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É só porque...

por João-Afonso Machado, em 29.05.24

Em boa verdade, não sei. Faz-me comichão o imenso saber político de Bugalho, um rapaz com idade para beber uns canecos, mandar umas bocas e deixar andar - não tão bem penteado. Mas Marta... se Marta morresse calada e farta...

Os dois estão aí, na ribalta das Europeias. Sebastião, poderoso de dados e argumentos. Madame Temido, mais do que nunca espenéfica, saltitante, aguçada. E sem enredo. Foi assim que se desenvolveu o tema da "festa da visita" de Zelensky a Portugal no derradeiro debate televisivo.

Ora é evidente que os portugueses não têm que levar com esta chumbada. Com o cantorio entre o omnisciente e a esganiçada. Porque apenas lhes interessará saber (com gostos sim ou não) se Portugal, pobrezinho, esmolando migalhas, está do lado de cá ou do lado de lá da invasão da Ucrânia.

Não assisti ao debate. Diz-me muito mais a Balada de Hill Street, no Canal Memória. Pelos intervenientes, votaria em nenhum. Ah!, mas falta o resto: a seguir ao Bugalho, na lista da AD, está um senhor que conheço bem. Considerado, que foi, um autarca modelar. Homem sério e pragmático, sabedor. Por acaso, o anterior edil-mor cá da minha terra.

E é só por isso...

O cerco à divergência

por henrique pereira dos santos, em 29.05.24

"O aborto clandestino era uma das maiores causas de morte antecipada em Portugal antes de haver o direito à interrupção voluntária da gravidez em Portugal".

A autora desta frase é Catarina Martins, no debate que juntou o PS, o BE, a AD e o PAN.

Logo na altura, esta frase me fez levantar o sobrolho, de tal maneira me pareceu absurda.

A esquerda mais folclórica, que inclui largas franjas do PS, actualmente, resolveu, numa campanha eleitoral em que nada de essencial sobre o aborto está em causa, agitar este fantasma.

Porque esta esquerda está muito preocupada com as mulheres?

Não, porque esta esquerda quer eliminar, à nascença, a divergência, se preciso for, recorrendo a parvoíces como a que citei no início do post, que está ao nível da outra das barragens que são inúteis porque a água se evapora nas albufeiras.

Eu não falo, sequer, de canalhas que usam o terrorismo verbal deste parágrafo: "As mulheres ficaram a saber que não poderiam contar com ele para lutar pelo seu direito mais consequente. E Deus ficou a saber que Bugalho faz cedências em campanha eleitoral", pela simples razão de que esta rasquice está abaixo do nível mínimo de discussão, para mim.

Falo de Catarina Martins, que não tem dúvidas: “Sebastião Bugalho, o direito à IVG não é uma questão difícil, mas sim fácil e simples: ou as mulheres são respeitadas ou não são. Sebastião é só confusão”.

O facto de esta ser uma discussão global, de envolver milhões de pessoas, dezenas de Estados, milhares de organizações, não convence Catarina Martins de que o aborto é uma questão complexa e envolve o equilíbrio entre direitos (e riscos) das mulheres e direitos de terceiros.

Por que razão é fácil Catarina Martins dizer o que diz sobre o assunto?

Porque sabe que ninguém insistirá com ela para que responde de forma clara se é um direito de qualquer mulher fazer um aborto no dia anterior ao parto previsto.

E porque pode invocar argumentos sociais como os que invocou, mesmo que sejam totalmente falsos, porque ninguém com um mínimo de peso fará o que vou fazer, isto é, escrutinar a validade do argumento.

O ponto de encontro dos diferentes pontos de vista é o de que as mulheres não devem ser criminalmente perseguidas por fazerem um aborto (podendo haver diferentes sensibilidades sobre qual é esse ponto exacto), o ponto a que Catarina Martins pretende chegar, o aborto é um direito fundamental de qualquer mulher, em quaisquer circunstâncias, está muito longe de ser consensual na sociedade e está muito longe de ser sequer consensual entre as mulheres.

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Basta olhar para este gráfico para perceber que a taxa de mortalidade materna ("A morte materna é uma causa de morte que remete para um período específico da vida da mulher, que se inicia com a gravidez e termina no período do pós-parto") tem uma evolução que terá muito pouca relação com uma alteração legislativa ocorrida em 2007.

E note-se que usei apenas a evolução da taxa de mortalidade materna, de que o aborto clandestino seria, talvez, a terceira causa, e não, como disse tontamente Catarina Martins, a morte antecipada (de que a mortalidade materna representa apenas uma parte).

O boneco foi retirado desta publicação, em que o aborto é referido, com relevância sim, mas nem de perto, nem de longe, nos termos em que Catarina Martins os colocou e toda a gente parece ter achado normal, apesar do seu absurdo ser de uma clareza inquestionável.

Que o aborto é uma realidade que é preciso gerir, equilibrando os pontos de vista dos que negam qualquer relevância aos indivíduos, antes do seu nascimento, e dos que consideram que essa relevância existe desde a concepção, desvalorizando as consequências sociais da criminalização do aborto, parece-me de largo consenso, que é um direito fundamental, deve poder discutir-se livremente.

O que me parece é que não são as mulheres e os seus direitos que preocupam esta esquerda folclórica que venho a referir (e de que Catarina Martins é uma das suas Miss Simpatia), mas sim a necessidade de calar a divergência que permite questionar que raio de benefício resulta, para quem quer que seja, de considerar o aborto como um direito

De resto, a necessidade de calar a divergência tem uma longa tradição associada a esta gente, sempre que têm algum poder para isso.

Moçambique

por henrique pereira dos santos, em 28.05.24

Se me obrigarem mesmo a dizer onde é a minha terra, provavelmente acabarei a dizer que é Moçambique.

Não nasci lá (nasci em Angola) e saí de lá cedo, com 14 anos mas, ainda assim, tudo pesado e medido, acho que, a ter de escolher, diria que é essa a minha terra.

Por acaso, não por qualquer espécie de nostalgia (em rigor, a minha terra não existe, há outro mundo no mesmo sítio do mundo em que vivi), os últimos três livros que li relacionam-se com Moçambique.

Sobre o primeiro, "Torna-viagem", de José Pimentel Teixeira, que pode ser encontrado aqui (foi editado em print on demand) já lhe fiz aqui referência, quando ainda estava no princípio, mas reitero que vale a leitura, é um testemunho que resulta da recolha e selecção de textos escritos ao longo de 25 anos, com variações de temas e até de estilo, com muita coisa interessante.

Sobre o segundo, que comprei por acaso, não tenho muito a dizer por me faltar bagagem para saber se é bom ou mau (eu gostei de ler), "Breve história de Moçambique", de Malyn Newitt. Tem muita informação que gostei de conhecer ("Caroline Brettel escreveu sobre tais trabalhadores contratados: ... "aqueles que partiam para as fazendas brasileiras eram mal alimentados, tratados como escravos e castigados como cães". Os trabalhadores das plantações podiam ser punidos com chicote ou palmatória". Não se pense que se está a falar de africanos escravizados, mas dos que são aqui apresentados "Entre 1890 e 1920, setecentos e cinquenta mil portugueses partiram para o Brasil, enquanto outros 170 mil foram para a América").

O terceiro são textos curtos, quase crónicas, sobretudo autobiográficas, de Nuno Quadros "Antes que a gente morra" de quem nasceu em Moçambique, saiu e entrou e saiu e entrou e saiu, abrangendo um largo período dos anos sessenta até hoje.

Comprei-o na sua apresentação, na Feira do Livro do ano passado, não conheço o autor, fui à apresentação por me interessar o assunto e por ter visto referências do autor do primeiro livro que citei, José Pimentel Teixeira, que encontrei nas redes sociais e que nunca tinha visto em carne e osso, antes dessa apresentação na Feira do Livro.

As possibilidades que hoje existem permitem que qualquer pessoa dê testemunho da sua vida, quando acha que interessa pelo menos aos aimgos, fixando esses testemunhos em livros.

Eu acho isso útil agora para quem escreve, para quem lê agora e para os que um dia venham a ler mais tarde, permite pontos de vista únicos sobre lugares e tempos que entretanto desaparecem.

E, no fundo, um livro é tão barato.

Governar para os ricos

por henrique pereira dos santos, em 27.05.24

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Como digo no post, impostos não é a minha área, consultei vários simuladores, mas devo ter-me enganado em algum lado, pelo que o que está escrito sobre os impostos pagos com um ordenado bruto de mil euros não está certo, em vez de 400 deve andar pelos 2500, o que significa que os que ganham 5 mil pagam dez vezes mais impostos, e não 50

O PS resolveu inventar uma narrativa sobre uma governação para os ricos que parece ter como objectivo bloquear o programa fiscal da AD (a pedido de Luís Lavoura, substituí governo por AD em todo o texto, para que pessoas que só são capazes de ler a literalidade do que é escrito não sejam enganadas): descida do IRS, IRS jovem e descida do IRC.

Pela parte que me toca, não gosto mesmo nada de medidas dirigidas aos jovens ou a outro grupo social qualquer definido de forma arbitrária, e portanto não estou particularmente entusiasmado (de vez em quando dá-me para os eufemismos) com a medida do IRS jovem.

Dito isto, percebo a lógica da medida: se Portugal tem um problema de perda de quadros por falta de competitividade internacional dos salários nesse grupo de pessoas, o Estado pode dar um empurrão para resolver o problema mexendo na parte que lhes diz respeito do problema,.

Por isso a AD pretende mexer na carga fiscal que incide sobre esses ordenados, melhorando a competividade dos salários portugueses sem esforços adicionais para os empregadores, quando se avalia o que verdadeiramente interessa aos trabalhadores: o seu ordenado líquido.

Acharia normal que o PS contestasse a medida por ser socialmente injusta, ou por não ter um mecanismo de transição mais suave da situação de excepção para a normalidade, o que não acho normal é que o estribilho escolhido pelo PS - governar para os ricos - seja tão pouco escrutinado pela imprensa.

Vejamos as declarações que citei no boneco acima.

O PS está indignado pelo facto de que quem ganha cinco vezes mais, e paga 50 vezes mais IRS (aspecto que o PS omite, evidentemente), beneficie sete vezes mais na descida de impostos.

Qualquer descida de impostos que pretenda diminuir os impostos de quem paga mais impostos, beneficia muito mais os que pagam mais impostos e beneficia tanto mais quanto mais progressivo for o imposto, portanto, ou não se descem os impostos de quem ganha mais, ou o facto de beneficiar mais quem ganha mais é uma consequência inevitável da elevada progressividade do IRS em Portugal.

Não sei onde foi o PS desencantar o benefício de 55 euros por mês de quem ganha mil euros porque quem ganha mil euros, pelas minhas contas, paga qualquer coisa como menos de 30 euros de IRS por mês, sendo portanto impossível que beneficie tanto.

Como posso ter feito as contas mal, vou admitir que quem ganha 1000 euros por mês (dois terços, diz o PS, não vou verificar) beneficia apenas 55 euros quando quem ganha 5000 (o PS esquece-se sempre de tudo o que está no meio, entre 1000 e 5000 euros de ordenado por mês, tal como se esqueceu de ver qual era a percentagem de jovens até aos 35 anos que ganham 5000 euros ou mais) beneficia 1000 euros por mês, com a medida (quando paga mais de 2000 euros por mês de IRS, os tais cinco mil euros de ordenado na verdade são praticamente 2500 líquidos, o resto é para o Estado).

Se o que está em causa é a competitividade internacional dos ordenados portugueses, diminuir 55 euros a quem ganha 1000 euros é irrelevante (não é irrelevante para os beneficiados, só é irrelevante para aumentar a competividade internacional desse nível de ordenados) mas diminuir 1000 euros nos impostos de quem ganha cinco mil, passando o ordenado líquido de 2500 para 3500, já não é irrelevante.

Para quem ganha mil euros por mês a descidas de impostos, que paga residualmente, é pouco importante, do que realmente precisam as pessoas que ganham mil euros é que o seu ordenado aumente.

Ora vejamos o que acontece quando aumenta o ordenado, por exemplo, de mil para mil e quinhentos euros.

Para o empregador, o esforço não é de 500 euros, mas de 630, porque sobre o aumento tem de pagar TSU.

Do esforço adicional de 630 euros (todos os números são aproximações e se as contas estiverem grosseiramente erradas, agradeço correcções) que o empregador faz, o trabalhador fica com 300 euros e o Estado com 330 euros.

Eu acho inacreditável que para estes níveis de ordenados o Estado fique com mais de metade do esforço dos empregadores para remunerar melhor os seus trabalhadores.

Estranhamente, o PS tem-se empenhado seriamente em manter esta situação, considerando que descer o 6º escalão do IRS é governar para os ricos, sem que a imprensa esteja sistematicamente a perguntar ao PS (rendimentos colectáveis, eu não sou o PS, portanto peço que o valor que vou citar não seja confundido com os valores que tenho vindo a citar e dizem respeito a ordenados brutos) por que razão acha que rendimentos líquidos acima de dois mil euros correspondem a rendimentos de pessoa rica (o que transforma qualquer deputado numa pessoa riquíssima, visto terem remunerações líquidas, ordenados e outros pagamentos, acima do dobro desse limiar de riqueza, se não estou em erro), que justifique que o Estado fique com mais de metade de aumentos do salário deste nível.

Que o PS se empenhe na conversa da governação para os ricos, como forma de bloqueio da actividade da AD, é a vida, e haverá um dia eleições para cada pessoa avaliar como usar o seu voto em função disso, mas que a imprensa sistematicamente, por omissão ou acção, vá nessa conversa, francamente, não entendo.

Mitos sobre saúde nos EUA

por henrique pereira dos santos, em 26.05.24

Não sou grande conhecedor de sistemas de saúde, portanto é natural que diga muitas asneiras sobre o assunto, quando escrevo sobre isso.

Por essa razão, habitualmente sou bastante cauteloso e tento procurar informação fiável que me ajude a compreender isto ou aquilo (que é diferente de procurar gráficos que mostrem relações entre despesas de saúde e esperança de vida, como se a esperança de vida fosse primariamente função do sistema de saúde e não da globalidade das condições sociais, em especial nos primeiros anos de vida).

Sem excepção, apesar da minha posição ser a de que é irrelevante saber quem é o dono das paredes do centro de saúde, acabo a ter de responder aos estatistas mais emperdenidos, que passam o tempo a tentar demonstrar que olhar para a saúde como um negócio ou um perdócio faz uma grande diferença nos resultados finais.

Quando faltam os argumentos (o facto das PPPs terem dados os resultados que deram, liquida qualquer argumento que parta do princípio de que os privados são sempre mais caros e prestam cuidados piores), lá vêm os mitos sobre o sistema de saúde americano.

Vamos então por partes.

Os Estados Unidos gastam muito mais em saúde, per capita, que qualquer outro país desenvolvido (quase o dobro do segundo mais gastador, a Suíça) e boa parte dos resultados globais não são os melhores, nomeadamente havendo um sério problema de acesso aos cuidados de saúde para um pouco menos que um quinto da população, e haver indicadores sociais, como a esperança média de vida, que estão abaixo do que seria de esperar num país desenvolvido.

Os principais mitos que são criados à volta disto relacionam-se com:

1) a ideia de que isto é assim porque são os privados a impor os seus interesses e que o sistema é uma selvajaria liberal sem regras, em que o Estado não tem intervenção;

2) a ideia de que há pessoas a não ser atendidas numa emergência por não terem dinheiro;

3) a ideia de que os cuidados de saúde nos Estados Unidos são muito piores que nos outros países mais desenvolvidos

Nenhuma destas três ideia é verdadeira, começando pelo facto de haver um grande sector filantrópico nos cuidados de saúde (representará cerca de 10% das despesas, o que deve ser visto à luz do facto de 50% dos utilizadores serem responsáveis por apenas 3% das despesas de saúde nos EUA) e por haver uma forte intervenção de regulamentação no sector.

Por outro lado, o elevado custo na saúde nos EUA tem a sua origem nos preços mais elevados dos medicamentos, do trabalho dos profissionais de saúde e no maior custo administrativo.

Aparentemente (há quem o defenda, mas não sei se há demonstrações inequívocas) o resultado é que, sendo os medicamentos mais bem pagos, e os profissionais de saúde mais bem pagos, o sistema americano acaba por ser responsável por mais de 50% das patentes e inovações registadas no mundo, no sector da saúde, porque existem bastantes recursos para investigação, inovação e desenvolvimento.

O mais curioso, para mim, é que 1% dos utilizadores são responsáveis por 20% dos gastos e 5% são responsáveis por cerca de 50% dos gastos, sendo 50% dos utilizadores responsáveis por apenas 3% dos gastos, o que faz sentido porque grande parte da despesa é feita pelas pessoas em piores condições de saúde (já agora, 90% da população dos EUA qualifica-se como tendo boa saúde). Esta circunstância é potenciada pelo facto dos preços serem altos e haver mais diferenciação nos tratamentos, com tratamentos de ponta extremamente caros (já agora, um número entre 100 mil a 200 mil pessoas entram por avião nos EUA para tratamento médico, dos quais cerca de 24% provêm da Europa, e a principal razão parece ser o acesso a tratamentos mais avançados).

Ou seja, a discussão sobre privados ou Estado como fornecedor de serviços de saúde não pode ser feita comparando sistemas e sociedades totalmente diferentes (gostaria de saber, mas não faço a mínima ideia, se o sistema de responsabilização dos Estados Unidos, em que é muito mais fácil responsabilizar alguém por erro médico e tem custos astronómicos, o que obriga os profissionais de saúde a ter seguros elevados para diminuir riscos, tem alguma influência no preço final), a partir de indicadores globais, sem uma análise cuidadosa.

Quanto aos outros dois mitos, o segundo é fácil de responder: é proibido recusar tratamentos numa emergência, seja qual for a circunstância.

O terceiro não resiste a comparações sérias: há campos em que o sistema dos Estados Unidos será pior, há campos em que será melhor (reparei, por exemplo, numa referência à resposta a AVC, que será das melhores do mundo), mas quando se olha globalmente, não há diferenças globais entre os diferentes sistemas de saúde dos países desenvolvidos, no que diz respeito à intensidade de uso e à qualidade dos cuidados prestados.

Como digo, procuro informar-me (insisto que é diferente de ir à procura de qualquer que eu possa usar para apoiar as minhas convicções), mas não sei o suficiente disto para concluir mais que uma quase trivialidade: podemos discutir as vantagens e limitações da propriedade das paredes de um edifício no resultado final de um sistema de saúde, mas comparações de treta entre sistemas europeus e dos Estados Unidos, não é uma coisa que faça avançar muito a discussão.

Impostos e justiça social

por henrique pereira dos santos, em 25.05.24

Comecemos pelo princípio: eu desconheço qualquer demonstração de que exista uma relação entre carga fiscal e justiça social, não estou a dizer que não existe, estou a dizer que desconheço.

Compreende-se que seja assim, os impostos são apenas uma parte minoritária da riqueza existente, e a justiça social depende mais da justa remuneração do trabalho que de outra coisa qualquer.

Conheço o argumento de que é preciso taxar os ricos para equilibrar a distribuição desigual da riqueza ou, na fórmula mais suave, taxar mais os que mais podem, para poder acudir aos que menos podem.

Insisto que desconheço qualquer demonstração de que o referido no parágrafo anterior tenha alguma relação com maior justiça social e com a realidade.

Há as pessoas que acreditam (sim, é uma fé) que os privados (que somos todos) só tratam dos seus interesses pessoais e portanto só o Estado garante os interesses colectivos, em especial se forem difusos, e há as pessoas que acreditam (sim, é uma fé) que o interesse colectivo resulta naturalmente da livre interacção entre os diferentes interesses individuais, desde que os interesses individuais não se imponham pela mão do mais forte, mas pela atribuição do monopólio legal da violência ao Estado, que o exerce num quadro legal que é, no essencial, aceite por todos.

Os primeiros tendem a valorizar muito a igualdade e a desconfiar da liberdade, que consideram sempre condicionada pelos interesses dos mais fortes, os segundos tendem a valorizar mais a justiça e consideram a liberdade como mecanismo essencial de limitação dos abusos no exercício do poder, seja qual for a origem desse poder.

Os primeiros tendem a olhar para os impostos como instrumento de correcção das desigualdades, os segundos tendem a olhar para os impostos como uma inevitabilidade que permite financiar o Estado e garantir a liberdade de todos, sobretudo dos mais fracos.

Todos, no entanto, preferem sociedades mais justas em que ninguém fica para trás mas, repetindo, os primeiros acham que isso é uma tarefa do Estado, e os impostos devem ser usados para reforçar a igualdade, e os segundos acham que isso é uma tarefa da sociedade, e cabe à lei assegurar a justiça que garanta maior igualdade de oportunidades. Nesta hipótese, os impostos são um mero mecanismo de financiamento dessa actividade de regulação da assimetria de poder que existirá sempre entre os diferentes indivíduos.

O que se passa neste momento, na discussão sobre as propostas fiscais, reflecte este choque ideológico.

A AD definiu políticas que implicam três opções fiscais: 1) reduzir os impostos sobre o trabalho; 2) reduzir os impostos sobre os lucros das empresas; 3) reforçar a redução de impostos para um sector específico da sociedade, os que têm menos de 35 anos.

Tanto quanto me parece, os objectivos com cada uma destas opções são muito diferentes.

O primeiro visa reduzir a taxa sobre o trabalho que o Estado recebe, o que permite transferir menos dinheiros das pessoas e famílias para o Estado, tem portanto um objectivo de aumentar o rendimento disponível das pessoas.

O segundo visa aumentar a remuneração do capital, tendo como objectivo aumentar a atractividade do investimento de que o país precisa.

O terceiro visa diminuir os custos do trabalho num sector que o governo (não eu) considera especialmente pressionado por baixos salários de entrada no mercado de trabalho, que se acentua com os elevados custos para as empresas com qualquer subida do rendimento líquido dos seus trabalhadores (se uma empresa resolver aumentar um ordenado de 2000 para 3000 mil euros, o Estado fica com quase metade e o trabalhador com outra metade do esforço da empresa para aumentar ordenados).

O que está em causa não é fazer justiça social com impostos, mas sim mudar o perfil económico do país, reduzindo os custos de trabalho e capital.

Para quem achar que o Estado usa mais eficientemente o dinheiro que as pessoas, é uma opção totalmente errada, claro, que se traduzirá em menos riqueza global e mais desigualdade.

Para quem achar que as pessoas e as empresas, no conjunto (isto não diz nada sobre cada pessoa e cada empresa em concreto) acabam por usar o dinheiro de forma mais eficiente, as opções podem estar erradas nos pormenores (por exemplo, na escolha do sector da sociedade que o governo escolheu), mas é uma opção globalmente correcta no sentido que disso resultará mais riqueza globalmente, o que cedo ou tarde se traduzirá em melhores condições de vida para quem vive por aqui (os mais radicais dirão que se traduz em mais acumulação de riqueza nos mesmos e mais pobreza para a generalidade, mas sobre isto demonstração empírica mais que suficiente de que a economia não é um jogo de soma nula).

O Chega já deixou claras as suas opções (temos é de nos preocupar com os pobres que os ricos safam-se sempre, ouvi eu de André Ventura, no parlamento, esta tirada de belo recorte teórico e literário), e o PS também já veio dizer que não existe problema nenhum com a eficiência na utilização dos recursos do país e que o único problema que há a resolver é usar os impostos para garantir mais justiça social.

Resumindo, estamos feitos, nem o pai morre, nem a gente almoça.

A demagogia do PS sobre impostos

por henrique pereira dos santos, em 24.05.24

Começou com a proposta de redução do IRS: o PS só aceita diminuir impostos reforçando a justiça social, isto é, na opinião do PS, diminuindo o IRS a quem paga poucos impostos.

Que num ordenado de cinco mil euros o Estado fique com quase 2500 euros só porque pode, é irrelevante para o PS e, do ponto de vista do PS, isso não é um incentivo para que essa pessoa aceite ganhar os mesmos cinco mil euros, por exemplo, nos Estados Unidos, em que o Estado lhe ficará apenas com cerca de 750 euros, em vez de 2500.

Voltou à carga agora com as propostas do IRS jovem, só aceita se se aplicar sobretudo a quem não paga ou paga poucos impostos.

Quando chegar a altura de discutir o IRC, o PS vai dizer a mesma coisa, que o que é preciso é ajudar as pequenas e médias empresas e não as empresas com maiores lucros.

Essencialmente, o PS acha que a função principal dos impostos é assegurar a justiça social (antigamente os partidos de esquerda tendiam a considerar que o verdadeiro instrumento de justiça social era a justa remuneração do trabalho) e que ter impostos elevados sobre os rendimentos ou lucros de quem recebe mais é intrinsecamente justo (independentemente dos que mais recebem serem aqueles a quem as empresas reconhecem mais valor, no que interessa para o IRS, ou serem as empresas mais eficientes, que melhor pagam e que são mais inovadoras, no que interessa para o IRC).

Resumindo, e caricaturando, o PS só aceita diminuições de impostos que só se apliquem a quem não paga impostos, tudo o que não seja isto é governar para os mais ricos.

O PS está cada vez mais perto do princípio que um dia Mariana Mortágua enunciou: o que é preciso é ir buscar o dinheiro onde ele existe.

Tem tudo para correr bem.

A realidade, senhores, a realidade

por henrique pereira dos santos, em 24.05.24

"Quando o Banco Central Europeu decidiu aumentar as taxas directoras, decidiu aumentá-las sabendo perfeitamente que o ciclo da inflação não era provocado pela procura, ou seja, não era provocado por haver um excesso de poder de compra das pessoas ou por o dinheiro ser barato, para simplificar, mas sim, porque as margens de lucro de alguns sectores estavam a crescer bastante, portanto a decisão do BCE foi uma decisão contra as pessoas e a favor de alguns ... mas há outra forma de controlar a inflação? (pergunta o moderador) ... existe, nomeadamente controlando margens de lucros e formas de formação de preços ... nós podíamos era chegar à conclusão, eventualmente, que o BCE não podia resolver o problema da inflação porque o problema não era resolvido do ponto de vista da ordem monetária. Talvez tivesse de ser de regras da economia. Muito bem. Agora subir as taxas de juro tem uma única consequência, que é baixar o poder de compra dos salários, das pensões de quem vive do seu trabalho, é uma escolha agressiva contra os povos".

Não me passou pela cabeça ouvir um debate entre Catarina Martins e Pedro Fidalgo Marques, mas ia no carro e ouvi um excerto destas afirmações de Catarina Martins e fui ouvir a parte em que Catarina Martins fala do BCE para perceber o contexto em que diz que subir as taxas de juro tem como única consequência baixar o poder de compra das pessoas, uma afirmação que me parecia estar ao nível da sua famosa afirmação de que não vale a pena fazer barragens porque a água se evapora.

Mesmo dando de barato que única consequência seja um excesso retórico no calor do debate (apesar dos bocados que fui ouvindo à procura desta parte me tenha dado a ideia de que o calor do debate era o que seria de esperar encontrar numa conversa entre duas Miss Mundo a falar da concórdia mundial), é extraordinária a ideia de Catarina Martins de que é a subida das taxas de juro, e não a inflação, que provoca perda de poder de compra.

Para quem vive do seu trabalho, a subida das taxas de juro tem efeitos indirectos, para quem tem empréstimos (ou empresta dinheiro) é que tem efeitos directos, já a inflação, seja qual for a sua origem, tem efeitos directos e regressivos sobre toda a gente, afectando mais os mais pobres que os mais ricos.

Nem vou discutir a solução de Catarina Martins para o problema (controlar os lucros e a formação de preços, para quem só tem um martelo, todos os problemas são pregos) porque o que verdadeiramente me interessa é o completo desfasamento da realidade concreta evidenciada por este discurso político, desfasamento esse que é completamente irrelevante para os jornalistas que avaliam debates políticos.

Um caso evidente é o de Tânger Correia, que não conheço de lado nenhum (conheço um filho de quem gosto bastante, mas não me dou com ele o suficiente para alguma vez ter falado sobre o pai), que não é, evidentemente, um tribuno, que é relativamente frágil na retórica, de quem me separa a substância de muitas das opções políticas que defende, e que é sistematicamente classificado como o pior dos debates, quando na realidade fala de coisas concretas que existem, são verificáveis e tem, sobre essas realidades, opiniões e propostas (de que discordo) que apresenta de forma educadíssima e cordata (os mesmos jornalistas que classificavam sempre pessimamente André Ventura pela sua truculência e falta de respeito pelos adversários nos debates em que entrou, classificam agora Tânger Correira da mesma forma, independentemente de estar nos antípodas do estilo Ventura).

A miss simpatia do Bloco é sempre referida como experiente e preparada, apesar de estar sempre a falar de um mundo de fantasia, Tânger Correia é sempre referido como um nabo, apesar de trazer para os debates realidades que, sem ele, estariam fora do debate.

A esmagadora maioria dos jornalistas, pelos vistos, prefere ouvir discorrer sobre um mundo que não existe, aquele em que taxas de juro afectam exclusivamente o poder de compra de quem vive do seu trabalho e a inflação se controla controlando lucros e preços, que ouvir Tânger Correia dizer que discutir o envio de tropas portuguesas para Ucrânia é uma discussão inútil porque as nossas forças armadas não conseguem, hoje, mandar mais que meia dúzia de gatos pingados para qualquer lado, de tal forma estão depauperadas.

É pena.

Matar discussões

por henrique pereira dos santos, em 23.05.24

Insurjo-me contra o argumento de que uma organização estar orientada para o lucro a impede de contribuir mais para o bem comum que outra organização que não tem fins lucrativos.

Argumento que o essencial para avaliar isto é se a organização é mais ou menos eficiente, isto é, se entrega mais resultados usando menos recursos, sendo irrelevante saber quem é o seu proprietário e o que o motiva.

Dou exemplos concretos relacionados com a prestação de serviços como a educação, a saúde, a gestão do fogo, a habitação, etc..

E argumento, bem ou mal é outra discussão, que perseguir o lucro é um forte incentivo à melhoria da eficiência e à procura de resposta ao utilizador.

Dou ainda um passo no sentido de dizer que num sistema estritamente privado, ficam de fora as pessoas que não têm recursos para obter os bens ou serviços de que precisam, portanto acho normal que a sociedade, por via filantrópica ou com dinheiro dos contribuintes, se organize para não deixar essas pessoas para trás.

De maneira geral nem perco tempo a explicar que para os mercados funcionarem, é preciso confiança e que isso se reforça com sistemas de justiça que sejam reconhecidamente justos.

Tudo isto decorre de haver problemas, em todo o mundo, sobre as melhores soluções que as diferentes comunidades têm para garantir um tratamento humanista aos seus membros (por exemplo, o Hamas acha que o melhor é estoirar os recursos em túneis e armas, e localizar as suas infraestruturas militares no meio de civis, porque antes de garantir uma vida razoável aos palestinianos, é preciso eliminar Israel, já a generalidade do ocidente tem um problema de sub-financiamento da sua defesa porque acha que há outros destinos prioritários a dar ao dinheiro dos contribuintes).

Parecer-me-ia uma discussão que nos interessa a todos, no sentido em que todos reconhecemos problemas, por exemplo, no sistema de apoio à velhice, em que há uma evidente escassez de infraestruturas de apoio e uma generalizada qualidade abaixo do que seria desejável, nos meios de apoio que existem.

Aparentemente estou enganado, há bastante mais gente do que eu pensava para quem o importante é mesmo atribuir sistematicamente mais poder ao Estado, o garante do bem comum, para nos defendermos dos interesses económicos que só nos querem explorar.

Começa-se logo a discutir o conceito de eficiência, não porque haja qualquer dúvida sobre o sentido em que o conceito é usado acima, mas para poder chegar onde se quer: os malandros dos privados, para terem mais lucros, vão cortar nos ordenados e na qualidade, por isso o lucro é prejudicial.

Depois atiram-se gráficos e estatísticas sobre o sistema de saúde americano que é mais caro e tem um problema grave de acesso de quase um quinto da população, como demonstração de que os privados não são perfeitos.

Há até quem diga que se fosse tudo privado, não havia médicos para os velhotes que vivem no fim do mundo, coisa que faz parte da argumentação inicial, mas que se esquece para poder dizer que sem o Estado, seria tudo muito pior.

Eu tenho uma filha a viver nos Estados Unidos, que passa a vida a dizer mal do sistema de saúde dos EUA (e tem um bom seguro), mas o facto é que vive lá, não vive cá.

Porquê?

Porque lá tem oportunidades que não tem cá, incluindo o facto de pagar muito menos impostos do que cá, o que contribui para que o seu rendimento lá seja muito maior do cá.

Vamos esquecer o argumento de que os EUA são ricos porque são exploradores imperialistas que sugam as riquezas todas do mundo (nem as derrotas no Vietnam ou no Afeganistão, só para dar dois exemplos, convence esta gente de que o mundo não anda a toque de caixa dos americanos).

Em primeiro lugar, o sistema de saúde americano está muito longe de ser um mercado perfeito (de resto não existem mercados perfeitos) e está muito longe de não ter intervenção do Estado.

Em segundo lugar, sendo verdade que é um sistema caro e com problemas de acesso a percentagens muito grandes da população, também é o sistema mais inovador e com maior satisfação do cliente em muitos aspectos, sendo além disso o sistema que melhor paga aos seus profissionais (essa é uma das razões mais relevantes para ser um sistema caro).

Ou seja, não é um sistema perfeito e até pode nem ser o melhor do mundo (aparentemente não é) quando visto globalmente, mas não diz nada sobre o que pode fazer o reforço da intervenção dos privados na melhoria da eficiência global dos sistemas de apoio social em Portugal, visto que grande parte dos problemas que se verificam nesse sistema existem também noutros bastante mais estatizados (como o do Reino Unido).

Para além disso, discutir as vantagens comparativas do sistema americano em relação a outros globalmente mais eficientes (como os sistemas de boa parte dos países ocidentais mais ricos), é muito pouco útil para a discussão sobre os riscos de falência do estado social que se têm vindo a acumular nesses países (de que uma das consequências é o aumento do apoio social e votação em ideias mais nacionalistas).

A mim faz-me confusão que se gaste tanta energia a bloquear discussões ignorando os argumentos e repetindo, sistematicamente, as mesmas tretas baseadas na ideia de que basta encontrar uma imperfeição num mercado ou numa empresa privada para concluir que o melhor é confiar cegamente no Estado.

Os poréns da liberdade de expressão

por João-Afonso Machado, em 23.05.24

Em minha opinião, os turcos não são exactamente um modelo de aplicação no trabalho. Nem, de resto, todo ou quase todo o mundo árabe, muito mais amigo da negociata do que de pegar na enxada ou na picareta. Com imensas vantagens, aliás, para os proficientes portugueses emigrantes.

Na opinião do planeta Mortágua e adjacências eu serei um xenófobo. Alguém a quem, à força se necessário, deverão ser amordaçadas as opiniões, escandalosas, inadmissíveis, colonialistas, etc, etc.

É claro, também, que não alinho nas travessuras de André Ventura, nem comungo do seu espírito provocador. De resto, nunca fui deputado por respeito a mim próprio e porque a arregimentação partidária gosta de livre-pensadores mas não tolera os pensadores livres...

Tudo isto a propósito do episódio "Aguiar-Branco". Bem, e espertamente, fez ele em devolver as responsabilidades censórias à Assembleia. A coisa foi abafada, os analistas dissertaram sobre os limites da liberdade de expressão centrados («focados») na pessoa da segunda figura do estado. Porque parece que dita liberdade de dizer o que se crê certo afinal tem limites, uma descoberta que remonta aos ditâmes de Salazar. Basta que ultrapasse as "linhas vermelhas" que os "salvadores da Pátria" (e sucessores de Salazar) nos querem impor.

Quando a questão é simples: o respeito pessoal inter pares, o tratamento lhano, é conditio sine qua non; a exposição de ideias, por mais estapafúrdias que se nos assemelhem, um elemento da essência da democracia. Ou talvez não, já não sei, como ontem alguém lembrou a deputada Isabel Moreira é pródiga em chamar "mentiroso" aos Governos de Direita e a Esquerda aplaude. Talvez a revolução prossiga, talvez Marx e Lenine hajam sido uns profetas, talvez a guerra esteja aí novamente.

 

A idade das trevas

por João Távora, em 22.05.24

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Acho que já ando a falar disto sobre diversas formas há algum tempo: a dialéctica marxista a acicatar o fosso entre gerações, na diabolização do passado. Lembrei-me disso ao revisitar recentemente a série britânica “Endeavour”, uma esplêndida prequela de outra série televisiva, “Inspector Morse”,  baseada nos romances de Colin Dexter, produzida entre 1987 e 2000 pelos estúdios ITV que obteve grande sucesso. Em “Endeavour”, cuja primeira temporada foi produzida em 2012, recuamos aos anos sessenta do século XX para contar a juventude de Morse, melómano e homem tão complexo quanto culto, que larga o curso de literatura de Oxford para nessa cidade seguir a carreira de detective da polícia, sob a chefia do veterano inspector Thursday. Nesta série, de pendor intimista, protagonizada pelo enigmático e solitário inspector, revisitamos a cidade de Oxford, tanto no seu monumental esplendor quanto nos mais pobres e obscuros bairros da cidade, com as suas máfias e misérias humanas, em plena revolução de costumes. Um dos episódios decorre durante o Campeonato do Mundo de Futebol de 1966, em pleno auge dos Beatles. São dessa época as últimas execuções por pena de morte, assim como o espoletar da revolução sexual com tudo o que ela comportou, da normalização do divórcio à descriminalização das relações homossexuais. O que me salta à vista na narrativa adoptada é a forma como estes assuntos e fracturas são abordados em segundo plano em cada episódio, através duma impiedosa perspectiva maniqueísta sobre a sociedade daquela época, retratada como cruel e obscurantista… Apesar do Reino Unido ser usualmente considerado a mais antiga democracia do mundo. A ironia é que se trata afinal duma perspectiva tão deturpada como aquela que foi adoptada entre nós para se olhar a sociedade portuguesa e a História anterior ao 25 de Abril.

Resumindo, fica a impressão de que as forças progressistas que dominam o ambiente mediático, promovem uma narrativa que diaboliza o passado com obscuros propósitos - ou será simplesmente o mercado a funcionar? Tal acontece talvez para branqueamento dos dramas e apreensões causadas pelo presente, e pior, com vista à consolidação e manutenção das forças no poder, na defesa do inexorável caminho para os maravilhosos “amanhãs que cantam” mas nunca mais chegam. Ora, diabolizar o passado é tão disparatado como idealizá-lo, como se o antigamente tivesse sido a Era das inigualáveis virtudes e heróis.

O “antigamente” é uma entidade fácil de manipular para os mais duvidosos propósitos, na certeza de que o presente é demasiado concreto e complexo para nos iludirmos sobre ele. A diabolização do passado será sempre uma forma infantil de escapismo, de alienação. E não nos esqueçamos que daqui a algumas décadas não faltarão vindouros para nos julgar impiedosamente, aos nossos costumes e forma de vida.

Não costuma ser a sua opinião

por henrique pereira dos santos, em 22.05.24

Uma das coisas que mais me espantam é a quantidade de pessoas que acham útil explicar-me a mim quais são as minhas opiniões.

Diga-se que isto não é nada de pessoal, é uma tendência muito generalizada, nomeadamente na discussão política, consistindo ser eu a definir o que pensa o adversário, para depois contestar o que eu digo que o adversário pensa.

Compreende-se, é muito mais fácil eu contestar a caricatura que faço do que os outros pensam, em vez de realmente contestar os argumentos que o outro realmente usa (é tão simples a propósito do financiamento da rede de lares da terceira idade invocar o monopólio dos tabacos, que nem vale a pena tentar discutir seriamente o assunto).

Penso não ser segredo que tenho posições liberais sobre a generalidade dos assuntos, isto é, entendo que a livre escolha das pessoas deve ser a base do relacionamento social, devendo o Estado concentrar-se em garantir as condições para o reforço dessa liberdade.

Isso não me impede de dizer que quem está em estado de necessidade não tem liberdade de escolha, portanto, não tenho nenhuma objecção a que o Estado pratique acções que visam resolver esse estado de necessidade e, assim, devolver liberdade de escolha às pessoas.

Partindo, no entanto, de uma posição liberal, estou longe de achar que há uma diferença substancial da acção do Estado ou de outros quaisquer agentes sociais, definida pelo facto do Estado tratar do bem comum e as pessoas tratarem dos seus interesses.

O Estado não tem interesses, nem defende os interesses colectivos, quem tem interesses (e podem não ser directamente económicos, mas políticos, ou de influência social, por exemplo) são as pessoas que têm o poder de usar o Estado num ou noutro sentido, por isso vou repetindo o velho princípio marxista (com que concordo) de que o Estado é um instrumento de repressão nas mãos das classes dominantes.

Nas políticas sociais o que me interessa discutir não é se é o Estado, ou não, que deve garantir isto ou aquilo (lares, escolas, hospitais, o que seja), mas sim qual é a solução mais eficiente, isto é, aquela que com menos recursos gera mais retorno, para obter um determinado resultado social (é tão simples passar a jogar ping-pong sobre o conceito de eficiência, para quê fazer um esforço para perceber a substância do argumento e discuti-la?).

Ora o melhor instrumento de produção de informação que sirva de base para uma alocação eficiente de recursos que eu conheço é o preço livremente estabelecido entre quem tem um bem (material ou imaterial) e está disponível para o ceder, e quem quer esse bem e está disponível para pagar por ele.

A livre formação de preços gera mais eficiência que qualquer outro mecanismo que se pretenda usar para garantir que a oferta e a procura se encontram em algum lado.

Por isso, em relação ao pão, à habitação, saúde e educação (a paz é uma questão diferente) ou qualquer outra coisa que se ache fundamental, tanto quanto possível, defendo que se deixem os mercados funcionar.

O facto de defender isto não me impede de saber que haverá sempre pessoas que têm necessidades que não conseguem suprir por não ter os recursos necessários para isso (sejam quais forem as razões que as impedem de obter o que precisam, pagando o preço pelo qual o poderiam obter).

Durante muito tempo o pão era a questão fundamental, depois, resolvido o problema das fomes frequentes e endémicas, passou a ser a educação, até há muito pouco tempo era a saúde e actualmente está muito na moda a habitação.

Em todos os casos a minha posição é a mesma: façamos mercados eficientes, sabendo que haverá sempre quem fique de fora por não conseguir ter os recursos para aceder a bens ou serviços cuja falta é considerada uma desumanidade.

Depois, quer por via da filantropia, quer por via das políticas sociais estatais, concentremo-nos em cobrir o défice de recursos dessas pessoas para acesso aos mercados de que necessitam, em vez de pôr o Estado a tentar "domesticar" (para usar a feliz expressão de Capoulas Santos) os mercados, de maneira geral, gerando ineficiência nesses mercados.

Esta é a minha opinião e tenho todo o gosto em discuti-la, nas suas implicações e limitações, para o que me falta mesmo paciência é para discutir as opiniões que me atribuem e que não reconheço como minhas, feitas com base em interpretações abusivas do que descrevi (embora me sobre paciência suficiente para discutir essas interpretações, se realmente alguém tiver dúvidas do que realmente defendo neste ou naquele ponto, ou se eu tiver sido pouco claro, ou mesmo tiver descrito mal o que penso).

Os lares, o Estado e os outros

por henrique pereira dos santos, em 21.05.24

"A eficiência tem limites, e não há modo de os definir. A partir de certa altura, e não há um "manual", é impossível aumentá-la. Claro que as margens de lucro podem ser aumentadas sem alterar eficiência do funcionamento e dos processos, pagando menos a fornecedores ou cobrando mais a clientes".

Este parágrafo, tirado de um comentário sobre o meu post anterior, é bem ilustrativo de um raciocínio não económico na discussão de prestações sociais, raciocínio esse que vale a pena discutir.

Para tornar mais fácil a discussão, escolhamos, para a ilustrar, outro bem essencial: o pão.

É certo que já houve bastas experiências que pretenderam manipular o mercado do pão com o objectivo de garantir que o pão chegava a todos, desde a soluções mais radicais de apropriação colectiva dos meios de produção, até a soluções menos radicais, como a célebre "lei da fome" de Elvino de Brito.

O que a experiência mostra é que o aumento da eficiência na produção de pão permite que hoje já pouca gente defenda a nacionalização da terra, o controlo das moagens pelo Estado, a criação de uma rede de padarias do Estado, a forte taxação das importação de cereais, etc. (tudo exemplos reais), como boas soluções para garantir o abastecimento de pão à população.

No essencial, neste momento, em Portugal, existe liberdade de produção de cereais, de importação de cereais, de fabrico de pão, de venda de pão, isto é, o mercado e o conjunto de operadores movidos pelo lucro conseguem fornecer pão à generalidade da população.

Como é inevitável, os que não conseguem ter rendimentos suficientes para comprar pão, nem têm acesso a apoios filantrópicos ou controlados pelo Estado para suprir essa dificuldade, ficam para trás.

Como o Estado tem políticas sociais (como o rendimento social de inserção) e como a sociedade desenvolve iniciativas filantrópicas (como os bancos alimentares), é reduzidíssimo o número de pessoas que em Portugal correm o risco de morrer à fome (admitindo que as há).

O principal instrumento de difusão de informação que permite aos operadores de mercado fazer opções é preço, um instrumento do mais eficaz que existe para esse fim, e a concorrência obriga cada operador a fazer o preço que melhor responde à procura que pode viabilizar o seu negócio, pelo que a possibilidade de pagar menos a fornecedores ou aumentar o preço tem limites muito estreitos.

O que diferencia cada operador, determinando a sua falência ou sucesso, é a sua capacidade de ser eficiente na produção de bens e serviços que servem a sua clientela potencial.

Existe alguma diferença entre o abastecimento alimentar e a prestação de cuidados na velhice?

Nem por isso.

Tradicionalmente era nas famílias que estava a garantia (relativa) de uma velhice sem sobressaltos, havendo uma obrigação dos filhos tratarem dos pais, obrigação essa que, mais que as normas sociais, era reforçada por um mecanismo económico nas mãos dos mais velhos: a gestão da herança.

O argumento de que os mais pobres tinham heranças miseráveis e, para este efeito, ineficazes, só parcialmente era verdadeiro porque quanto mais miserável, mais relevante era o pouco que se poderia esperar da herança.

Acontece que este mecanismo deixou de ter a importância que tinha (o que os filhos ganham pode ser muito mais que o que podem esperar da herança e a herança é menos relevante para que os filhos possam aspirar a não passar fome durante a sua vida) e que a esperança de vida aumentou, tal como a mobilidade, pelo que os velhos são, frequentemente, deixados para trás.

Num sistema exclusivamente privado, o que é de esperar é que os ricos resolvam este problema, pagando, os remediados resolvam o problema pagando menos e aguentando as piores condições que o seu dinheiro ainda pode pagar e os pobres, como de costume, ficam dependentes da caridade de terceiros ou estão tramados.

O Estado chamou a si a responsabilidade de minimizar os problemas dos velhos, pagando os cuidados de que necessitam às entidades especializadas em caridade.

Poderia fazer como no caso do pão: atribuía recursos que as pessoas gastam a comprar o pão que querem, onde querem, neste caso, a pagar os lares que quisessem, onde quisessem.

Mas não, o Estado (ou melhor, neste caso, a sociedade) inventou um sistema em que paga aos intermediários, isto é, às entidades especializadas em caridade, para prestar os cuidados de que os velhos precisam.

O resultado é o que se conhece.

O Estado, sempre aflito de dinheiro, prefere gastar três mil milhões para ter uma companhia aérea a gastá-los a melhorar as condições de prestação de cuidados sociais.

Com isso, o dinheiro disponibilizado pelo Estado é pouco, e portanto as entidades especializadas em caridade vêem-se na contingência de reduzir a entrada de utilizadores e diminuírem a qualidade dos serviços prestados, de modo a encaixá-los no dinheiro disponibilizado pelo Estado (não me vou meter no sinuoso mundo do financiamento das famílias e dos utilizadores a estes lares).

Se houvesse dúvidas, o tempo da pandemia demonstrou bem a qualidade dos cuidados prestados, para além da sua escassez.

"Quanto à entrada de privados no mercado social, sejamos claros e honestos; só seria possível SE o Estado definisse preços (como o Estado faz noutros países em que certos sectores, como a saúde, são privados, mas regulados a 100%, malditos comunas), e isso iria contra a tal lógica do lucro liberalizado".

Confesso que já li várias vezes este parágrafo e não percebo bem qual é a questão, visto que me parece claro que o Estado deve definir os termos em que está disposto a gastar o dinheiro dos contribuintes no apoio à velhice.

A minha opinião é a de que o Estado deveria fazer aqui o mesmo que faz com o abastecimento alimentar, isto é, deixar andar os negócios e pagar aos que não têm rendimentos suficientes para arcar com o custo dos lares (ou de cuidados continuados).

O que não percebo é o que quer dizer "lucros liberalizados", porque o lucro (liberalizado ou não) é a mera diferença entre custos e receitas, matéria que depende da eficiência na prestação dos cuidados (quanto menos eficiente é a prestação de cuidados, maior é o custo) e do preço que o mercado permite cobrar (a definição do preço não é uma decisão livre de quem vende, é o ponto de encontro entre a vontade de quem vende e a vontade que quem compra).

"E tenho sérias dúvidas que os lares privados, que mesmo caros não têm falta de clientela, preferissem submeter-se a um preço fixo do que cobrar o que querem (e alterar situações contratuais de preço em conformidade)".

Talvez a explicação da diferença de pontos de vista entre o comentador e eu esteja nesta frase extraordinária.

Extraordinária porque, aparentemente, o que preocupa o comentador é o que fazem os donos dos lares e não a situação dos que precisam de lares.

O que interessa aqui é saber se com os privados é possível ter mais oferta e melhor oferta, e não se os donos dos lares preferem isto ou aquilo (uns preferirão umas coisas, outros preferirão outras).

O que o apoio do Estado faz é alargar o mercado, na medida em que confere a mais gente a capacidade de pagar os cuidados de que precisa. E com esse alargamento do mercado, vem maior diferenciação que, desde que assegurada maior concorrência, permite aos utilizadores mais escolha.

Independentemente de umas pessoas gostarem mais de amarelo e outras de azul, em grandes números, as pessoas tenderão a escolher a melhor qualidade e o preço mais baixo.

Se o Estado estabelece um preço para o pagamento do serviço, o resultado é toda a gente (tirando nichos de mercado muito diferenciados para quem pode pagar) se aproximar desse preço, passando a competir pela diferenciação dos cuidados (por exemplo, médicos mais competentes, funcionários mais simpáticos, maior gama de actividades complementares, melhor cozinha, melhores instalações, etc..), para captar mais clientes e, consequentemente, aumentar os lucros.

"Há que referir que duvido que haja assim tantos que "escolhem" lares privados, vão para lá porque não há opção".

Bingo!

É exactamente esta a questão, a melhoria da qualidade dos cuidados prestados aos velhos depende essencialmente da escolha à disposição dos utilizadores, e dos recursos que lhes permitem pagar essas escolhas.

Isso não tem nenhuma relação com a natureza da propriedade das paredes dos edifícios, pelo que é absurdo separar os prestadores de cuidados em função da sua natureza patrimonial: Estado, instituições especializadas em caridade ou gananciosos à procura de lucros.

Lucros, prestações sociais e afins

por henrique pereira dos santos, em 20.05.24

"uma coisa é na cooperação com as instituições com vocação social esperar que elas não façam essa selecção, outra é esperar que uma empresa privada, que visa o lucro, não o faça", diz Paulo Pedroso.

Paulo Pedroso está a falar do facto de o actual governo ter admitido a hipótese de contar com empresas privadas para expandir a rede de cuidados de terceira idade, para além da rede que hoje existe, assente nos privados com vocação social (o peso do Estado na prestação desses cuidados é marginal como prestador de serviços, mas é esmagador como financiador).

Paulo Pedroso, um estatista assumido, desconfia sempre dos privados e dos lucros e acha que uma instituição com vocação social é sempre bem gerida e orientada apenas pelo bem comum.

Para além disso acha que não se pode mexer no modelo existente, que exclui o apoio directo aos utilizadores da rede de cuidados de terceira idade, em detrimento do apoio às instituições, por razões no essencial estão expressas na citação com que comecei este post: há uma superioridade moral das instituições de vocação social que as defende de serem usadas por quem as queira usar em benefício próprio.

O resultado de ter políticas públicas com postulados morais que dividem o mundo entre os que perseguem o lucro, portanto, incapazes de prestar serviços de interesse colectivo de forma eficiente, e os que não perseguem o lucro, portanto actuando sempre, sempre no sentido do melhor interesse colectivo, é que, de maneira geral, dá asneira.

No caso concreto, o actual modelo que Paulo Pedroso - diga-se de passagem, não apenas ele, o Público tinha feito um ou dois dias antes uma peça em que apareciam dois responsáveis de topo das tais instituições de vocação social, um dos quais solicitando o anonimato, cheios de medo da entrada de empresas privadas no seu negócio, argumentando com a tal questão moral sobre o lucro - acha que não se pode alterar traduz-se numa quantidade brutal de lares ilegais e numa rede de lares mais que insuficiente (daí haver tantos lares ilegais) e inúmeras situações de uso indevido das instituições como no caso da associação raríssimas, do lar do comércio de Matosinhos ou do famoso lar de Reguengos, só para dar exemplos abundantemente noticiados (e toda a gente conhece pequenas histórias por todo o lado).

Paulo Pedroso, como bom estatista, defende a solução habitual: atirar dinheiro para cima do problema. Na sua opinião, basta que o Estado pague mais, que a rede cresce pela mão das instituições de vocação social.

Paulo Pedroso teme que se o Estado abrir a prestação destes cuidados sociais a entidades empresariais, os pobres sejam prejudicados.

Porquê?

Porque o serviço é prestado tendo um financiamento do Estado, que é abaixo do custo real, as famílias financiam outra parte em função dos seus rendimentos e as instituições suportam a diferença para o custo real e portanto os privados irão procurar "ter idosos que têm maior poder de compra, para diminuir o seu risco financeiro".

Vamos esquecer que se as instituições funcionarem com custos mais altos que as receitas, estão a condenar-se a depender de terceiros ou à falência, vamos esquecer que a gestão da prestação de serviços abaixo das necessidades dá às direcções destas instituições o poder, muito pouco escrutinado, de beneficiar os seus amigos e os amigos dos que podem influenciar a entrada de recursos nas instituições e concentremo-nos na questão do lucro e do risco.

Por um lado, o risco é tanto maior quanto menor for a comparticipação do Estado, portanto aumentar a comparticipação do Estado, como defende Paulo Pedroso, diminui os riscos que ele identifica como resultantes da entrada de privados.

Por outro, e muito mais importante, qualquer privado sabe que num mercado fortemente regulamentado, em que grande parte das receitas depende de decisões do Estado sobre o valor de comparticipações que são iguais para todos, a chave para ter lucros está na eficiência do processo de gestão, e não tanto na escolha dos doentes (matéria que pode facilmente ser minimizada com regras de atribuição de apoios inteligentes).

Ao contrário do julgamento moral sobre o lucro com que se pretende impedir os privados de contribuir para a resolução de um problema social grave, a compreensão do papel económico do lucro na alavancagem da eficiência de processos, isto é, no aumento de produção com redução de custos, permitiria prestar mais serviços sociais, e não menos, ao mesmo tempo que obrigaria as instituições de vocação social a modernizarem os seus modelos de gestão.

Se há crítica que pode e deve ser feita a este governo por admitir a hipótese de entrada de privados nos lares (nas creches, nos hospitais, nos centros de saúde, nos jogos sociais, etc., etc., etc.) é que apenas fale nessa hipótese como uma solução complementar, sem a assumir como uma opção de fundo: a liberalização na prestação de serviços sociais é boa para essa prestação de serviços, não é forçosamente um risco moral que acaba a prejudicar os mais pobres.

Domingo de Pentecostes

por João Távora, em 19.05.24

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Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Na tarde daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas as portas da casa onde os discípulos se encontravam, com medo dos judeus, veio Jesus, apresentou-Se no meio deles e disse-lhes: «A paz esteja convosco». Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor. Jesus disse-lhes de novo: «A paz esteja convosco. Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós». Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes: «Recebei o Espírito Santo: àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; e àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos».

Palavra da salvação.

Na imagem: Pentecostes, El Greco

Lucros, migrações e cenas

por henrique pereira dos santos, em 19.05.24

Os bancos lucram 560 mil euros por hora enquanto as famílias fazem enormes sacrifícios para conseguir ter uma casa.

Este tipo de conversa é muito popular, o PC, por exemplo, usa-a muito, embora o BE (que prefere investir em "borlas fiscais" como nariz de cera), o Livre e alguns sectores do PS, e a esmagadora maioria das redacções de jornais, rádios, televisões também se dedicam à divulgação militante desta cassete pirata.

O lucro é o salário do capital, portanto falar de lucros de uma entidade em absoluto para avaliar se os lucros são grandes ou pequenos, é como dizer que o grupo Pingo Doce, por exemplo, paga todos os anos 2 mil milhões de euros em salários, concluindo-se que os seus trabalhadores são todos regiamente pagos, sem discutir por quantas pessoas, e de que maneira, são distribuídos esses tais dois mil milhões (na verdade não faço ideia se o valor anual de salários pagos é este e já vou explicar de onde o inventei, para deixar clara a larga margem de erro potencial deste valor).

Portanto, e em primeiro lugar, falar de lucros sem dizer qual a quantidade de capital necessário para os gerar e, consequentemente, qual é a remuneração desse capital, é simples aldrabice.

É o que é feito neste tipo de artigos com nomes catitas, como "Pingo Doce: «onde os lucros são doces e os salários amargos» em que se usam argumentações manhosas comparando maçãs com laranjas: "Em média, apenas 9% das despesas no sector do comércio se prendem com as remunerações dos trabalhadores. É uma fracção ínfima dos 590 milhões de euros de lucro que a Jerónimo Martins fez em 2022".

No caso citado é mesmo uma mentira evidente: os 9% de despesas do sector do comércio está muito longe de ser uma fracção ínfima dos 590 milhões de euro da Jerónimo Martins (a desonestidade da argumentação vai ao ponto de confundir uma das empresas do grupo com o grupo, para apimentar a coisa).

As vendas da Jerónimo Martins andaram pelos 25 mil milhões na altura deste artigo (actualmente parece que andam pelos trinta mil milhões). Se partimos das vendas como uma aproximação grosseira das despesas (se o lucro foi de 600 milhões, é apenas de cerca de 2,5% das vendas, portanto parece-me razoável não andar a perder tempo a ser mais rigoroso), e se aceitarmos que 9% são salários (aceitando que a percentagem de salários na generalidade do comércio é semelhante à da Jerónimo Martins, do que duvido, mas enfim), então os salários da Jerónimo Martins terão andando pelos 2 mil milhões no ano, quase quatro vezes mais que os lucros, e não uma ínfima parcela (vou esquecer que estavam a comparar todos os salários do sector do comécio como os lucros de um grupo comercial).

Claro que para quem considere que "propriedade é roubo" ou que a solução para as injustiças do mundo é a apropriação colectiva dos meios de produção, subscrevendo a tese de que toda a remuneração de capital é mais valia do trabalhador apropriada pelo patrão, nada do descrito tem interesse porque a única coisa que interessa é liquidar os lucros, impedindo que os trabalhadores sejam roubados pelo capital.

É certo que hoje o PC (e o resto da esquerda, com pequenas excepções de lunáticos) já não defende a apropriação colectiva dos meios de produção e muito menos a ditadura do proletariado como instrumento para obter essa apropriação, o que só seria exequível com um partido de classe fortemente empenhado em ser a vanguarda da classe operária (Catarina Martins chegou a qualificar o BE como essencialmente social-democrata).

Aparentemente, os operários, camponeses, trabalhadores, pequenos comerciantes e pequenos empresários, enfim, o povo, cedo começou a perceber que a tal vanguarda da classe operária, em todo o lado, era uma elite de funcionários partidários que perseguiam os seus interesses pessoais, mesmo que os disfarçassem com a retórica dos amanhãs que cantam.

O problema era que todos seriam felizes amanhã, sempre amanhã, mas hoje não havia conquilhas.

Seria normal que, não gostando do seu quotidiano e não vendo jeitos de o melhorar no futuro, o povo pusesse pés a caminho, que é o que fazem os migrantes, de maneira geral.

Os migrantes são pessoas que vendem a sua força de trabalho e as suas capacidades e não gostam do preço que conseguem obter, no sítio em que estão, com essa venda, achando que noutro lado qualquer o retorno que conseguem obter é maior.

O azar deles é que a vontade de fugir da vanguarda que amanhã, sempre amanhã, iria trazer a felicidade, era generalizada, o que punha em causa os interesses pessoais da elite que decidia os preços das maçãs, os ordenados, a remuneração do capital e tudo isso.

Como consequência, as fronteiras foram fechadas com recurso à repressão, na enésima demonstração de que o Estado não é o garante do bem comum, mas um instrumento de repressão nas mãos das classes dominantes.

É assim que um dos países mais desenvolvidos da América Latina, com melhores indicadores económicos e sociais (independentemente das suas enormes desigualdades e grau de corrupção) antes de uma revolução socialista, Cuba, depois de dezenas de anos de aplicação da lógica de perseguição ao capital, acabou por, este ano, pedir ajuda alimentar ao programa alimentar da ONU.

E é assim que destinos de migração, relativamente modestos, é verdade, mas ainda assim, destinos de migração, como Angola e Moçambique (neste caso com uma situação mais complexa que inclui uma intensa emigração de alguns grupos para o trabalho nas minas da África do Sul, paralelo à imigração de outros grupos para o país), passaram a origens de migrações intensas ao fim de umas dezenas de anos de guerra ao capital (sim, também de outras guerras, mas na base dos regimes estava a guerra ao capital).

E isto é válido pelo mundo inteiro, de tal forma que os principais destinos de migração do Mundo (Suíça, Canadá e Estados Unidos, por esta ordem, em imigração per capita de residentes) são todos países fortemente protectores do capital, e de acumulação de capital, ao contrário das origens dessas migrações, onde é difícil encontrar governos cujo amor pelo capital (em abstracto, o capital de cada um dos dirigentes desses países é diferente, aí sim, de maneira geral há um amor imenso pelo capital) seja permanentemente cultivado e desenvolvido.

No dia em que o PC conseguisse reduzir os lucros da banca a zeros, com o argumento de o distribuir pelas famílias que passam por enormes dificuldades para ter uma casa, o resultado não era as famílias acederem mais facilmente a casas melhores, o resultado era que o capital faria exactamente os mesmo que as pessoas que consideram que mais vale vender a sua força de trabalho noutro sítio, migrando, o que diminuía o capital disponível para produzir casas, limitando ainda mais a oferta.

O equilíbrio só voltaria quando as vítimas dessas políticas, tipicamente os mais pobres, acabassem também eles a engrossar os contingentes de migrantes para sítios em que a adequada remuneração do capital e do trabalho acaba a gerar mais riqueza para todos.

De referência

por henrique pereira dos santos, em 17.05.24

Por acaso, vi a avaliação dos jornalistas do Observador antes de um debate para as europeias.

O debate era entre Catarina Martins, Francisco Paupério, Fidalgo Marques e Tânger Correia.

A avaliação dos jornalistas do Observador falava de uma profissional contra três amadores e pode ser resumida por esta frase que o autor, com certeza, considera um achado espirituoso: "exige-se uma comissão de inquérito para perceber como e com que objetivo André Ventura escolheu António Tânger Corrêa. Deve haver uma conspiração qualquer em curso".

Depois vi o debate propriamente dito (saltando partes, evidentemente) e fiquei a saber que para os jornalistas do Observador (e, neste ponto, acho que não corro grandes riscos se generalizar para o conjunto das redacções) ter uma picareta falante a negar que existam problemas de segurança relacionadas com a migração e tráfico de pessoas, contrapondo que o grande problema de segurança na Europa é a extrema-direita, é estar muitos furos acima de dizer que os desgraçados dos migrantes que enchem a envolvente da igreja dos Anjos de tendas estão ali em piores condições que as pessoas que vivem nos campos de refugiados da Jordânia.

Suponho que estes jornalistas acham que as pessoas comuns são incapazes de descodificar a realidade e de avaliar o grau de adesão dos discursos políticos à realidade (exemplo, o problema da guerra da Ucrânia não é a Rússia ter uma política expansionista que a levou a invadir um país vizinho, é a União Europeia ser eurocínica e não querer trabalhar para a paz porque está ao serviço dos interesses ligados à produção de armamento, diz a picareta falante, com os jornalistas a considerarem um desempenho de campanha profissional e seguro).

Por puro acaso, fizeram-me chegar um texto sobre as valas comuns associadas às escolas cristãs do Canadá que receberam filhos das comunidades indígenas, um assunto que em 2021 levantou tanta confusão que até o papa Francisco fez uma visita penitencial ao Canadá em 2022.

Qual era a questão? Era tudo falso, um investigador resolveu divulgar dados preliminares de um estudo com radar de profundidade, tomaram-se como bons esses resultados e indicadores de procedimentos horrorosos generalizados que foram escondidos durante mais de cem anos, mas os resultados das investigações posteriores, que demonstravam não haver qualquer base factual para o bruaaá entretanto levantado, pura e simplesmente são ignorados pela imprensa de referência.

O editorial do Público de hoje, de uma cobardia inaudita, mostra bem o estado da imprensa, ao tentar explicar como um jornal de referência como o Público anda há vários dias a alimentar uma história mal contada sobre uma criança nepalesa brutalmente agredida pelos colegas, numa escola primária.

O Público tinha uma maneira digna de se ter apresentado como Egaz Moniz, com um baraço ao pescoço: "a notícia era muito sumarenta, a Renascença estava a noticiar e como a Lusa fez uma peça qualquer, resolvemos ampliar o boato sem verificar um chavelho dos factos, pedimos desculpa pelo facto de continuarmos a confiar na Lusa, apesar de todos os dias lermos coisas deles que não são bem assim (ainda hoje, por exemplo, todos nós, jornalistas, repetimos sem problemas a história de que Passos Coelho previu a vinda do Diabo, sem que haja uma única confirmação de que realmente as coisas se passaram como fontes anónimas contaram que se tinham passado, está-nos na massa do sangue esta queda para o boato que não precisa de confirmação, quando achamos que se não aconteceu, podia ter acontecido)".

Mas não, o director do Público preferiu justificar o injustificável, descrevendo o diz que disse em que se baseou o Público para contar histórias da carochinha como se fossem descrições da realidade, como é habitual fazer.

Depois queixam-se de que as pessoas não compram jornais.

Um elogio justo

por henrique pereira dos santos, em 16.05.24

Vi grande parte do debate quinzenal de ontem, na Assembleia da República, também para aferir a distância entre o que se tinha passado e a imagem que os jornais e televisões fazem do que se passou (o que li e ouvi depois confirma que a visão dos jornais sobre o debate é, não só intelectualmente pobre, como bovinamente semelhante).

Gostei do debate, por exemplo, Pedro Nuno Santos levantou questões relevantes sobre o ruído dos aviões decorrente do aumento de movimentos por hora previsto na decisão do Governo sobre o aeroporto (a que Montenegro não conseguiu responder de forma clara, o que acho normal).

Ao contrário do que disse inicialmente Pedro Nuno Santos, o problema não será tanto a impossibilidade de aumentar o número de movimentos, mas o medo de que não haja autorização ambiental para isso (é o que escreve no famoso despacho que determina o avanço das obras no Montijo, para gerir a transição, e que leu ontem no plenário, sem se aperceber de como estava a demonstrar que o medo da opinião pública tolhia a acção do governo anterior).

Foi também interessante ver que o BE e Mariana Mortágua estavam mais preocupados com os eventuais lucros da Vinci, que com a substância das decisões sobre o aeroporto, numa demonstração muito clara de que ao BE incomoda mais que alguém tenha lucro que a discussão sobre se esse alguém, para ter lucro, resolve um problema a terceiros (ao BE não interessa muito se o merceeiro exerce bem a sua função de assegurar o abastecimento alimentar dos fregueses, o que interessa ao BE é saber se os lucros que motivam o merceeiro a ter uma mercearia aberta podem servir para combate político baseado no ressentimento).

Mas o que me surpreendeu, e na verdade motiva o post, foi ter ouvido de Montenegro uma coisa que não era novidade mas me tinha passado completamente ao lado: a aprovação da duplicação da consignação do IRS.

A medida é genericamente ignorada pela imprensa e não sei quanto representa de perda de receita para o Estado, sem ganho para o contribuinte e sem visibilidade sobre a ligação entre o financiamento dos beneficiários e a decisão do governo, ou seja, é uma medida politicamente inútil, do ponto de vista de quem olha para a política como o conjunto de esquemas usados para ganhar votos.

Considerando uns 18 mil milhões de receita do IRS, 0,5% do IRS serão 90 milhões de euros (se não me enganei quer nos dados, quer nas contas, que isto não é o meu mundo), mas na verdade será menos porque muita gente não usa a faculdade de consignar 0,5% do IRS a um conjunto de organizações a quem o Estado reconhece interesse público (calculo que os estatistas mais militantes achem sempre que mais vale ser o Estado a distribuir o dinheiro dos impostos que serem eles próprios a destinar parte desses impostos a organizações concretas cujo trabalho conheçam e apreciem).

Em qualquer caso, não são trocos.

Há muito tempo que defendo esta duplicação da consignação do IRS e no debate Paulo Núncio deu destaque a esta medida, escolhendo o ponto de vista do que ela representa de duplicação do financiamento das instituições de solidariedade social, isto é, de apoio aos mais frágeis.

Montenegro respondeu-lhe na mesma linha (uma das partes mais chatas dos debates são estas partes gagas em que há uma espécie de perguntas combinadas entre amigos) mas acrescentou aquilo que verdadeiramente me interessa e que esteve sempre na base dos meus argumentos, quando tentei incluir esta medida em programas políticos sobre os quais me pediram opinião: permitir às pessoas que consignem parte dos seus impostos reforça a liberdade de cada um apoiar quem acha que merece, e reforça a necessidade das instituições estarem mais próximas das pessoas que dos centros de poder.

Esta é a grande virtude desta medida, que passará despercebida para muita gente, que só tem efeitos aquando da entrega do IRS do ano que vem, que não permite as simulações de que a imprensa tanto gosta, que não serve para números mediáticos e demagógicos e que diminui o poder no Estado na alocação de recursos, transferindo 0,5% do poder que advém da cobrança do IRS para as pessoas comuns.

Tiro o chapéu ao governo por ter tomado esta medida, veremos depois se ela acaba concretizada ou não, e em que termos, mas a opção, em si mesmo, merece o meu sonoro aplauso.

Pensamento mágico

por henrique pereira dos santos, em 15.05.24

Paulo Fernandes, o mais citado investigador de ecologia do fogo que o país tem (e dos mais relevantes do mundo na matéria), disse que habitualmente usava um fotografia de um cogumelo para ilustrar o facto do fogo controlado não afectar a biodiversidade de forma relevante (não, não é para demonstrar coisa nenhuma nem é um argumento científico, é uma ilustração do que a ciência estabeleceu até agora sobre o assunto, usando outros métodos que não a publicação de exemplos contingentes):

441487150_10163240493337437_4267400210842318648_n.

(não sei de quem é esta fotografia).

e disse-o porque estava com intenções de passar a usar outra fotografia (esta de Silvana Pais) com um sapo em perfeitas condições de saúde a passear-se depois do fogo controlado:

442488356_10163240493062437_8874237053025786031_n.

Claro que nenhuma destas duas fotografias demonstra alguma coisa de essencial, apenas contraria a ideia de que o fogo destroi tudo e queima tudo, e o que o Paulo dizia era que apenas ilustrava o facto do fogo controlado ser genericamente inócuo para a biodiversidade (esta afirmação não resulta das fotografias, resulta de dezenas de estudos sobre o assunto, as fotografias apenas ilustram essa ideia, são evidências contingentes que, por si, dizem muito pouco).

Sem surpresa, a publicação destas fotografias, e respectivo comentário, desencadeou uma série de reacções assentes em pensamento mágico, sem qualquer base sólida, mas muito ilustrativa de como funciona a nossa cabeça e de como o conhecimento e a educação não nos defendem assim tão eficazmente das armadilhas de pensamento.

"Tadinho do bicho" é o nível mais razoável de comentários, que dá origem à resposta cartesiana normal, evidentemente ineficaz para responder ao choque emocional que motiva o comentário: "Não, está grato por ter potencialmente sido salvo de um futuro incêndio de verão".

O comentário que me parece mais eficaz, também vem ilustrado:

443940741_1818650688599464_216270295765759957_n.jp

(também não sei de quem é a fotografia) "Só quem estiver de má fé não consegue perceber que qualquer ser vivo que estivesse naquela urze sai dali completamente incólume... vá quanto muito com um bronzeado...".

É um comentário tão emocional como o primeiro, mas já alinhando na ignorância militante que permite e incentiva a ironia e a escapatória argumentativa habitual, quando falta racionalidade ao argumento, o julgamento moral do adversário.

A verdade é que desde a própria urze que está a arder desta forma e vai resistir ao fogo porque tem mecanismos de adaptação ao fogo, passando pela fauna capaz de se deslocar e que portanto se safa incólume por não ficar à espera, passando pelos seres vivos que estão na base da planta e camada superficial do solo, que não sofrem nada porque a irradiação de energia não é suficiente para alterar a temperatura ao nível do solo (por várias razões, incluindo exactamente a mesma que faz com que os cuspidores de fogo cuspam sempre quase na vertical para cima, e nunca, mas nunca, para baixo), passando por formas de vida sem capacidade de deslocação mas mecanismos de defesa adaptados, o facto é que a afectação provocada pelo fogo ilustrado na fotografia, do ponto de vista da biodiversidade, é irrelevante.

"Um sapo de perfeita saúde depois de um fogo?? Mesmo que só tenha ficado com queimaduras de 1 grau… E vai comer o quê? Francamente…", a inocência da indignação filha da ignorância, visto que não há queimaduras e o sapo se alimenta de invertebrados que são beneficiados com o fogo controlado, é outra das reacções associadas ao pensamento mágico, essencialmente assente em emoções e percepções superficiais sobre fenómenos complexos, como é o fogo.

É aliás curioso que qualquer pessoa saiba que usar fogo vivo ou fogo brando resulte em coisas completamente diferentes na cozinha, mesmo partindo dos mesmos ingredientes, mas ao mudar para a escala da paisagem considere que o fogo é todo igual e tem sempre os mesmos efeitos em contextos imensamente mais complicados que um tacho.

Depois podemos subir na sofisticação da argumentação, o que na prática se traduz em tentativas de racionalização do pensamento mágico, feitas essencialmente por quem tem mais conhecimento e formação em áreas científicas: não se vêem animais mortos porque "todos os sapos que morrerem enterrados enterrados ficam. Todas as salamandras, lagartixas, cobras-cegas, licranços, etc., que estão na manta-morta ou debaixo de pedras à superfície morrerão cozidas, carbonizadas ou simplesmente desaparecerão em fumo.".

O problema é que num fogo controlado não há energia suficiente para alterar, de forma relevante, a temperatura da camada superficial do solo ou afectar a manta morta (por definição, a humidade da manta morta é maior, pelo que é preciso energia para a secar primeiro, e depois a carbonizar, e essa energia não está disponível num fogo de baixa intensidade, sobretudo abaixo do plano em que se desloca a chama). O que quer dizer que o sapo da fotografia não é um exemplar único dos muitos que existiam (ou que foi despertado da sua hibernação pelo calor do fogo, como outra pessoa dizia) e terão morrido debaixo do solo ou das pedras, porque não há alterações relevantes de temperatura no solo e debaixo das pedras.

Eu próprio já caí nesse erro de raciocínio numas experiências de indução da germinação de sementes de acácias com fogo controlado, tendo depois conluído que se a eliminação de sombra e a alteração da cor da superfície até poderiam ter um efeito marginal de indução das sementes, não havia indução directa por alteração da temperatura abaixo do solo.

Há sempre quem argumente com exemplos de fogos com outras características, como os animais mortos no incêndio do pinhal de Leiria, sem ter em atenção que tipicamente um fogo controlado se desloca a uma velocidade de 0,1 a um metro por minuto (contra a velocidade do fogo do pinhal de Leiria em torno dos 50 a 100 metros por minuto, ou seja, cem vezes mais rapidamente) e uma intensidade em torno dos 10 a 500 kW/m (contra intensidades de 10 000 a 100 000 kW/m, ou seja, uma intensidade mais de mil vezes superior). Os números são de uma resposta do Paulo Fernandes.

Normalmente acaba sempre por aparecer um académico encartado (mas que nunca estudou academicamente o assunto em causa) que faz uma citação de um estudo que não diz nada sobre a matéria para além daquelas precauções que todos os académicos são obrigados a pôr nos seus artigos, a dizer que o que não está demonstrado está por demonstrar, contrapondo a honestidade dos académicos citados à honestidade dos académicos que se pretende contestar, que é evidentemente miserável.

O uso do pensamento mágico para contestar as opiniões de que se não gosta acaba sempre no mesmo sítio: na discussão dos interesses que fazem com que coisas com que não concordamos estejam a ser defendidas por pessoas que sabem mais que nós do assunto.

Isto é permanente nas discussões sobre fogo, sobre conservação, sobre ambiente, mas seguramente é uma coisa muito transversal.

Razão tinha o meu paizinho: quem não confia no árbritro, não joga.

Novo aeroporto em Alcochete

por João Távora, em 14.05.24

Gostei da decisão do governo, achei importante o consenso da maioria dos partidos e sintonia com o parecer da Comissão Técnica, e também gostei da decisão das obras urgentes na Portela. A notícia de que gostei mais foi da escolha do nome. Suspeito é que Luís Vaz de Camões daqui a 10 anos esteja cancelado pelo politicamente correcto como símbolo do heteropatriarcado branco, esclavagismo, e colonialismo.

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