer. 

Não nego que se trata de um tema sensível e que, politicamente, será sempre muito difícil de gerir. Agora ter, como temos, desde 1949, uma Agência das Nações Unidas específica para tratar desses refugiados e não se ver nenhuma solução à vista, muito antes pelo contrário, não me parece que seja a boa escolha. 

 

A judicialização das questões políticas parece-me ser, quase sempre, uma má solução.  

As declarações de Ventura, e sobretudo as de Pedro Pinto, merecem-me a mais viva repulsa. No entanto, a queixa-crime contra os dirigentes do Chega não me parece adequada, e muito menos inteligente.  

O resultado da queixa-crime será um de dois. Ou serão ilibados, e procurarão utilizar essa vitória como "legitimação" das suas posições, ou serão condenados e utilizarão essa condenação, numa estratégia de vitimização, como "prova" de perseguição pelo sistema. 

Em termos de teoria de jogos, Ventura "y sus muchachos" foram colocados numa situação win-win, ou seja, ganharão qualquer que seja o resultado. Conforme tem sido público e notório, desde os tempos de Augusto Santos Silva, Ventura tem a agradecer à esquerda muito da sua promoção. 

Acresce ainda que, ao optar pela via judicial, acusando o Chega de discurso de ódio esquerda, revela também um certo mau perder ou, pelo menos, o desejo de que as regras se apliquem com geometria variável. 

O discurso de ódio tem sido muito do "modus operandi" da esquerda, especialmente daquela mais próxima do Bloco. Lembramo-nos de em manifestações promovidas pelo Bloco, ou às quais este se associou, ver cartazes do tipo "Morte aos proprietários", "Morte aos ricos" ou "Polícia bom é polícia morto". Poderão dizer que não foi o Bloco que fez esses cartazes, no entanto também é claro que não se demarcou deles nem os condenou com a veemência que se impunha.

Dentro desta lógica do "dois pesos, duas medidas" a suprema demostração e ironia é que um dos autores e promotores da queixa-crime por discurso de ódio do Chega, o advogado Garcia Pereira, foi, ele próprio, em 2015, o protagonista de uma das maiores campanhas de discurso de ódio de que há memória na democracia portuguesa. 

Sim, em 2015, Garcia Pereira dava a cara num cartaz que apelava à "Morte aos traidores!", pressupondo-se que os traidores seriam aqueles que colocaram Portugal no Euro. 

Aquele cartaz representava um nível de ódio, ímpeto sanguinário e violência subjacente muito superior ao discurso do Chega, ainda que este tenha aspectos nos quais não me revejo e que condeno politicamente. 

De facto, o rosto de uma das maiores campanhas de ódio pretender liderar uma ação judicial de combate ao "discurso de ódio" mostra bem que há uma esquerda que não se enxerga de todo. A sua arrogância intelectual e autismo político ultrapassam todos limites.

Da madrassa de Coimbra à violência suburbana

por henrique pereira dos santos, em 28.10.24

Com curiosidade para saber de onde vinha a afirmação de Fabian Figueiredo (e outros) de uma pessoa negra tinha 21 vezes mais probabilidades de morrer às mãos da polícia que uma pessoa branca, encontrei esta tese de doutoramento (foi fácil encontrar a tese, apesar de todos os dias se fazerem teses de doutoramento em Portugal, há algumas que são instantaneamente adoptadas pela imprensa como muito importantes).

As primeiras linhas do resumo da tese definem com muita clareza o que se pode esperar da tese: "Hoje praticamente destruídos, bairros autoproduzidos como Santa Filomena, Azinhaga dos Besouros ou Fontaínhas, na Amadora – embora, em grande medida, resultado da interseção da opressão de raça e classe – tornaram-se lugares fundamentais de autonomia política coletiva, mais tarde entendidos, pelas autoridades centrais e locais, como espaços de aversão ao Estado e às suas instituições. Nos anos 1990, a relação entre planeamento urbano, fluxos migratórios e criminalidade urbana ditou os termos do debate público sobre precariedade habitacional, tornando os processos de realojamento – ao abrigo do Programa Especial de Realojamento (PER) – essenciais para cumprir o direito à habitação mas também instrumentos para redesenhar relações económicas e políticas no espaço urbano e assegurar a vigilância sobre populações negras e Roma/ciganas, em particular".

Sim, leram bem, o Programa Especial de Realojamento, o maior programa de criação de habitação acessível em Portugal, que permitiu praticamente acabar com os imensos bairros de barracas à volta das grandes cidades e resolver problemas gravíssimos de falta de condições de habitabilidade das pessoas mais pobres em todo o país também foi, de acordo com esta tese, instrumento "para redesenhar relações económicas e políticas no espaço urbano e assegurar a vigilância sobre populações negras e Roma/ciganas, em particular".

Claro que a tese não tem qualquer fundamentação sólida para esta afirmação completamente delirante e, estranhamente, a academia, em Portugal, admite teses de doutoramento terraplanistas, desde que sejam no sentido certo da história.

E lá aparece o tal parágrafo em que se pretende demonstrar o racismo associado à violência da polícia que Fabian Figueiredo cita: "Considering that according to official data, there is an estimate total of 37.000 Roma persons in Portugal, totaling 0,4% of the Portuguese population (Mendes, Magano & Candeias 2014), it is possible to ascertain that Roma people are killed 43 times more than non-Roma in Portugal. However, there is no official data regarding black populations. Following the work and methods of Pedro Abrantes and Cristina Roldão on education (2019), we used data relative to persons with nationalities of Portuguese-Speaking African Countries (PALOP) assuming nationality as a proxy to race. While its limitations must be acknowledged,119 it allows at least to trace a closer portrait of the intersection between police killings and antiblackness. Taking into account that in 2019, persons with PALOP nationalities represented 0,9% of the total population, we can roughly establish that black persons are killed 21 times more than non-blacks. These ciphers reveal the overrepresentation of Roma and black people among police killings, disclosing one of the mechanisms through which the on-going anti-Roma and anti-black genocide continues to be carried out, not only at the European borders – the Mediterranean – but within national territories, such as Portugal". 

Sim, leram bem, Ana Rita Alves considera que a existência de menos de uma morte por ano é a demonstração de que existe um genocídio anti-cigano e anti-negro em curso.

Estas teses terraplanistas da madrassa (tenho visto escrito madraça e madrassa, aparentemente sendo as duas formas defensáveis, optei pela que me parece melhor, sem nenhuma razão racional) de Coimbra, são depois repetidas pela imprensa, pelos políticos e pelos agitadores, alimentando o discurso das vítimas da opressão que se sentem no direito de resistir à injustiça de um Estado racista, ao ponto de esfaquearem pessoas que só queriam garantir que não eram cometidos crimes, ou atirar um cocktail de Molotov para um condutor de autocarros que só estava a fazer o seu trabalho normal (essencial para que as pessoas mais pobres e desfavorecidas consigam gerir a sua vida de forma menos penosa).

Luísa Semedo, uma cronista fofinha do Público, triplamente vítima, por ser mulher, mulata e bissexual, escrevia recentemente que o anti-racismo nunca matou ninguém, o que além de mentira em termos gerais, só por acaso não foi mentira, no que diz respeito ao motorista de autocarro.

Este anti-racismo radical, assente em teses terraplanistas sobre raça (uma coisa que nem existe, mas enfim) produzidas em madrassas variadas, mata sim, alimenta a violência e protege o crime organizado.

Se tiverem dúvidas, leiam outras teses, bem mais sólidas do ponto de vista académico, que procuram verdadeiramente entender a complexidade da relação entre migração, pertença étnica e crime (em especial, o crime dos crimes, o tráfico de droga), de modo a ficarem vacinados contra as estúpidas confusões entre correlação e causalidade que alimentam o discurso (o que é o menos, Mamadou Ba dizer que não quer a bófia nos nossos bairros é só uma alarvidade, em si, não tem nenhuma consequência prática, até porque quase ninguém liga ao que diz ou escreve, mesmo que seja no prefácio de um livro da autora da madrassa coimbrã que tenho vindo a citar) e a prática anti-racista radical que se traduz na violência suburbana que tem vindo a ocorrer e que demasiada gente tem procurado justificar com a evidência de que não surge do vácuo.

Para não terem de procurar muito, leiam isto, bem mais interessante.

E se, por acaso, conhecerem algum jornalista, digam-lhes que há muito mais informação por aí que a que lhes é apresentada pela madrassa coimbrã e seus seguidores.

"Mesmo sendo grandemente influenciados pela sua experiência profissional, os profissionais do sistema prisional possuem representações sociais idênticas às que são evidenciadas pela imprensa, no que diz respeito à associação que fazem de determinados grupos estrangeiros e étnico a diferentes tipos de crime. Quando analisamos dados relativos aos crimes praticados pelos grupos estrangeiros e étnico cigano nos mesmos estabelecimentos prisionais em que os profissionais foram entrevistados, observamos que não há necessariamente correspondência entre aquilo que afirmam como sendo a realidade prisional e a tipologia que apresentam. Estes aspetos levam-nos a deduzir que a imprensa pode ter alguma influência na forma como os profissionais entrevistados concebem o crime.

...

Os grupos estudados pertencem às camadas mais desfavorecidas da população. Homens reclusos e mulheres reclusas partilham do mesmo background social desfavorecido. São na sua maioria jovens (entre os 21 e os 40 anos), ainda que as mulheres apresentem um padrão mais envelhecido (31-50 anos) e os ciganos estejam dispersos pelas diferentes faixas etárias. Na sua maioria estes indivíduos são solteiros, embora essa asserção tenha de ser questionada no caso particular dos indivíduos ciganos, uma vez que estes podem ser legalmente solteiros mas estarem casados pela “lei cigana”. As habilitações escolares de quase todos estes reclusos e reclusas, comparativamente àquela que é a escolaridade obrigatória em Portugal, são baixas e até muito baixas, com a exceção dos reclusos do Leste europeu. Antes da detenção, a maioria deles ocupava profissões relacionadas com a construção civil – no caso dos homens – e limpezas ou trabalho doméstico – no caso das mulheres. Nos reclusos e reclusas de etnia cigana, a venda ambulante e o trabalho doméstico, respetivamente, são as ocupações mais encontradas. As zonas de residências dos indivíduos em estudo correspondem a bairros degradados dos arredores de Lisboa, bairros sociais de Lisboa e Porto e a acampamentos.

...

Não existe, portanto, uma associação estatística direta entre os diferentes grupos estudados e determinados tipos de crime, ao contrário do que é sugerido pelos discursos veiculados pela imprensa portuguesa e pela perceção dos profissionais que trabalham nos estabelecimentos prisionais.

...

Os grupos estrangeiros e étnico cigano possuem especificidades ao nível das condições objetivas de vida anteriores à reclusão. No caso dos reclusos e reclusas dos PALOP estão presentes a privação económica, a inserção desigual no mercado de trabalho, as vivências familiares pautadas por características desestruturantes – ausência, conflito, alcoolismo, violência doméstica –, envolvimentos escolares marcados pelo insucesso e abandono precoce e residência em espaços físicos degradados. Os reclusos e reclusas do Leste europeu, para além da privação económica e pobreza familiar, têm, quando em contexto nacional, uma inserção laboral que fica aquém das suas formações escolares e sofrem de exclusões potenciadas, quer pelo seu grupo de pertença, quer pelo grupo português. No caso dos reclusos e reclusas ciganas, as exclusões naturalizadas, quer pela população não cigana quer pela perceção e vivência do grupo étnico cigano, faz com que persistam, no geral, privações económicas, baixa inserção escolar e segregação espacial forte.

...

Os fatores económicos estão, grosso modo, na base do envolvimento criminal e da reclusão. Neste sentido, entende-se que não é de todo possível reduzir estes grupos a tipologias. Primeiro porque, mesmo havendo um elemento de base comum – a dimensão económica –, este não explica por si só os percursos de grupos que têm especificidades decorrentes de outros elementos para além da classe, como sejam os fatores culturais decorrentes das pertenças étnicas/nacionalidade e das diferenças e desigualdades de género. Portanto, há uma multicausalidade na explicação dos diferentes grupos para o envolvimento criminal e a reclusão. Existe uma constelação de causas e de pertenças que constrangem e impelem os homens e mulheres para o crime.

...

Através das trajetórias de vida narradas pelos homens e mulheres, foi possível revelar o peso significativo que a estrutura social tem na forma como determina e limita as “opções” de vida destes indivíduos. Só que, dentro da estrutura social – que é central no condicionamento da ação – não nos limitamos apenas à importância do fator económico – classe –, mas igualmente à importância da pertença a determinada nacionalidade/etnia e da pertença de género para a compreensão do envolvimento criminal. Daí ter-se usado o conceito de condições objetivas de vida, que aglomera estas três dimensões. As condições objetivas de vida determinam, mais do que qualquer outro elemento, o envolvimento criminal dos grupos estrangeiros e étnico em estudo. A maioria dos reclusos e reclusas têm consciência da sua situação desigual na sociedade, principalmente quando reconhecem as motivações para o envolvimento criminal, assim como quando perspetivam a sua vida depois da reclusão".

Vão longas as citações, vão ao original, vale a pena ler a tese, há racismo, sim, mas não, o problema central não é a violência policial ou o discurso da extrema-direita e muito menos as soluções podem ser encontradas na madrassa de Coimbra ou no anti-racismo radical, por estranho que possa parecer a quem passa o tempo a sinalizar a sua virtude, o problema somos nós, na forma como gerimos a escola, na forma como apoiamos as famílias, na forma como tentamos impedir a reincidência criminal, etc., etc., etc..

O habitual, portanto.

Domingo

por João Távora, em 27.10.24

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo, quando Jesus ia a sair de Jericó com os discípulos e uma grande multidão, estava um cego, chamado Bartimeu, filho de Timeu, a pedir esmola à beira do caminho. Ao ouvir dizer que era Jesus de Nazaré que passava, começou a gritar: «Jesus, Filho de David, tem piedade de mim». Muitos repreendiam-no para que se calasse. Mas ele gritava cada vez mais: «Filho de David, tem piedade de mim». Jesus parou e disse: «Chamai-o». Chamaram então o cego e disseram-lhe: «Coragem! Levanta-te, que Ele está a chamar-te». O cego atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus. Jesus perguntou-lhe: «Que queres que Eu te faça?». O cego respondeu-Lhe: «Mestre, que eu veja». Jesus disse-lhe: «Vai: a tua fé te salvou». Logo ele recuperou a vista e seguiu Jesus pelo caminho.

Palavra da salvação.

Kuku e o incentivo à violência

por henrique pereira dos santos, em 26.10.24

Kuku era Elson Sanches, um miúdo de 14 anos que morreu com um tiro na cabeça durante uma operação policial.

Nestes dias em que as alarvidades por parte dos políticos deveriam ser contidas, mas nunca confundidas com ilegalidades (o assunto resolve-se nas mesas de voto, não nos tribunais), tenho visto dezenas de referências a Kuku, à idade de 14 anos, a tiros pelas costas ou à queima-roupa, como demonstrações de sistemática violência policial racista.

Tive de procurar qualquer coisa (e ainda assim, não consegui ler a sentença, que era que gostaria de ter feito) para perceber que houve um julgamento do polícia que disparou e que o polícia foi absolvido pelo tribunal.

As decisões judiciais são, evidentemente, sujeitas a escrutínio público, e a opinião sobre a integridade do julgamento é completamente livre, mas é uma alarvidade alegar que Kuku foi executado (como li aqui e ali), foi assassinado (como li ainda mais frequentemente) pela polícia e, mais ainda, que a motivação para que tudo tenha acontecido seja racista.

Desconheço (quero dizer, conheço números que não verifiquei) se há alguns dados concretos que permitam dizer que a violência policial é desequilibrada por causa deste ou daquele tom de pele, mas não me custa admitir que haja, dentro da polícia, racistas e actuações racistas (eu, por exemplo, acho o SOS Racismo profundamente racista, é uma opinião a que tenho direito, tal como acho difícil que não haja racismo dentro da polícia).

Questão diferente é considerar, sem fundamentar, a absolvição do polícia que disparou sobre um miúdo de 14 anos, que estava num carro roubado com várias outras pessoas, que foge desalmadamente e resiste à detenção policial, ao ponto de apontar uma pistola, como uma demonstração de que a justiça portuguesa é intrinsecamente racista e está integrada num sistema racista de que a polícia faz parte, legitimando toda a violência dos que dizem resistir a essa injustiça.

É procurar os comunicados do SOS racista (como lhes chama, e bem, Margarida Bentes Penedo), reproduzidos no esquerda NET, para confirmar como é useiro e vezeiro num discurso racista de incitamento da violência, procurando diminuir a legitimidade do sistema de justiça e do Estado português, que acusa de perseguição racista a muitas comunidades, usando exemplos manifestamente deturpados.

É um direito que cabe ao SOS racista, felizmente as pessoas comuns não são marionetes e ligam tanto aos discursos incendiários do SOS racista e do Bloco de Esquerda (perdoem-me o pleonasmo) como às alarvidades de Ventura e epígonos, isto é, muito pouco.

Se se ouve tanto barulho, é porque uma comunicação social preguiçosa ouve vezes sem conta falar de Kuku sem que se dê ao trabalho de contextualizar o que se passou e fazer uma coisa simples, fornecer aos seus leitores um acesso simples às peças do julgamento.

Não é seguramente a perseguir judicialmente pessoas que têm opiniões trogloditas que passamos a ser sociedades mais civilizadas, é produzindo mais e melhor informação para que cada um tenha as opiniões que entender.

Um país que detesta a independência, a autonomia e a liberdade

por henrique pereira dos santos, em 26.10.24

"Entre 2022 e 2023, a Florestgal teve um apoio de cerca de 2,5 milhões de euros do Fundo Ambiental para comprar vários terrenos, com interesse de conservação, num total de quase 1.200 hectares na Serra de São Mamede, Tejo Internacional, Serra da Arada e Serra da Estrela".

A Florestgal é uma empresa do Estado, actualmente presidida por José Gaspar (que conheço e com quem tive sempre contactos cordiais e larga convergência de pontos de vista sobre gestão florestal) e compreendo-o, na perspectiva da empresa.

O que me interessa não é a defesa que a Florestgal faz de si própria, o que me interessa é a opção do Fundo Ambiental financiar empresas do Estado para aquisição de terrenos para conservação da natureza, tanto quanto sei, de forma directa e não em processos abertos que permitissem que organizações não estatais acedessem a estes fundos.

Há muitos anos defendo que o Estado se deve financiar através do Orçamento de Estado e que os fundos autónomos, como o Fundo Ambiental, deviam estar legalmente impedidos de financiar entidades em que o Estado tenha uma presença superior a 25% do capital.

Claro que é uma causa perdida (passo a vida a defender causas perdidas) porque em Portugal é esmagadora a ideia de que todos os problemas colectivos se resolvem melhor através da intervenção do Estado que através da livre iniciativa de pessoas livres, enquadradas pela actuação reguladora e supletiva do Estado.

Acha-se normal que o Estado, em vez de abrir concursos para escolher as melhores oportunidades para a compra de terrenos para dedicar à conservação da natureza, que permitisse que a Fundação Terra Agora, o Rewilding Portugal, a ATN, a Montis, etc., etc., comprassem mais terrenos e se responsabilizassem pela sua gestão, determinando à Florestgal que se dedique a resolver problemas de gestão de terrenos que ninguém quer gerir,  prefere usar os fundos autónomos de que dispõe para se financiar.

Não se pense que esta é apenas uma opção do Estado, muito recentemente uma empresa pediu-me uma coisa qualquer, que eu faria por gosto e por entender estar dentro do que acho serem os meus deveres de participação cívica, e informou-me que tinha 250 euros para pagar o meu trabalho.

O que ganho vai dando para o gasto, 250 euros são na verdade muito menos à conta dos impostos, eu não tenho actividade privada, enfim, fossem quais fossem as minhas razões pessoais, não tinha grande interesse em ter o trabalho, incluindo implicações fiscais, que me dava receber esse dinheiro.

Mas gostei da atitude de me pagarem um tipo de trabalho que frequentemente me pedem de borla e lembrei-me de sugerir que pegassem no dinheiro e fizessem uma doação, ao abrigo da lei do mecenato, para o fundo de aquisição de terrenos da Montis.

A empresa (uma grande empresa de comunicação social, não era uma empresa de vão de escada) não foi capaz de integrar o pedido no seu processo de decisão, disseram-me que não era possível (como se alguma empresa estivesse impedida de fazer mecenato), mesmo que o resultado final fosse mais favorável para empresa que não só entregava um valor líquido maior pelo trabalho, como tinha um tratamento fiscal mais favorável por causa da lei do mecenato.

O único a perder era o Estado (que se preparava para ficar com uma fatia muito relevante do pagamento pelo meu trabalho), ganhando eu (que ficava satisfeito por aumentar o dinheiro disponível para a Montis comprar terrenos), ganhando a Montis (que ficava com mais recursos para comprar terrenos), ganhava a sociedade (que aumentava a área de terrenos geridos com objectivos de conservação) e ganhava a empresa do ponto de vista fiscal, mas a vontade de fortalecer a sociedade à custa de uma relação mais criativa com a máquina fiscal, aparentemente, não é nenhuma, na empresa em causa.

Se dúvidas houvesse, a facilidade com nestes dias, a propósito de umas declarações de gente do Chega, se tem confundido alarvidade com ilegalidade, demonstra bem a falta de apreço pela liberdade que a sociedade portuguesa tem, mesmo que alguns, raros, vão continuando a explicar a coisa de forma clara e racional.

"Uma amargura me submerge inconsolável"

por henrique pereira dos santos, em 25.10.24

"Serão ou não em vão?", continua Jorge de Sena, antes da pergunta essencial "Mas, mesmo que o não sejam, quem ressuscita esses milhões, quem restitui não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?".

Lembrei-me disto, sobretudo do verso que escolhi para título disto, a propósito da minha "não-pátria amada" (para usar uma expressão feliz de José Pimentel Teixeira, o que escreveu o Torna-viagem, que aconselho), ou melhor, a propósito das notícias das últimas semanas sobre essa não-pátria amada, Moçambique.

"Quem diz que sim, quem diz que não, quem diz que sim, quem diz que não, são os movimentos de libertação", cantava Sérgio Godinho com a melhor das intenções, mas como concluiu Fausto Bordalo Dias, muitos anos mais tarde, a realidade é que não se consegue dizer que as pessoas passaram a viver melhor depois da independência (Fausto falava da sua e minha terra de nascimento, Angola, e acrescento que o mesmo se pode dizer da minha não-pátria amada).

Quase cinquenta anos depois, mais tempo do que o que durou o Estado Novo, Moçambique faz umas chapeladas monumentais a que chama eleições, convive com o assassinato de membros relevantes de opositores políticos do mesmo partido que governa o país há quase cinquenta anos e as pessoas comuns vivem em condições miseráveis que constrastam fortemente com a riqueza das elites dominantes, que crescem à sombra de um poder absoluto e sem respeito pelo estado de direito.

Não há uma letra do que escrevi que possa ser lida como a defesa de uma situação colonial pré-existente, mais, acho perfeitamente razoável a hipótese de que a rigidez do regime em relação à questão colonial (rigidez essa que está muito longe do imobilismo com que frequentemente o pintam) bloqueou soluções melhores, ao ponto do colapso militar que se seguiu ao 25 de Abril ter impedido qualquer discussão sobre soluções alternativas à entrega do poder absoluto a quem tinha armas na mão, e vontade de as usar sem restrições para obter esse poder absoluto.

O que me interessa aqui é que, independentemente da entrega do poder absoluto a um poder tirânico assente na força das armas não ter nascido do vácuo, há uma responsabilidade objectiva da Frelimo e dos seus dirigentes no que hoje é Moçambique (sim, Samora incluído, Samora nunca foi o pai da pátria simpático e sorridente como frequentemente é caracterizado, Samora, desde sempre, actuou como um ditador sanguinário sempre que achou necessário para assegurar o poder absoluto, sendo conhecidos os discursos violentamente racistas que foi fazendo desde as primeiras negociações de entrega do poder, com o objectivo de liquidar quaisquer sementes de divergência, mesmo que isso tivesse como consequência, como veio a ter, uma perda de capital humano brutal de que ainda hoje o país se ressente).

Como é inevitável nesses ambientes políticos e sociais, a retórica anti-colonial e anti-racista foi pesadamente usada para justificar moral e socialmente os excessos do exercício do poder absoluto, ao mesmo tempo que, fora da retórica, uma máquina de poder corrupta, arbitrária e brutal se foi instalando, perdendo os adereços desenvolvimentistas nacionalistas e de legitimidade histórica associado à resistência armada, para se mostrar hoje como aquilo que é e sempre foi.

E "uma amargura me submerge inconsolável" por não ver qualquer esperança justificada de que Moçambique consiga libertar-se, em breve, da sua elite extrativista e brutal.

Marco Paulo 1945 - 2024

por Miguel A. Baptista, em 24.10.24

Quando dava aulas de Comportamento do Consumidor falava, inevitavelmente, da importância do "branding". 

Referia que havia nomes que eram "melhores" do que outros, ou, pelo menos mais fáceis de trabalhar. Por exemplo "Rolls Royce" tem uma sonoridade que remete para sofisticação, e o facto de o costureiro Hugo Boss ter um sobrenome que significa "chefe" em inglês por certo terá ajudado à afirmação da marca. 

Na sequência deste raciocínio, perguntava aos alunos se conheciam "João Simão da Silva", ao que eles, inevitavelmente, diziam que não. Comentava que o nome talvez não fosse muito bom para um cantor popular romântico, mas que, em compensação, o nome "Marco Paulo" seria mais adequado. E que pensar em "branding" tinha a ver com pensar nestas questões. 

Descansa em paz João Simão, Marco Paulo continua vivo. 

 

E qual é o problema com a extrema direita?

por henrique pereira dos santos, em 23.10.24

"em lugar de contrariar pedagogicamente um ruído, escolheu alimentá-lo, lançando achas para a fogueira da polarização. Só que o ruído não é irrelevante e provoca danos. É o que está a acontecer."

Eu sei, eu sei que Pedro Adão e Silva não estava a pensar no discurso que a esquerda faz sobre a extrema-direita quando escreveu o que cito acima, mas é sempre útil aplicar-nos a nós as grelhas de análise que usamos para os outros.

Tinha pensado escrever qualquer coisa sobre a não eleição de Maria João Vaz Tomé, não sobre os seus méritos ou deméritos, mas sobre a capacidade da extrema-esquerda definir os termos do debate, quando lhe interessa.

Em qualquer caso, Nuno Gonçalo Poças disse o essencial, e muito bem dito, aqui neste artigo, portanto só quero reforçar a ideia do condicionamento da discussão, usando o aborto, talvez o melhor exemplo de como a alteração dos termos da discussão conseguiu fazer com que a esquerda impusesse interditos onde eles não fazem falta nenhuma. (depois de escrever e publicar este post, li este outro artigo do Observador que vai no mesmo sentido, incluindo o seu PS que mostra bem o longo braço da censura)

A discussão sobre o aborto começa por ser uma discussão social (é esse o ponto de vista da célebre tese de Álvaro Cunhal sobre o assunto) sobre os riscos do aborto clandestino, sendo uma discussão sobre o mal menor: o aborto, em si, era mau, o aborto clandestino poderia ser ainda pior.

Aos poucos a discussão passou da gestão de riscos sociais para uma discussão de direitos, ao ponto de hoje, uma opinião perfeitamente banal, a de que existe um conflito entre dois direitos, o direito da mulher dispor do seu corpo e os direitos referentes à vida intra-uterina (os direitos dos pais nunca entraram na discussão), ser considerada de tal forma inaceitável, que deu origem a uma campanha, bem sucedida, contra a eleição da juíza para o tribunal constitucional.

Note-se que é a lei que reconhece esse conflito, de outra forma, o aborto seria livre até ao dia do parto.

Mas a extrema-esquerda, alimentando o ruído que polariza, e a covardia da esquerda moderada, conseguem transformar os termos da discussão de tal forma que uma mera opinião, não só legítima, como alinhada com a lei, é considerada indizível por pessoas que aspirem ser juízes do tribunal constitucional.

É a mesma extrema esquerda que diz que o país é seguro, portanto discutir segurança é de extrema-direita, que diz que não há problemas a discutir sobre imigração, portanto discutir imigração é de extrema-direita, que argumenta que usar casos isolados e pontuais é populismo de extrema-direita, ao mesmo tempo que usa uma morte pela polícia para alimentar discursos que polarizam (ver o comunicado do SOS racismo de ontem), apesar dos números que Miguel Alçada Baptista apresenta e que demonstram que a polícia portuguesa é muito moderada.

O padrão é sempre o mesmo: definir os termos da discussão, ao ponto de ser possível ostracizar qualquer pessoa que ouse dizer-lhes que o rei vai nu e que o discurso dominante da esquerda tem, actualmente, escassas amarras à realidade.

Polarizar para calar, dir-se-ia.

A esquerda tem sido tão bem sucedida neste processo, que há muito pouca gente que pergunte: mas qual é o problema da extrema-direita?

Há milícias armadas nos partidos de extrema-direita? Há secções militarizadas nos partidos de extrema-direita? Há jornais destruídos à bomba pelos partidos de extrema-direita? Há chapeladas a favor dos partidos de extrema-direita nas eleições? A democracia foi suspensa na Itália? Etc., etc., etc..

Não faço segredo da pouca consideração que tenho pelo Chega e pelo que defende (veja-se o comportamento indecoroso na eleição da juíza de que falei acima), mas não me parece que seja um partido que mereça menos consideração ou que seja um risco maior para a democracia que o Bloco de Esquerda ou o PC.

Em rigor, em rigor, quando alguém diz que reduzir um grupo parlamentar do Chega de 50 para 5 deputados é um objectivo patriótico que todos deveríamos apoiar (Aná Sá Lopes dixit, mas longe de ser a única), está a fundamentar essa afirmação em quê?

Qual é o problema do Chega ter 50 deputados? Se consegue convencer 18% dos eleitores que a melhor forma de serem representados no parlamento é por esse grupo parlamentar, é com certeza porque responde melhor que os outros ao que pretendem esses eleitores, que não é muito diferente do que querem os outros eleitores todos, esses 18% não são todos perigosos anti-democratas que pretendem substituir governos cuja legitimidade provém dos votos por governos cuja legitimidade provém da força.

E quem não gosta de ter um grupo parlamentar do Chega com 50 deputados, tem muito bom remédio: convencer os eleitores de que as suas escolhas são melhores que as do Chega.

Agora pretender esmagar a discussão com argumentos da treta sobre os perigos da extrema-direita, francamente, já me parece preguiça a mais.

Um blogue convida para almoço

Crónica de Helena Matos, convidada especial da almoçarada anual do Corta-fitas

por Corta-fitas, em 23.10.24

Mão_de_vaca_com_grão.jpg

Juntem-se numa sala acolhedora os membros de um dos raros blogues que se mantém activo mais uma mesa onde bacalhau à Gomes de Sá e mão de vaca com grão esperam por nós.

Suponhamos que o Corta-Fitas ou mais precisamente o João Távora punham na mesa tofu grelhado com hamburguer vegetariano, será que a conversa seria a mesma? Não, não seria. Ou melhor não se esperaria que fosse a mesma. O que nos põem na frente numa refeição-encontro é de alguma forma uma espécie de introdução à conversa que está para vir.

Com bacalhau à Gomes de Sá e mão de vaca com grão espera-se que a conversa tenha referências ao passado – talvez não tão longínquo quanto o da martirizada família do anfitrião mas pelo menos tão remoto quanto o da passagem da monarquia para a república (há monárquicos neste blogue). Período em que o comerciante de bacalhau Gomes Sá desenvolvia e vendia a receita de bacalhau que havia de ficar com o seu nome e a mão de vaca com grão fazia o percurso ascendente no elevador social que a levaria das tabernas do Ribatejo até às casas de lavoura, mesas aristocráticas e burguesas… até acabar no século XXI em ementas de restaurante. Ou neste andar soalheiro onde os sofás guardam as formas de muitos momentos e os “cortafitianos cortafitam” numa conversa que cola com outras anteriores e antecede as que estão para vir.

Resumindo, querem saber do que se tratou neste almoço do Corta-Fitas para o qual fui convidada? Foi precisamente de tudo o que se aprende ao seguir a história do bacalhau à Gomes de Sá e da mão de vaca com grão: quando tudo parece sempre igual, repetitivo, de desfecho anunciado… vindo donde não se sabe donde aparece sempre uma forma de combinar doutra forma o que julgávamos conhecer. Seja o bacalhau. Seja o grão. Seja a mão de vaca. Seja a política.

Como o Corta-Fitas é um blogue que se pode situar num espectro conservador presumo que continuarão a escrever, a repetir a ementa nos próximos almoços e a convidar forasteiros. O que não deixa de ser muito louvável. Obrigada pelo convite. E vão dando notícias sobre os almoços. (Quanto à referência ao tofu grelhado com hamburguer vegetariano por favor não tenham ideias!)

Helena Matos

Acerca da violência policial: alguns números

por Miguel A. Baptista, em 22.10.24

Portugal é um dos países do mundo com menor número de pessoas mortas pelas forças de segurança, cerca de 1 por 10 milhões de habitantes. 

O país que lidera, de longe, essa lista, é um país que até merecerá alguma simpatia por parte de alguns dos que se dizem "chocados" com o infeliz incidente do Bairro do Zambujal, é a Venezuela. 

Na Venezuela morreram às mãos das forças policiais 5286 pessoas, ou seja 1829,9 por 10 milhões de habitantes. 

Comparando-nos com outros países, África do Sul 77, Estados Unidos 33, Canadá 19, Holanda 14 e França 6 (dados em mortes por 10 milhões de habitantes). 

Portanto as nossas forças policiais são, de um modo geral, das mais ponderadas e das que recorrem menos à violência extrema. Claro que qualquer incidente deve ser rigorosamente investigado e esclarecido, mas pintar as nossas forças de segurança como, globalmente, violentas ou com pouca ponderação não faz qualquer sentido. Tal é esmagadoramente desmentido pelos números. 

Extraordinário!

por henrique pereira dos santos, em 22.10.24

Uma mãe deu dois banhos de água fria a uma filha e falou disso onde quis.

O Estado, através do seu sistema judicial e repressivo, aplica-lhe uma pena de prisão de dois anos e meio, ainda que suspensa (Fábio Loureiro pode apanhar dois anos por ter fugido da cadeia), obriga-a a indemnizar a filha em mil euros, a cumprir um plano de resinserção social definido pela direcção geral dos serviços prisionais e, vá lá, a juíza não aceitou o pedido do Ministério Público de afastamento entre a filha e a mãe (qualquer pessoa de bom senso concorda com o Ministério Público e acha que impedir o contacto entre mãe e filha é muito menos traumático que uns banhos de água fria).

Pois bem, nos comentários a isto, não apenas aqui no Corta-fitas, mas na generalidade da imprensa, são muito poucos os comentários sobre a evidente desproporção da actuação do Estado (quando no próprio julgamento se demonstra que não há problema nenhum de relacionamento entre mãe e filha) e abundam os comentários moralistas sobre as opções de educação da família, incluindo a inaceitabilidade de expor os filhos, como se, por definição, a educação e desenvolvimento de uma criança não fosse um processo de socialização e integração social.

Podem-se discutir os métodos educativos, com certeza, pode-se ter uma opinião moral sobre a forma como cada família gere a socialização dos filhos (a mãe de Ronaldo, por exemplo, mandou-o sozinho para Lisboa, onde nos primeiros tempos ele chorava baba e ranho e sofria horrores com a violência psicológica a que estava sujeito, deixando que, ainda menor, fosse exposto a multidões que o avaliavam sem piedade, só para o pôr a render), há regras que as famílias têm de cumprir, quer queiram, quer não, como o ensino obrigatório (em Portugal não, mas noutros países, também a vacinação é obrigatória, por exemplo), mas é extraordinário que perante um eventual erro de educação e um evidente abuso do Estado, haja tanta gente mais preocupada em condenar moralmente os pais por eventuais erros de educação, que existirão sempre, que em defender o direito dos pais se oporem aos abusos do Estado.

Que o Estado tem o dever de defender crianças indefesas perante contextos familiares que as maltratam, é pacífico, que o Estado use essa justificação para que alguns dos seus agentes imponham os seus pontos de vista sobre educação contra a prevalência do direito natural das famílias a educar e socializar os seus filhos, da forma que souberem e forem capazes, é que nos devia levar a pensar dois segundos sobre o que se pode fazer para evitar decisões completamente lunáticas, manifestamente desproporcionais e contra o superior interesse da criança, por parte do Estado.

Já agora, o mesmo Estado que, por incompetência e obtusidade ideológica, é incapaz de gerir um sistema de ensino que reequilibre as oportunidades entre pobres e ricos, condenando a generalidade dos pobres a herdar a pobreza dos pais.

O enviesamento inteligente seguido de os burros à solta

por José Mendonça da Cruz, em 21.10.24

Há muito tempo que a Sic não é um canal de informação, mas sim uma fonte de activismo e enviesamento pró-socialista, circunstancialmente até pró-(irmão)-António Costa. Mas tinha uma coisa: era um enviesamento, uma parcialidade, e um receituário de omissões inteligente, como é inteligente o seu director de informação, Ricardo Costa (tanto que testemunhei certa vez como convencera Diogo Feio de que, na verdade, o seu coração estava no PSD).

Mas tendo o irmão António Costa cumprido o seu destino provisório e partido para destinos internacionais, Ricardo Costa estará em período de meditação e decisão sobre o que fará a seguir. E com isto sentiram-se à solta as criaturas menores que abundam naquela redacção.

Desde que Luís Montenegro - perante aplauso geral da sala, aplauso que decerto tem eco enorme no país - disse que a disciplina de cidadania ia ser revista - subentendendo-se que para a limpar das  cretinices e wokismos em que é rica - , os noticiários da Sic e da Sic Notícias, estando Ricardo Costa preocupado com valores mais altos, tomou a rédea nos dentes e vem esparvoando. Esparvoando como em parvoíce, porque aquilo que se ouve de «comentadores/as da Sic» não é informação, nem opinião, nem sequer parciais e facciosas; é apenas estupidez, ignorância despudorada, e muito, muito, do mais patético nervosismo (ou histeria. ou facciosismo).

Ontem, na SicN, uma tontinha qualquer, deixando despudoradamente à mostra os cordelinhos que a movem, tomava-se de ardores porque, dizia ela, Montenegro, tendo tantas coisas importantes com que preocupar-se, pretendia pôr fim à intoxicação da «cidadania». Hoje, antes das 20, na mesma SicN, uma dessas meninas afogueadas deparou com Maria João Marques que lhe temperou as palermices e arrefeceu a excitação, que lhe corrigiu a desinformação, e que em geral meteu a criatura na ordem. Mas o critério de admissão a «comentador/a da Sic» é muito baixo, e - para além do facto de os pobres diabos da SicN não desejarem ser desmentidos ao vivo - a verdade é que são relativamente escassas as pessoas inteligentes para travarem a multidão de idiotas que ali pulula.

De maneira que, enquanto assistimos a raciocínios pedestres ditos com absoluta certeza, a tiradas da mais crassa e ululante ignorância, a manipulações descaradas e a omissões gritantes, continuaremos a divertir-nos pensando: esta gente talvez julgue sinceramente que faz jornalismo, e, mais extraordinário ainda, não compreendeu nem vai compreender que esse seu «jornalismo» é suicida. Em boa hora descerão à rua com cartazes contra o desemprego que julgam sem causa, os perigos que julgam resultar para a democracia, e o que creem ser a exploração capitalista. E, depois, nunca chegarão a coisa nenhuma.

O Estado e as famílias

por henrique pereira dos santos, em 21.10.24

Embora sem grande espalhafato, vai-se ouvindo, aqui e ali, a história da mãe condenada a dois anos de prisão por dar uns banhos de água fria à filha (vestida) e a história da Inês Teotónio Pereira estar a ser sujeita a uma intrusão do Estado na sua família, por ter mandado um filho para um campo de férias, contra a sua vontade no momento.

As famílias são, inegavelmente, o sítio mais perigoso do mundo (li algures que, estatisticamente, são as cozinhas das nossas casas o sítio do mundo em que mais crianças sofrem ferimentos graves), onde há mais abusos sexuais, onde há mais violência psicológica, onde há mais falta de respeito pelo natureza intrínseca de cada um.

Repito, o que digo no parágrafo anterior parece-me inegável.

E, por contraditório que possa parecer, continuam a ser o grupo social que melhor socializa as crianças, que melhor forma as crianças, que melhor prepara as crianças para uma vida autónoma e que mais equilibradamente combina a pressão social com o respeito do indivíduo.

As duas histórias de que falo no primeiro parágrafo parecem-me manifestos abusos do Estado (pelo menos num dos casos, um manifesto abuso de instituições concretas, que têm dirigentes concretos e funcionários concretos que deveriam ser responsabilizados por esses abusos) a coberto da ideia generosa (é uma constante histórica, a cobertura da maldade pelas justificações bondosas) de protecção dos desvalidos.

Defender o direito das famílias, na sua imensa imperfeição, não se faz com histórias de carochinha sobre famílias perfeitas ("Se há sorte eu não sei, nunca vi"), faz-se reconhecendo que é preciso criar mecanismos para defender as crianças contra famílias abusivas, o que implica, muito provavelmente, a existência da possibilidade de denúncias anónimas (embora haja quem defenda que é possível a qualquer denunciante pedir segredo sobre a sua identificação, mecanismo mais equilibrado de defesa de todas as partes).

Como é habitual em Portugal, a lei parece-me razoável, com princípios claros de proporcionalidade, de ter como Norte o superior interesse da criança (não entendo como uma pena de prisão, ainda que suspensa, possa respeitar o interesse superior da criança, no caso da mãe que deu uns banhos de água fria à filha).

O problema está na irresponsabilidade da cadeia de decisões que levaram a decisões absurdas nos dois casos, em que leituras maximalistas e manifestamente insensatas do que é violência doméstica e superior interesse da criança, acabam a pôr a lei a sancionar a intervenção abusiva do Estado no que deve, primariamente (a lei bem fala no carácter subsidiário da intervenção do Estado), ser da esfera das famílias, por mais imperfeitas que se saiba que são.

É que as alternativas à ideia de que é a família o mais natural e mais seguro ambiente de crescimento e socialização de uma criança são incomparavelmente mais perigosas que as famíllias e as suas imperfeições.

Domingo

por João Távora, em 20.10.24

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo, Tiago e João, filhos de Zebedeu, aproximaram-se de Jesus e disseram-Lhe: «Mestre, nós queremos que nos faças o que Te vamos pedir». Jesus respondeu-lhes: «Que quereis que vos faça?». Eles responderam: «Concede-nos que, na tua glória, nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda». Disse-lhes Jesus: «Não sabeis o que pedis. Podeis beber o cálice que Eu vou beber e receber o batismo com que Eu vou ser batizado?». Eles responderam-Lhe: «Podemos». Então Jesus disse-lhes: «Bebereis o cálice que Eu vou beber e sereis batizados com o batismo com que Eu vou ser batizado. Mas sentar-se à minha direita ou à minha esquerda não Me pertence a Mim concedê-lo; é para aqueles a quem está reservado». Os outros dez, ouvindo isto, começaram a indignar-se contra Tiago e João. Jesus chamou-os e disse-lhes: «Sabeis que os que são considerados como chefes das nações exercem domínio sobre elas e os grandes fazem sentir sobre elas o seu poder. Não deve ser assim entre vós: quem entre vós quiser tornar-se grande, será vosso servo, e quem quiser entre vós ser o primeiro, será escravo de todos; porque o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida pela redenção de todos».

Palavra da salvação.

Eu?

por henrique pereira dos santos, em 18.10.24

Nuns comentários sobre o último post de Miguel Alçada Baptista, alguém reproduziu um boneco sobre evolução da confiança dos americanos na sua comunicação social, que eu tencionava usar para um post curto.

Como tenho a mania de verificar a informação, fui à procura da origem do boneco e realmente encontrei-o aqui.

Só que encontrei outros bonecos e preferi usar este.

mass media.jpg

De maneira geral, quando se olha para os bonecos arrepiantes sobre a confiança das pessoas comuns no jornalismo e se conversa sobre eles com jornalistas, salvo honrosas excepções, respondem com a perda de valor económico da informação, com a escassez de meio com que lutam os jornais, a transição do papel para o electrónico, o peso da televisão, etc. (tudo coisas que existem, isso é claro).

O que é verdadeiramente difícil é encontrar um jornalista que se pergunte a si próprio, em público: mas que raio ando eu e os meus camaradas a fazer para já ninguém acreditar grande coisa no que escrevemos ou dizemos?

Talvez fosse mais útil fazer-se a si próprio esta pergunta, e depois fazer a pergunta lá na redacção, que passar o tempo a sinalizar a indignação sobre as declarações deste ou daquele sobre o jornalismo, de que ninguém se lembra num par de horas (muitas vezes, nem o próprio).

A imprensa a cavar a sua irrelevância

por Miguel A. Baptista, em 17.10.24

Kamala Harris deu uma entrevista ao "60 Minutes" da CBS. A CBS, assim como a quase totalidade dos meios, com excepção da Fox, é claramente pro-Kamala. 

A CBS mostrou um excerto da entrevista, para servir de "teaser" para a exibição da mesma, onde uma resposta de Kamala acerca da situação em Israel foi mal recebida. Quando o programa foi para o ar, surge uma resposta diferente à questão, ou seja, o programa foi editado para melhorar a imagem da candidata. É óbvio que tal contraria as normas mais básicas de qualquer deontologia jornalística, se fosse com Trump seria um escândalo de proporções épicas. 

Considero que é muito difícil existir uma democracia sã, sem uma imprensa confiável. Claro que na sua origem, pelo menos por cá, a imprensa não era especialmente confiável, mas também não tinha pretensões a sê-lo. Se pensarmos, na Monarquia Constitucional, ou na Primeira República, será fácil associarmos os diferentes jornais às diferentes correntes políticas. Mesmo no Estado Novo, onde não havia liberdade de imprensa, é possível intuir as simpatias de alguns meios. 

Mas, actualmente, após algumas décadas em que muitos media se procuraram posicionar como "independentes", quase todos, pelo menos nalguns domínios, se tornam militantes e, como tal, pouco confiáveis. O fenómeno é global. 

A atitude militante na pandemia, muito mais próxima de preocupações de "lavagem cerebral" do que de informar, nas eleições americanas, onde se pretende influenciar num sentido, ou a dificuldade de compreensão dos fenómenos de emergência da direita radical, mostra que a imprensa tem cavado a sua irrelevância. A crise que a imprensa vive não é só devida à emergência do digital. 

PS - quando escrevo algum post a criticar Kamala, que considero uma woke com pouco conteúdo, logo alguns surgem a intuir que apoio Trump. Para que não haja dúvidas não gosto de Trump, considero-o um narcisista desprezível. Os EUA, país líder do mundo Ocidental, mereceria outra escolha. 

Radiografia do jornalismo político

por henrique pereira dos santos, em 16.10.24

Rui Pedro Antunes é editor de política do Observador, isto é, é um dealer dos viciados em intriguice e piadismo a que agora se chama jornalismo político.

É, portanto, uma pessoa qualificada para fazer uma radiografia da coisa.

Ontem esmerou-se e tinha um artigo de opinião, sobre o qual depois falou à tarde numa coisa da rádio Observador chamada "o colunista do dia".

"quando duas pessoas se acusam mutuamente de mentir, só os jornalistas podem seriamente apresentar as versões dos factos".

Ora aqui está, em duas linhas, a grande base teórica desta calhandrice a que chamam jornalismo político: quando duas pessoas dizem coisas diferentes sobre uma coisa em que só os dois participaram, podemos dar como garantido que só os jornalistas, que não estiveram lá, "podem seriamente apresentar as versões dos factos".

Note-se bem, as pessoas ouvirem as duas pessoas envolvidas não serve para nada, é preciso que os jornalistas apresentem seriamente as versões dos factos, não é que verifiquem os factos verificáveis e deixem os outros em paz, é que apresentem as versões dos factos.

Este pessoal da calhandrice acha que os seus leitores, como eles, estão mais interessados nas versões que nos factos.

Dir-se-ia que é má vontade minha, não é bem isso que o senhor quererá dizer.

"Se um jornalista estiver fechado numa sala três horas, se não ouviu a reação de um outro político, se não leu um documento oficial que entretanto já chegou à redação, tem de ser avisado para estar o mais informado possível. No caso da política, pode apenas ser informado do que disse outro líder partidário, alguém do partido do visado, de uma promulgação presidencial, entre um sem-número de hipóteses".

Como se vê, não, não é má vontade minha, o que preocupa estes intriguistas não é o confronto entre o que dizem e, sobretudo, fazem os políticos e a realidade das pessoas comuns, o que os preocupa é o confronto do diz que disse da bolha em que convivem com os políticos, independentemente da realidade concreta sobre a qual a política actua.

"Quando um ministério não responde ou só responde ao que lhe interessa, quando um ministro limita o número de perguntas a menos do que os dedos das duas mãos (ou até uma) ou um dirigente nacional decreta silêncio aos seus companheiros de partido, são os políticos que estão a contribuir para que haja menos informação".

É isto, informação é o que dizem os habitués da bolha político-mediática em que se move o pessoal dos mexericos (de que aliás já se queixava Lou Reed, há muitos anos "Just a New York conversation, gossip all of the time/ Did you hear who did what to whom? Happens all the time/ Who has touched and who has dabbled here in the city of shows?/ Openings, closings, bad repartee, everybody knows").

Que informação não seja este diz que disse mas a realidade das pessoas comuns afectadas pelas decisões destas pessoas é uma ideia que dificilmente entra na cabeça destes jornalistas ofegantes (sim, nesse ponto em concreto, Montenegro tem toda a razão), que acabam a protestar com Montenegro por se recursar a alimentar o circo montado por Ventura.

Circo esse, aliás, que só existe porque estes quadrilheiros reagem pavlovianamente a qualquer mexerico "Sobre o novo arrufo com André Ventura, Luís Montenegro tem, aliás, optado por uma postura de não falar do assunto para não o alimentar, mas sabe que quando duas pessoas se acusam mutuamente de mentir, só os jornalistas podem seriamente apresentar as versões dos factos. Para isso precisam de informações credíveis, de detalhes, de dados para que os possam apresentar aos portugueses. Valorizar o jornalismo é isso: responder às perguntas dos jornalistas. Enfim, informar".

Resumindo, neste mundo de coscuvilhice, se os jornalistas não informam é porque o primeiro ministro faz o que entende em vez de fazer os que os jornalistas entendem.

Uma radiografia poderosa deste mundo do jornalismo político, feita por um dos seus cultores mais empenhados, obrigado, Rui Pedro Antunes.

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