Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Ontem, na página do Provedor do leitor do Público (de vez em quando é bom lembrar que o Provedor é Provedor do leitor, não do bom jornalismo), há um retrato impiedoso do jornal.
Um leitor resolveu protestar com o facto de um jornalista ter feito uma peça bastante objectiva sobre este livro.
Trata-se de um livro de Luciano Amaral, com um excelente prefácio de Vítor Bento, que avalia e discute o peso e impacto do grupo CUF em 1973, colocando oa discussão no contexto empresarial que existia na altura.
O leitor do Público, que duvido que tenha lido o livro, achou que a peça do jornalista era um "um panegírico da ditadura disfarçado de história económica".
Para fundamentar, recorre à vulgata habitual "É impossível analisar os grupos económicos do salazarismo, como a CUF, sem o enquadramento de que a economia funcionava com condicionamento industrial e na base de monopólios e concessões do Estado aos grupos económicos como a CUF e o grupo Champalimaud, e que cada grupo económico tinha um ou mais bancos para se financiar".
Se o leitor tivesse lido o livro (incluindo o seu prefácio) teria percebido que os grupos económicos principais que existiam em 1973 representariam qualquer coisa como 10% do PIB (até poderia ter reparado que as empresas controladas pelo Estado representavam uma percentagem ligeiramente superior do PIB que o conjunto dos grupos económicos) e que dizer que a economia funcionava com base em monopólios e concessões que, mesmo que existissem nesses termos, eram cerca de 10% da economia, é um grande disparate.
Uma coisa é criticar o conteúdo do livro dizendo que as contas estão erradas, para o que é preciso fazer contas que se consiga demonstrar que são melhores, outra coisa é mandar bitaites para o ar que ignoram a informação existente.
Pois bem, a sub-editora de economia do Público (Isabel Areias) acha que era mesmo isso que se deveria fazer, auto-criticando-se por o não ter feito, por falta de tempo: "O artigo deveria ter tido mais contexto, de facto, sobre a situação empresarial, económica e política de Portugal que levou à ascensão e desenvolvimento do grupo CUF antes do 25 de Abril", aparentemente ignorando que o livro é só, só, só sobre isso mesmo.
O Provedor conclui na mesma linha, a de que o jornal, quando não gosta das conclusões do "honesto estudo com longa experiência misturado", deve ignorar a realidade dos factos, para não estragar uma boa história.
"Teria sido útil ... acrescentar ...[que tudo o descrito] não evitaram que o país continuasse a ter alguns dos piores índices mundiais em questões-chave como a esperança de vida, a mortalidade infantil, o analfabetismo, a pobreza, a subnutrição, a fome, a taxa de cobertura do saneamento, electricidade e água canalizada, etc.. E mais importante ainda neste contexto, a débil criação de emprego e a volumosa e persistente emigração".
E aceita como boa a argumentação do leitor que transcrevi acima, não sei com que base, para além do divino Espírito Santo, já que com base nos factos não é com certeza, como o livro e o seu prefácio demonstram de forma bastante consistente.
Vamos esquecer o entusiasmo retórico que faz o Provedor do Público confundir piores índices do mundo mais desenvolvido com "piores índices mundiais" e centremo-nos em algumas coisas que diz.
Esperança de vida: aumentou cerca de 10 anos entre 1950 e 1975.
Mortalidade infantil: diminuiu de valores em torno dos 80 por mil em 1960 para 25 por mil em 1975
Analfabetismo: Diminuiu dos cerca de 52% em 1940 para cerca de metade na altura do 25 de Abril
Poderia continuar, mas os outros dados são mais complexos de obter em séries longas, e é claro o argumento de que é preciso olhar para a evolução, não apenas para o ponto de chegada.
Se o Provedor tivesse lido o prefácio do livro teria tido a oportunidade de ver os dados que dizem respeito ao emprego, verificando que na "década longa" que acabara em 1973, o peso do sector agrícola no emprego baixou uns 17 a 18 pontos percentuais, o sector dos serviços aumentou uns 15 pontos percentuais e o país aumentou uns vinte pontos percentuais a sua posição em relação ao grupo de países mais ricos do mundo.
Também poderia ter reparado que os salários reais, nos treze anos que vão de 1960 a 1973, aumentaram ao ritmo impressionante de 7% ao ano (ou seja, multiplicaram-se por duas vezes e meia em treze anos, alguém que ganhasse mil euros em 1960 estaria a ganhar, em temos reais, portanto já descontando a inflação, 2500 em 1973).
De resto, o Provedor do Público, apesar de preocupado com a emigração de milhão e meio de pessoas (os números variam de fonte para fonte, mas grosso modo podemos falar em milhão e meio de emigrantes nessa altura), não reparou que a população do país apenas baixou 300 mil pessoas, o que quer dizer que a criação de emprego foi fortíssima (seria estranho ter um crescimento da dimensão do que existiu nessa época, sem criação de emprego), mesmo que não tivesse sido suficiente para absorver toda a mão de obra pouco qualificada que a derrocada do mundo rural atirou para longe da terra.
O meu problema, como leitor diário do jornal, é perceber que o excelente artigo feito sobre o livro de Luciano Amaral resultou de uma falha do controlo ideológico do jornal, o mesmo controlo ideológico que, que eu tenha dado por isso, tem feito o jornal ignorar o livro de Nuno Palma (posso estar enganado, o que digo é que não me lembro de ter notado alguma atenção do Público ao livro), um fenómeno editorial raro em Portugal, com cinco ou seis edições, e que, aparentemente, o Público boicota porque as suas conclusões não encaixam no que o jornal, dos seus editores ao seu Provedor, acham que é a sua missão civilizadora.
Senhor Provedor, a crítica à ditadura não precisa de histórias da carochinha sobre a economia dos últimos vinte anos do regime, a ditadura é ilegítima porque é ilegítima a sua fonte do poder (a força e não a vontade das pessoas).
Não me parece que ter um leitor, e uma sb-editora de economia, e um Provedor, a fazer um esforço enorme para impedir que os factos influenciem o que pensam seja a missão de qualquer jornal, evitando abrir o espaço de debate aos que, com "honesto estudo e longa experiência misturada", dizem coisas diferentes da ortodoxia ideológica que o jornal insiste em procurar vender aos seus leitores.
Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Efésios Irmãos:
Não contristeis o Espírito Santo de Deus, que vos assinalou para o dia da redenção. Seja eliminado do meio de vós tudo o que é azedume, irritação, cólera, insulto, maledicência e toda a espécie de maldade. Sede bondosos e compassivos uns para com os outros e perdoai-vos mutuamente, como Deus também vos perdoou em Cristo. Sede imitadores de Deus, como filhos muito amados. Caminhai na caridade, a exemplo de Cristo, que nos amou e Se entregou por nós, oferecendo-Se como vítima agradável a Deus.
Palavra do Senhor.
Nota prévia. Neste texto são identificados dois académicos e poder-se ia pensar que os juízos de valor que faço dizem respeito aos dois, mas não é tal. José Pimentel Teixeira, que cito primeiro numa nota relativamente marginal, daquilo que li, não encaixa, de maneira nenhuma, no grupo de investigadores que contrabandeiam ideias políticas sob a forma de artigos escritos estritamente a partir de um ponto de vista da acção política actual, não lhe sendo aplicáveis as opiniões que teço sobre grande parte da investigação sobre estes assuntos
Agora que tenho andado a ler mais coisas académicas (ou perto disso, às vezes os limites entre textos académicos e a ficção são um bocado difusos) sobre história da colonização europeia, verifico que, frequentemente, se fala em assimilados.
Ao princípio estranhei, mas depois verifiquei que é uma opção corrente.
A sensação com que fico é a de que se trata de um truque retórico com objectivos ideológicos, que passo a explicar.
O conceito de assimilado vem dos diplomas legais associados ao indigenato.
O racismo científico (sim, eu sei que poriam aspas, mas essas aspas são a nossa apreciação da ciência hoje, na época era mesmo ciência, estava era errada, como acontece à esmagadora maioria da ciência produzida) consolida-se na segunda metade do século XIX e prolonga-se até meados do século XX, se bem percebi a coisa.
Pelo que percebo, este processo desenvolve-se muito à boleia da luta anti esclavagista, já que grande parte dos exploradores moralistas do fim do século XIX, como Livingstone, justificam, pelo menos parcialmente, a sua acção civilizadora (ver o comentário acima sobre o uso de aspas) com a necessidade de combater a escravidão e o tráfico ilegal que persistia.
Ao longo de toda a segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX há um alargado consenso entre as elites europeias sobre a superioridade da civilização ocidental face às culturas tradicionais africanas, expressa no tratamento da escravidão – corrente em África, mas banida na Europa – nos sacrifícios humanos, no tratamento das mulheres, nos direitos dos indivíduos, na obediência à lei, etc..
Justa ou injustamente, estas eram ideias dominantes, expressas por todo o lado e definindo políticas, de acordo com o ar do tempo (na civilizadíssima Europa central, Hitler perseguia legalmente os povos considerados inferiores, e afirmava superioridades rácicas ainda nos anos 40. Não se pense que toda a gente no resto da Europa achava isso uma aberração, de resto, Martin Luther King foi assassinado em 1968).
No Sul dos Estados Unidos a segregação legal era a norma, é nos anos 40 que na África do Sul se codifica o apartheid e, em Portugal, é nos anos 30 que se codifica o estatuto do indigenato.
Note-se que a realidade é mais complexa do que se pode pensar a partir dos diplomas legais, já referi o facto de “branco” ser uma designação que abrangia mulatos e pretos, em algumas circunstâncias (isso está documentado para os séculos XVIII e XIX, em Angola e, curiosamente, José Teixeira Pimental refere uma coisa semelhante para os anos 90 do século XX, no Norte de Moçambique num texto chamado “Ma-Tuga no Mato: imagens sobre os portugueses em discursos rurais moçambicanos”), correspondendo mais a uma filiação cultural que ao tom de pele.
Esse é o contexto ideológico do estatuto do indigenato que tem a mesma base do apartheid (uma lógica de diferenciação de diferentes grupos sociais), que é inegavelmente uma lógica de base racista, mas com uma diferença abissal relevante: o regime de apartheid divide brancos e não brancos, definindo essa diferença pela cor da pele (lembro-me do meu espanto quando, aos 11 ou 12 anos, na escala que o barco fez na África do Sul, termos sido impedidos de entrar num autocarro que era para não brancos, coisa absolutamente impensável no Moçambique de onde eu vinha), enquanto o estatuto do indigenato divide culturas e, pelo menos em teoria, procura a assimilação, não a segregação.
Claro que há uma grande sobreposição entre essa diferenciação cultural e a cor da pele – por definição, os brancos, os indianos, os chineses não eram indígenas africanos, a linha de corte é diferente da que existe no apartheid – mas como a diferença é cultural, é possível transitar do estatuto de indígena para o de cidadão pleno, o que deu origem aos tais assimilados, isto é, aqueles que partindo da condição de indígenas, pela alteração do seu contexto cultural, passam a ser cidadãos de pleno direito.
“consideravam-se indígenas “os indivíduos de raça negra ou seus descendentes que, tendo nascido ou vivendo habitualmente [nas colónias], não [possuíssem] ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses … Nos termos do Estatuto, assimilados eram os antigos indígenas que haviam adquirido a cidadania portuguesa, após provarem satisfazer cumulativamente os requisitos” (O ‘INDÍGENA’ AFRICANO E O COLONO ‘EUROPEU’: A CONSTRUÇÃO DA DIFERENÇA POR PROCESSOS LEGAIS” MARIA PAULA G. MENESES).
O espantoso para mim, nesta produção académica que tenta contrabandear opções políticas como se fossem resultados académicos, é o uso do conceito de assimilado muito para lá do restrito contexto do estatuto de indigenato, sendo frequentes as expressões que se referem às minorias negras integradas nas culturas ocidentais como assimilados, diria eu que, frequentemente, com um tom negativo que se aproxima de “vendido” ou “traidor”.
Esta estranheza é tanto maior quanto os movimentos independentistas são esmagadoramente dominados por assimilados, para usar essa terminologia infeliz, não são as autoridades tradicionais africanas que se organizam em movimentos de oposição ao racismo e colonialismo, são negros, mulatos e outros mestiços e brancos que se juntam para lutar pela independência de um país que só existe pela definição de fronteiras feita pelos colonialistas, sem respeito pelas unidades geográficas de cada “nação” africana (aqui sim, aspas porque estou a usar um conceito que é razoavelmente claro e linear nas culturas ocidentais, mas só com muitas reservas se pode aplicar às unidades culturais e políticas africanas).
De resto, todos esses movimentos independentistas, quando chegam ao poder, o que fazem é reforçar os mecanismos de assimilação, mesmo que usem terminologias novas e digam que o que querem é fazer um homem novo.
Faz-me imensa confusão ler, num texto supostamente com um mínimo de rigor académico (uso um exemplo, mas coisas deste tipo encontram-se a pontapé noutros textos sobre o assunto): “a naturalização dos indígenas como não-cidadãos permaneceria, durante largas décadas, como memória da latência do pensamento imperial, de um Portugal, nação de cidadãos, possuindo uma imensa população de súbditos colonizados”.
Largas décadas? O estatuto do indigenato é de 1930, mais coisa, menos coisa, a sua revogação é de 1961, isso permite falar em largas décadas?
A explicação está imediatamente depois “Até à independência de Moçambique, em 1975, o critério racial manteve-se como critério único para os brancos residentes serem considerados civilizados. Ao longo de todas as suas formulações, o Estatuto requeria que os ‘negros e seus descendentes’, para obterem a plena cidadania, fizessem prova de requisitos culturais e económicos que não eram exigidos aos brancos, os portugueses originários”.
Dir-se-ia que a questão racial era a chave de interpretação disto tudo, só que o parágrafo tem erros extraordinários, na linha da opção ideológica de manter a designação de assimilados para falar de realidades que só existiam no contexto de um diploma legal que existiu durante cerca de trinta anos.
Em primeiro lugar, a distinção entre indígenas e não indígenas tinha sido revogada em 1961 (situação que a investigadora descreve como “Esta situação começou a conhecer reformas a partir de 1961, fruto da pressão das lutas nacionalistas”, o que é falso quer porque o estatuto foi mesmo revogado nessa altura, quer porque a luta armada em moçambique começa mais tarde, em 1964 demonstrando que não se trata de ignorância mas de manipulação pura e dura).
Em segundo lugar, aquilo que a investigadora define como “como critério único para os brancos residentes serem considerados civilizados” (o da cor da pele), era aplicável a brancos, indianos, chineses e pretos não originários dessa colónia.
“as incursões históricas são necessárias para demonstrar a inanidade de vários argumentos crescentemente esgrimidos nos debates mediatizados sobre a história recente” diz a autora e eu não poderia estar mais de acordo, o que nos divide é que a autora (em rigor, grande parte dos autores que escrevem sobre estas matérias) considera como uma incursão histórica o que são grosseiras manipulações da informação existente, e eu considero que numa incursão histórica não cabe esse tipo de manipulações.
A esquerda precisa da permanente reposição de níveis de miséria e insegurança na cidade para acalentar o sonho da revolução. Já a direita não dispensa os migrantes pois não têm melhor bode expiatório para justificar a sua impotência perante o deslaçar da comunidade pelo extremo individualismo. O centro, empurra os problemas, na verdade irresolúveis, com a barriga. Certo é que o caminho da decadência no Ocidente parece inexorável.
Uma das maiores falácias woke é o empolamento do "lugar de fala", uma expressão que, no essencial, reflecte a ideia marxista da natureza de classe, substituindo a classe pelo grupo identitário que se pretender.
É assim que há quem passe o tempo a dizer que só as pessoas que sofreram racismo é que podem falar apropriadamente de racismo, só as mulheres é que se podem pronunciar sobre direitos de mulheres, só as pessoas LGBTI+ é que podem verdadeiramente expressar opiniões sobre matérias relacionadas com identidade de género, só as vítimas de assédio discutem legitimamente o assédio, e por aí fora.
Desta patetice resultam depois elaboradas teorias como a que garante que Mamadou Ba não é racista porque apesar de basear todo o seu discurso e acção pública na luta de classes (desculpem, na luta de raças, ou melhor na luta entre grupos racializados), um negro nunca poderá ser racista porque é apenas uma vítima em luta contra a opressão.
Independentemente de achar a expressão "lugar de fala" uma boa expressão, e de achar um ponto relevante para análise do discurso de cada um, estranho que nunca seja aplicada à direcção totalmente burguesa do Bloco de Esquerda que insiste em falar em nome dos trabalhadores, ou aos dirigentes dos sindicatos que se deslocam de onde vivem e trabalham as pessoas que pretendem representar para a profissionalização sindical, alterando o seu "lugar de fala".
Na verdade, acho toda esta conversa sobre o "lugar de fala" excessivamente manipulada pelos que pretendem vedar a entrada na discussão dos que discordam dos seus pressupostos, seja qual for a discussão.
O exemplo que mais me divertiu nos últimos dias é do candidato a vice-presidente dos EUA que acompanha Trump e resolveu dizer uma coisa qualquer sobre "cat ladies" que dominariam a candidatura adversária, isto é, mulheres que têm gatos em vez de filhos, questionando a sua legitimidade para tomar decisões que afectam o futuro dos filhos dos outros.
A declaração em si é bastante tonta, provavelmente injusta para muita gente (nem sequer é evidente quando a ausência de filhos decorre de uma opção, aliás legítima, ou de circunstâncias que as pessoas envolvidas não controlam, sendo portanto involuntária) mas, e é isso que me interessa neste post, é uma aplicação bastante canónica da argumentação baseada no "lugar de fala".
E, desse ponto de vista, uma boa demonstração da falácias das argumentações baseadas na crítica ao "lugar de fala" do adversário.
Vance não tem razão nenhuma em questionar a legitimidade das adversárias falarem do futuro com base no seu "lugar de fala", mas isso não se prende com a substância do assunto, é mesmo um problema da natureza das argumentações que pretendem atribuir ao "lugar de fala" uma legitimidade superior nas discussões.
Gonçalo Diniz, no mesmo jornal de Domingo em que Joana Gorjão Henriques publicou a sua missa habitual sobre racismo, fez publicar um artigo a que chamou "A escravidão e o futuro" cujo objectivo explícito era explicar "por que razão as reparações devem ser encaradas de forma séria e sistemática e não como um gesto isolado".
"É inegavel que vários países do Ocidente estiveram profundamente envolvidos no tráfico transatlântico de escravos. Este comércio contribuiu significativamente para o desenvolvimento económico de alguns países ocidentais, cujos efeitos se prolongaram e amplificaram ao longo do tempo, conduzindo a um mundo profundamente injusto e desigual".
Este é o ponto de partida de Gonçalo Diniz e tem um pequeno problema: ao contrário da sua afirmação peremptória, não só é negável, como não existe qualquer indício sólido de que seja verdade o que citei.
Partindo deste ponto de partida que irei discutir brevemente, Gonçalo Diniz apresenta a sua tese central: "Essas desigualdades entre os descendentes de pessoas escravizadas e os descendentes dos escravizadores alimentam a exigência de pedidos de desculpa e de medidas reparadoras".
Comecemos pelas areias movediças desta conclusão, para depois falar dos pressupostos que citei anteriormente.
Comecemos por uma questão geral.
Neste blog escreve um tal João Távora que, como o nome indica descende dos Távoras que foram acusados e supliciados pelo Marquês de Pombal, mais ou menos na altura do pico do tráfico transatlântico de escravos.
Se se provar que foi um processo profundamente injusto, de acordo com essa teoria das reparações, os descendentes do Marquês de Pombal deveriam uma reparação aos descendentes dos Távoras.
Acontece que, por acaso, outro dos ascendentes é o Marquês de Pombal que, pelos vistos, deve a si próprio uma reparação, pagando como descendente do agressor e descendente da vítima (a que acresce o problema de, sendo esses ascendentes bem ricos, o João Távora é um teso como eu e a maior parte das pessoas, porque entretanto o tempo "fez cinza da brasa").
Argumento demagógico (é mesmo) porque o que está em causa são injustiças globais que se reflectem no desenvolvimento de povos, e não injustiças pessoais.
É verdade, mas o argumento ilustra um problema: como definir, a esta distância, quem são os descendentes dos escravizadores e os descendentes dos escravizados?
Gonçalo Diniz responde: "aqueles que se identificam como descendentes das pessoas sujeitas ao comércio escravo transatlântico" para os descendentes de escravos, o Ocidente para os descendentes dos escravizadores.
Esquecendo que Gonçalo Diniz está a confundir escravizadores com comerciantes de escravos (não, as pequenas feitorias comerciais, militarmente impostas, é verdade, não tinham grande capacidade para escravizar alguém, tinham sim capacidade para comprar num lado, transportar e vender no outro os escravos que eram escravizados pelas sociedades africanas (com longa tradição na matéria, quer na escravização para consumo próprio, quer no comércio de escravos feitos com os Árabes)), retenhamos a ideia de culpa colectiva que Gonçalo Diniz defende, acusando os Suíços de serem ricos porque os portugueses se envolveram no comércio de escravos entre a África e a América.
Mas há mais que isso.
Por acaso até há investigação sobre o efeito da escravidão nos países de destino (também há para os países que faziam comércio, em que está demonstrada a relativa modéstia dos proventos obtidos por esse comércio para os povos dominantes, há sim comerciantes de escravos que enriqueceram imensamente com esse comércio, mas as sociedades em que eles se integravam beneficiaram relativamente pouco com isso) e, por estranho que pareça a quem se esqueça de comparar os estados do Sul do Estados Unidos com os estados no Nordeste dos Estados Unidos (para não falar da comparação entre o Brasil e, por exemplo, a Polónia ou a Prússia), o facto é que a presença de mais escravos não se traduz em mais riqueza (se assim fosse, o Haiti deveria ser o país mais rico do mundo).
Resumindo, não é verdade que a riqueza actual dos povos tenha grande relação com a sua participação num comércio transatlântico de escravos, não é verdade que as diferenças e injustiças tenham essa origem e muito menos que se tenham ampliado a partir daí e não é verdade que o mundo seja injusto e desigual por causa do comércio transatlântico de escravos.
A base é errada e o mecanismo de identificação ganhadores e perdedores é totalmente ineficiente, portanto esta conversa das reparações (que é diferente da apropriação ilegítima de bens, como os frisos do Parténon) não tem nenhuma base moral séria, é apenas um pretexto para a wokaria zurzir nas sociedades ocidentais, ao mesmo tempo que reconhecem que é essas sociedades são o melhor sítio do mundo para se viver.
Joana Gorjão Henriques e o Público persistem no seu esforço didático de dizer aos portugueses o que nunca tinham percebido: que houve racismo e repressão nas colónias portuguesas (replico aqui, adaptando, uma resposta sarcástica que me foi dada quando fiz uma pergunta acerca de uma das pessoas citadas por Joana Gorjão Henriques na sua peça no Público de ontem "Quando os negros eram feitos estrangeiros na sua terra", sobre Moçambique).
O título da peça parece inspirar-se neste testemunho: "Por causa de um traço que é racista, que caracterizava a relação do branco com o indígena: o afastamento para um espaço longínquo, desvalorizado, que era habitado pelo estrangeiro negro".
É o testemunho de José Gil, o filósofo, que está cheio destas tiradas literárias que, numa interpretação estritamente pessoal, me parecem ser a escapatória de quem, não querendo degradar a sua reputação inventando histórias da carochinha inverosímeis (como faz Álvaro Vasconcelos), também não quer contrariar a wokaria, refugiando-se em conjuntos de palavras aparentemente lógicos, mas suficientemente ambíguos para lhe permitir estar bem com Deus e o Diabo.
Joana Gorjão Henriques, no entanto, tem outros planos, quer convencer os seus leitores de que o mundo que ela imagina não é um mito, mas uma descrição fiel da realidade, portanto vai atrás desta ideia do estrangeiro na sua terra, do apartheid não formal mas real, da violência racista permanente.
A ideia do paralelismo da sociedade moçambicana com o apartheid sul-africano é das coisas mais estúpidas que aparecem neste debate (não, não é por causa do luso-tropicalismo, esse nariz de cera que o wokaria inventou para evitar discutir a realidade tal como ela existiu), para ser aceitável, mesmo como mera aproximação, é preciso esquecer toda a história e sociologia que separa essas duas realidades, nomeadamente a presença dos brancos na sociedade (uns 20% na sociedade sul-africana contra os míseros 2% em Moaçambique), a presença das fortes comunidades de origem indiana em chinesa em Moçambique e integração, mais no caso da comunidade de origem indiana, e o facto dos brancos sul africanos terem uma presença e controlo de terra fora das cidades, na exploração agrícola, que era muito diferente da presença dos brancos fora das duas ou três cidades litorais com alguma dimensão).
O esforço chega a ser cómico e quase se poderia dizer desta peça de jornal o que era costume escrever-se nos livros e filmes: “Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.”
Não vale a pena perder muito tempo, por exemplo, com o que é dito sobre o colonato do Limpopo, sobre o qual existe uma extensíssima bibliografia, quer portuguesa, quer Moçambicana (não há pachorra para a conversa chilra de que os colonatos dos anos 50 corresponderiam a uma resposta do regime ao crescimento dos movimentos anti-coloniais do pós guerra, quer porque a política de colonização interna era uma política que abrangia também o Portugal europeu, quer porque as primeiras propostas, por exemplo, para o colonato do Limpopo, são dos anos vinte do século XX).
O que é extraordinário é que seja preciso ir à bibliografia académica moçambicana para ler textos bem menos esquemáticos e ideologicamente formatados que os de Fernando Rosas ou Cláudia Castelo, mesmo em textos que citam abundantemente Claudia Castelo, como este, que são muito mais ricos na descrição dos conflitos sobre a posse de terras que as vulgatas portuguesas que se lêem por aí, como este, ou em que seja possível ler referências de testemunhos como este: "É muito frequente os produtores agrícolas locais fazerem referência a dois ciclos de expropriação de terras, o primeiro levado a cabo pelo regime colonial e o segundo pelos "guerrilheiros vitoriosos que vinham das matas", em alusão ao governo da Frelimo. Quase todos os agricultores que cultivaram as terras irrigadas no período do Colonato do Limpopo recordam com nostalgia a experiência do período colonial em que o apoio ao produtor agrário era integrado (terra irrigada, crédito, extensão agrária, preparação da terra, aprovisionamento em insumos, comercialização). Um agricultor moçambicano que foi colono [sim, um terço dos colonos do colonato do Limpopo eram negros e muitos mais trabalhavam no colonato num regime de colonos de segunda, havendo uma longa lista de espera de agricultores locais que queriam integrar-se no colonato, embora seja raro ver referências a isto na literatura wokista] referiu que "mesmo os portugueses que eram colonizadores cederam-nos alguns hectares de terra irrigada (entre dois a quatro hectares). Os nossos filhos (a Frelimo) arrancaram-nos a terra que os portugueses nos haviam dado e deixaram-na sob o controlo do Complexo Agro-Industrial do Limpopo (CAIL) [uma experiência colectivista da Frelimo totalmente fracassada].
O que me espanta é que, tendo eu acesso a testemunhos directos (o meu sogro era agrónomo na brigada do limpopo e vivia lá e um dos meus amigos da tropa, por acaso, era filho de colonos que tinham ido para o colonato e depois saíram para fazer a sua própria machamba), nunca me passaria pela cabeça confiar totalmente na memória de pessoas emocionalmente envolvidas no processo, sem a confrontar com as dezenas de testemunhos diferentes que se conseguem encontrar facilmente.
E, no entanto, gente treinada academicamente ou jornalísticamente para isto, só encontra testemunhos e documentos que comprovam o que já sabiam antes, é preciso azar.
É por isso que quando José Gil relata um episódio de brutalidade inacreditável que testemunhou quando tinha oito anos e, embora embrulhando-o naquela nuvem de algodão caro que envolve o que diz, refere: "Era um homem negro a ser brutalizado "por um administrador sádico"", a jornalista vê a confirmação de uma sociedade em que a violência racista era permantente, pública e socialmente aceitável e eu vejo a confirmação de que sendo verdade que essa violência existia, era suficientemente rara para que José Gil, uns 75 anos depois, ainda tenha uma memória tão viva do que viu e tenha a preocupação de distinguir o administrador sádico do comum dos mortais.
Meus caros, o racismo é uma coisa suficientemente inaceitável e presente nas sociedades - actuais e antigas - para ser combatido a partir da realidade, não há vantagem nenhuma em procurar reforçar o seu combate com histórias da carochinha, só serve para descredibilizar esse combate.
Uma das coisas mais complicadas, porque contra-intuitivas, nas discusssões sobre a gestão do fogo é ter de se reafirmar, vezes sem conta, que as ignições não interessam nada, o que interessa é o contexto do fogo, apesar de não haver incêndios sem ignição.
É muito difícil convencer alguém de que quando o contexto é mesmo favorável, haver uma ignição não é um acaso, é uma certeza que se materializará de uma ou outra maneira.
Da mesma maneira, ao contrário do que dizia ontem a SIC, os tumultos no Reino Unido não resultam de informações falsas sobre a identidade do indivíduo que atacou com uma faca um grupo de crianças, matando algumas delas, resultam de um contexto em que uma circunstância desse tipo, falsa ou não, dá origem a um fogo difícil de controlar.
Não, nada disso resulta de haver redes sociais, as bruxas não eram queimadas por haver comentários no facebook, os judeus não foram mortos em Lisboa por causa de partilhas de informação falsa no X, etc., etc., etc..
O padrão é sempre o mesmo: num contexto favorável ao fogo, a ignição concreta que ocorre é irrelevante.
Um bom exemplo é o do combate de boxe mais famoso destes jogos olímpicos.
Sim, a informação sobre o assunto era falsa ou pouco rigorosa (depende da opção de classificação que cada um queira fazer), a senhora é e sempre foi considerada uma mulher, embora uma mulher com uma alteração genética rara que aproxima estruturalmente o seu corpo do de um homem.
Mas não é isso que dá origem ao bruuáá, o que rapidamente faz tanta gente aceitar essa informação pouco rigoroso é um sentimento muito generalizado de que as políticas de inclusão de atletas trans, ou nem isso, que se identificam como não sendo do sexo biológico com que nasceram, criam uma sensação de injustiça para muitos outros atletas.
Noutro contexto, o combate de boxe teria gerado estranheza, a informação teria aparecido e o assunto teria passado, o que torna o combate uma questão global é o contexto social em que ocorre, tal como no caso dos distúrbios no Reino Unido, tal como pode acontecer em qualquer outro lado em que a pressão esteja a crescer e haja um esforço deliberado de não reconhecer a realidade, dizendo que são preconceitos ou mal formações morais de gente sem grandeza.
Reconhecer a realidade e discutí-la a partir de uma base racional é um campo comum que a wokaria tem vindo a abandonar, preferindo usar a sua superioridade moral como base de relacionamento de terceiros.
Tem tudo para não correr bem.
Confesso que, na minha ignorância (muitas vezes desviamos os olhos daquilo que não gostamos) pensava que o Boxe era um desporto intrinsecamente ligado à estupidez masculina. Claro que pensando melhor, concluo que a alarvidade, como o bom senso, é a coisa mais bem distribuída do mundo e não escolhe sexo, nação ou raça. E assim chegamos à descoberta de um combate de Boxe Olímpico (que tem a vantagem estética dos capacetes na cabeça dos praticantes) feminino de -66kg, entre a italiana Angela Carini e a argelina Imane Khelif. Ora acontece que a atleta da Argélia, é um caso raro de hermafroditismo a que agora chamam “intersexo”. O facto é que a Senhora (salvo seja) Khelif, que tinha sido impedida de participar no Mundial da modalidade do ano passado, por falhar os “critérios de elegibilidade” nos testes, que revelaram níveis de testosterona não permitidos pelos regulamentos da Associação Internacional de Boxe, espetou dois peros que despacharam a italiana aos 46 segundos de combate. Ora, por alguma razão as competições desportivas são segregadas pela biologia dos atletas. Se assim não fosse, as mulheres ficariam a perder na maioria das modalidades (acho que no hipismo concorrem com o sexo masculino sem prejuízo da justiça desportiva).
Dando de barato que Khelif não seja um homem apesar de ter os cromossomas XY, parece claro tratar-se de um raro caso de DSD (Disorder of Sexual Development), que ocorre em 1/20.000-25.000 nados-vivos. Certo é que o Comité Olímpico deveria ter médicos e biólogos na génese das regras dos JO, para que se evitem estas injustiças, ou até algum acidente de consequências mais graves. Impõe-se o respeito pelas diferenças.
Como vimos, a esteticamente vergonhosa cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos celebrou, além da desconstrução da história e dos valores fundacionais cristãos, por meio do protagonismo dado a drag queens e quejandos, a “fluidez” de género. Como se verifica neste caso é um caminho perigoso para a sustentação da competição desportiva, que terá de se cingir, privilegiar e respeitar a biologia dos participantes. O mesmo se exige à medicina, e já agora, na semântica.
Se este caso de olímpica iniquidade teve alguma virtude foi a de revelar para os mais desatentos a importância da biologia na questão de género. Talvez por isso seja de estranhar (ou talvez não) a ausência deste tema nos espaços de comentariado da Comunicação Social convencional.
A ver como decorrerão os próximos combates de Imane Khelif.
"Os migrantes – mesmo no período de expansão e consolidação da administração colonial – tinham consciência de que se iam instalar num espaço de desigualdade, no qual estariam em situação permanente de superioridade relativamente à restante população. Devido à sua inserção no estrato dominante da sociedade colonial, era-lhes garantido acesso privilegiado ao poder político, social, económico e simbólico. As oportunidades acrescidas de promoção social, a abundância de mão-de-obra barata e subjugada, a certeza de um estatuto inquestionável perante o conjunto da população africana – largamente maioritária – terão influenciado na decisão de migrar".
Este parágrafo extraordinário está num artigo científico da autoria de uma investigadora, mas de ciência não tem o menor vestígio, é puro preconceito.
No essencial, o artigo faz um processo de intenções "os migrantes ... tinham consciência", a partir do qual faz a afirmação de que essa consciência "ter[á] influenciado a decisão de migrar" que remete para uma generalização acusativa de que os brancos que migraram para as colónias portugueses eram movidos pela existência de "abundância de mão-de-obra barata e subjugada" e "certeza de um estatuto inquestionável perante o conjunto da população africana".
Fundamentação, nomeadamente quantificada, para o que é dito, simplesmente não existe, reconhecimento das imensas diferenças sociais inerentes a sociedades complexas, incluindo a multiplicidade e diversidade de grupos sociais dentro dos dois grupos a que se reduzem essas sociedades (brancos e não brancos), zero, zero, zero.
Falemos da Maria do Céu, uma das migrantes que, de acordo com a investigadora, foi influenciada pela consciência de se ir instalar num espaço de desigualdade (parece que antes teriam consciência que viviam num espaço de igualdade, nas suas terras de origem, a acreditar no que está escrito).
A Maria do Céu era uma mulher inteligente, sensível e naturalmente sofisticada que nasceu numa família de agricultores de uma aldeia minúscula, tendo saído da escola depois da terceira classe, para poder ajudar a mãe a tratar dos irmãos.
Aos 16 anos (não sei em que ano) foi servir de criada interna para casa da minha avó (não me incomodem com o termo criada, era o termo usado na altura e não tem nada de ofensivo e depreciativo, era um trabalho como outro qualquer).
Acontece que por volta de 1957 ou 1958, calculo eu (não vou andar a fazer perguntas à minha família para aumentar o rigor das datas) uma das minhas irmãs teve poliomielite, penso que no Lobito que, sendo talvez a segunda cidade de Angola, era, nessa altura, uma cidade sem grandes infraestruturas de saúde.
Por essa razão, os meus pais mandaram a sua sexta filha para Lisboa, de barco, para casa da minha avó, na esperança de que tivesse os melhores cuidados possíveis para limitar as consequências da doença. Para a acompanhar no barco (ela teria dois anos de idade), mandaram o seu terceiro filho, com uns dez anos de idade, porque apesar da visão da investigadora sobre a vida dos brancos em Angola nessa altura sugerir que eram só nababos, a verdade é que não havia dinheiro nem capacidade dos meus pais, ou pelo menos de um deles, vir a Lisboa com a filha.
Durante anos, até 1966, a minha irmã viveu com a minha avó, a minha tia e a Maria do Céu, razão pela qual eu só conheci a minha irmã quando eu teria os meus cinco ou seis anos, e a minha irmã dez ou onze (eu nasci mais tarde, já agora, na lavandaria do hospital da então Nova Lisboa, tinha faltado a luz e era o único sítio onde havia luz para fazer o parto no hospital, cara senhora investigadora, noutra das principais cidades de Angola, portanto pode-se imaginar o que seria Teixeira de Sousa uns doze anos antes, hoje Luau, e ainda hoje um fim do mundo com 30 mil habitantes, onde a minha mãe teve o seu terceiro filho e onde o meu pai estava colocado, na alfândega, ou Cabinda, onde teve o quarto filho).
Durante esses sete ou oito anos, a minha irmã, que a partir de certa altura já tinha nove irmãos, foi uma filha única, passando grande parte do tempo ao colo, em tratamentos e afins, indo para a escola, etc., sempre com a Maria do Céu presente (ao ponto da minha irmã dizer que teve três mães, a nossa mãe comum, a minha tia e a Maria do Céu).
Em 1966 os meus pais, que viviam em Angola há uns vinte anos (onde nasceram 9 dos seus 10 filhos, havendo um que nasceu em férias), mudaram para Moçambique para poder ter consigo também esta filha, porque a África do Sul era mais perto e tinha melhores cuidados de saúde dos que era possível ter em Angola e porque um dos irmãos, médico, casado com uma médica fisiatra, tinha migrado (para usar a terminologia do artigo científico, que está certa) para a então Lourenço Marques (não, não era por ter consciência de que iria para uma situação de privilégio num contexto de desigualdade, nem por haver mão de obra barata e subjugada, era mesmo porque o investimento em hospitais novos abria oportunidades de carreira mais aliciante nesses hospitais que nos velhos hospitais com quadros preenchidos que havia em Portugal), o que aumentava muito a confiança dos meus pais num contexto que lhes permitisse ter a filha com eles.
Para além de, entretanto, a minha irmã ter começado a andar autonomamente com aparelhos ortopédicos, o que permitia uma gestão completamente diferente da situação.
E a Maria do Céu?
A Maria do Céu foi com a sua menina, naturalmente, por muitas razões, mas também para suavizar a transição de uma situação de filha única e centro das atenções de três mulheres (a minha avó, entretanto viúva, a minha tia, solteira e a Maria do Céu) para uma casa onde havia mais nove irmãos, para ela praticamente desconhecidos, maioritariamente rapazes, em que passava a ser mais uma entre iguais.
Está a ver a distância entre a sua generalização abusiva e a situação concreta que descrevi, cara investigadora, sobre as razões dos que migravam para África?
Dir-me-á que uma andorinha não faz a Primavera e eu concordarei consigo, portanto passemos ao meu pai, esse sim, um funcionário colonial pertencente às classes dominantes.
O meu pai era dos mais novos dos muitos filhos da minha outra avó, uma agricultora analfabeta de outra aldeia próxima da da Maria do Céu.
A minha avó, apesar de tudo, era das privilegiadas na aldeia, era a dona de uma das suas melhores casas agrícolas da aldeia, o que naquele mundo de pequenos produtores de milho, feijão e couves quer dizer muito pouco em termos absolutos, mas com diferenças relevantes em termos relativos: o irmão formou-se em Coimbra (o meu pai dizia que este seu tio era a pessoa mais inteligente que conheceu, mas o próprio dizia que a pessoa mais inteligente que ele tinha conhecido era a dita irmã analfabeta, minha avó) e os filhos tiveram recursos para emigrar para o Brasil (os homens penso que todos, com as excepções que vou referir, as mulheres nem todas).
Uma das excepções foi o filho mais velho, criado noutra aldeia vizinha na casa dos tios padres (nessa época era frequente ir distribuindo os filhos por outros familiares para aliviar o fardo de todos, os que tinham muitos com meios escassos para os alimentar, os que não tinham filhos e acediam a criar os dos outros), que entrou na carreira militar e acabou por ser um dos tenentes do 28 de Maio, mais tarde inspector colonial, e a outra excepção foi o meu pai, destinado a padre, razão pela qual teve uma educação formal mais extensa que os irmãos, enquanto andou no seminário.
Mais tarde completou o sétimo ano do liceu, a rebolar na parada do quartel de Viseu enquanto estudava para os exames, como me disse uma vez e, provavelmente, teria emigrado também para o Brasil, onde tinha vários irmãos (a maior parte dos quais nunca voltou a ver), não se desse o caso da crise económica dos anos 20 ter tornado o Brasil num destino de migração pouco interessante.
No princípio dos anos 40, aos vinte e poucos anos, sem um centavo no bolso e com vontade de casar com a minha mãe, uma menina de um meio relativamente mais favorecido que o seu, acabou por primeiro ir trabalhar com o irmão mais velho (então governador de Cabo Verde), voltar a Portugal para casar e seguir para Luanda (onde o irmão entretanto tinha sido colocado, penso que como governador de Luanda).
Daí terá entrado numa carreira de funcionário público na Alfândega, independente do percurso profissional do irmão, que o levou às fronteiras de Angola durante uns tempos até estabilizar (mais ou menos, os cinco filhos mais novos nasceram todos entre Lobito e Benguela, com a minha excepção) em torno do caminho de ferro de Benguela e do porto do Lobito.
Cara investigadora, do que o meu pai tinha consciência é de que precisava de alimentar uma família, foi para África porque surgiu essa oportunidade, como os irmãos foram para o Brasil quando era mais favorável e parte dos meus primos foram para França quando achavam que era melhor (alguns também para África).
De resto, se África fosse o paraíso automático para brancos, o normal seria que o grande surto migratório do pós segunda guerra mundial fosse para esse paraíso, mas a realidade não corrobora essa hipótese, a esmagadora maioria dos migrantes portugueses preferiram ir viver para os bairros de lata parisienses, a trabalhar nas fábricas europeias e onde fosse, na base social das sociedades desses países, a ser uns nabados protegidos em África.
Como vê, cara investigadora, a variação das motivações é enorme, como enorme é a diferença de estatuto dos migrantes em África, quer entre os brancos (entre uma e outra história estão milhares de outras com milhares de outras motivações, o meu sogro, por exemplo, foi para África para se livrar da confusão de saias em que se meteu), quer entre os não brancos, como os milhares de migrantes asiáticos que, especialmente em Moçambique, virado ao Índico, têm um peso enorme.
Tal como entre as populações africanas (independentemente de eu nunca perceber quanto tempo é preciso estar em África para se poder considerar africano, eu, por exemplo, vivi relativamente pouco tempo em África, até aos 14 anos, que comparam com os 50 na Europa, mas diga o meu cartão de cidadão o que disser, eu identifico-me como africano, só que é mais fácil obrigar o Estado a reconhecer-me como mulher que como africano, por razões que não entendo) há diferenças enormes, é completamente absurdo falar em subjugação a propósito do engenheiro agrónomo Amilcar Cabral ou do médico Agostinho Neto, pelo menos com a ligeireza e a generalização abusiva com que essas diferenças são tratadas no parágrafo que citei.
Sim, eram sociedades com grande estratificação social, sim, parte dessa estratificação social estaria relacionada com fenómenos de racismo, mas é de uma pobreza intelectual confrangedora olhar para estas sociedades, complexas e diversas, com a preocupação única que ressalta do parágrafo citado: o racismo é tudo e tudo explica.
Não, não é, e não tem o direito de fazer generalizações abusivas que ofendem a memória de muita gente que simplesmente tratou da sua vida, o melhor que sabia e podia, sem procurar tirar partido de situações de ilegítima superioridade de raça ou estatuto.
Para mim, isso é discurso de ódio.
"Os portugueses descobriram que odeiam turistas, mas, em princípio, devem ter sido só os portugueses consumidores, ou seja, os praticantes de turismo interno. Porque os portugueses que abriram restaurantes, cafés, bares, pequenas lojas e negócios não costumam dizer o mesmo. Nem os guias turísticos, nem os que transformaram imóveis de família em alojamentos locais para conseguirem um complemento ao rendimento, nem os que alugam carros, motas, bicicletas, barcos, nem os que têm ou trabalham em hotéis, casas de fado, tuk-tuks ah-os-horríveis-tuktuks-que-coisa-de-pobre, nem os responsáveis por equipamentos culturais, museus, monumentos, festas e festivais. O turismo salvou a economia portuguesa na última década, mas, como é a única coisa que aparentemente funciona no país, os portugueses querem fazer o que fazem de melhor: mandá-la abaixo, que é para ela não ter a mania que é melhor do que as outras.
Sim, os portugueses. Esses que se gabam de terem navegado pelo mundo inteiro e serem muito dialogantes, de onde quer que se chegue encontrarem sempre pelo menos um deles, que têm os maiores níveis de emigração da Europa e os oitavos do mundo. Descobriram agora que, afinal, o que era bom era quando o Chiado era só deles – quando lhes apetecia lá ir. (Perdoe o leitor ao cronista concentrar-se nos exemplos de Lisboa, que ele melhor conhece. Por favor, substitua mentalmente pelos lugares da sua região que sinta equivalentemente transformados). Descobriram que os alojamentos locais lhes roubaram as casas, como se o Rossio não estivesse deserto há 20 anos, crescesse mato nos telhados e janelas partidas dos prédios da Praça da Figueira, metesse medo caminhar na Rua Augusta depois das seis da tarde ou não tivessem todos migrado, há muito, muito tempo, para a Amadora, para Loures, para Cascais, para Odivelas, para Mafra, para Oeiras, para Sintra, para Alverca, para Almada, Seixal, Barreiro, Montijo, onde quer que que pudessem ter casas grandes, novas, com elevador e garagem e não aquelas casinhotas velhas que desprezavam em Alfama ou na Mouraria e onde além do mais, horror dos horrores, era impossível estacionar."
Alexandre Borges hoje no Observador
O título do post é um descarado aproveitamento de uma frase de Margarida Bentes Penedo no seu artigo de hoje no Observador: "No fundo, o PAN não faz política, faz sentimentalismo".
Andava há uns dias com uma vaga ideia sobre um post que falasse da discussão sobre o acesso a creches gratuitas nos Açores, não sobre a substância da coisa, mas sobre a acrimónia da discussão.
Tanto quanto percebi, o Chega resolveu fazer uma proposta de critérios de acesso a creche gratuita que beneficiava os pais empregados, proposta essa que terá sido aprovada.
O problema de fundo é a escassez de oferta de creches gratuitas, matéria em que parece que o actual governo dos Açores até tem dado uns passos para o resolver.
Convenhamos que sem escassez relevante de acesso a creches gratuitas, mesmo que seja porque o acesso é pago, não haveria questão nenhuma porque a generalidade das pessoas teriam acesso a lugares nas creches, no caso de haver muitos lugares gratuitos em creche, ou a selecção far-se-ia com base na capacidade económica dos pais, o que naturalmente beneficiaria os mais ricos em relação aos mais pobres, entre os quais estão os beneficiários do RSI.
Resumindo, a discussão é uma discussão normal sobre critérios de acesso a creches gratuitas num contexto de escassez de oferta.
Há bons argumentos para adoptar critérios de acesso preferencial em função do rendimento e há bons argumentos para adoptar critérios de acesso preferencial em função da disponibilidade dos pais.
No primeiro caso, considera-se que as crianças que mais beneficiam com esse acesso são as crianças provenientes de meios sociais mais frágeis e pobres (é de um paternalismo e injustiça tremendos considerar que a capacidade de educar bem os filhos é uma questão meramente económica e de rendimento da família, desprezando o esforço e os resultados de milhões de famílias pobres do mundo que, apesar do contexto difícil, educam bem os seus filhos, independentemente de ser verdade que é melhor ser rico, bonito e ter saúde, que ser pobre, feio e doente).
No segundo caso considera-se que resolver os problemas dos pais que têm de conciliar um dia inteiro de trabalho com a educação das crianças é um bem social de primeira grandeza.
Em qualquer caso, esquecer o problema dos pais trabalhadores e das suas dificuldades, fazendo belos discursos sobre o bem maior da educação dos filhos que nos cria a obrigação de defender as crianças de ambientes familiares tóxicos, frequentemente associados à pobreza, é alimentar o ressentimento contra as franjas da sociedade mais marginais, sobretudo se essa marginalidade não for vista com um azar da vida mas a consequência das opções de pessoas adultas e responsáveis.
Resumindo, não é política, é sentimentalismo, o campo preferencial do crescimento da banha da cobra populista, que se move mais facilmente no império das emoções que na secura da racionalidade em que seria bom que as decisões difíceis fossem discutidas.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.
Rui Ramos só pecou por defeito. É ir ler a Constit...
Há tanta gente com vontade de ir para a guerra... ...
Infelizmente por vezes há que jogar para o empate....
Derrotem PutinIsto é mais fácil de dizer do que de...
Espalhar a democracia é um bom cliché...A vitória ...