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E por último

por henrique pereira dos santos, em 30.04.24

Como é bom de ver, fiquei pior que estragado com o artigo de  Susana Peralta, mas este será, em princípio, o último dos três posts que lhe dediquei.

Recapitulando, a tese de Susana Peralta é: "Grandes progressos no PIB, não nos indicadores de qualidade de vida e pobreza".

A minha tese é a de que essa afirmação é absurda, em si, e de maneira nenhuma fica demonstrada pela fundamentação usada por Susana Peralta no seu artigo.

Tudo isso não tem grande importância, é certo, mas interessa-me a clivagem ideológica que me parece estar na base das divergências.

Uma das clivagens está na ideia de associar pobreza e igualdade (ou desigualdade), um dos argumentos base da nova esquerda, mesmo a que se pretende não marxista, o que a leva a concentrar a discussão e acção contra a pobreza em mecanismos que visam garantir, ou pelo menos aumentar, a igualdade.

Muitos outros, como eu, consideram que a o melhor instrumento de redução da pobreza é o aumento da produção de riqueza, independentemente (uma independência relativa, está bom de ver) da desigualdade.

Outro ponto de clivagem está no papel do Estado (e das formas de luta organizadas dos trabalhadores) nos mecanismos de combate à porbreza, no pressuposto de que os interesses privados apenas podem gerar desigualdade, injustiça e pobreza, se forem deixados sem tutela do Estado.

Muitos outros, como eu, consideram que o papel do Estado é assegurar o primado da lei que regula os conflitos entre privados, como mecanismo para ter comunidades (o que inclui as respectivas economias) dinâmicas, inovadoras, produtoras de riqueza suficiente para que a pobreza seja não só residual, como reversível para cada indivíduo ou família.

No meu post anterior, falei num aumento real de salários na ordem dos 7% ao ano, mas explicitamente disse que não fiz as contas e nem as saberia fazer, era uma ordem de grandeza.

Manda, por isso, a prudência que não use esse número, mas metade, e vejamos o que sucede a um salário de 100 euros em 1960, depois de 13 anos (até 1973) a crescer, em termos reais, 3,5% ao ano.

O que sucede é que esse salário que vale 100 euros em 1960, vale, em termos reais, descontando, por isso a desvalorização imposta pelos processos inflacionários, 150 euros, mais ou menos, ou seja, em termos agregados, os salários reais do Portugal de 1960 subiram pelo menos 50% até 1973 (por curiosidade, se tivesse usado os tais 7%, o aumento teria sido de 125%).

Claro que se pode argumentar, como faz Susana Peralta, que como o regime anterior ao 25 de Abril era um regime de exclusão, deixando de fora boa parte da população, que se manteria na pobreza. E tem razão Susana Peralta quando diz que, sobre isso, a informação é relativamente escassa.

Acontece que há indicadores indirectos que apontam para uma melhoria global das condições de vida (a descida rápida da mortalidade infantil, as alterações dos hábitos de consumo, a alteração da altura e peso da generalidade da população identificada no artigo de Nuno Palma que citei, etc., etc., etc.).

Acresce que esse seria sempre o resultado esperado: ninguém, no seu perfeito juízo, acha razoável que em termos agregados os ordenados cresçam 50% em treze anos sem que isso se traduza na diminuição da pobreza, por mais desigual que seja esse crescimento dos salários.

Numa ditadura, sem liberdade de associação, sem liberdade sindical, sem direito à greve, a dinâmica da economia gerou ganhos para os trabalhadores que em nenhum momento posterior, com todas essas liberdades, foram conseguidos em tão pouco tempo, tanto quanto sei (espero que alguém me corrija, se por acaso for possível encontrar, nos 50 anos de Democracia, 13 anos seguidos em que ocorra um aumento dos salários reais de 50%).

A luta dos trabalhadores, a intervenção do Estado, seja administrativa a fixar ordenados mínimos, seja com intervenção activa, através de prestações sociais, pode ser importante para optimizar o resultado social da dinâmica económica, mas dificilmente suplanta a importância dessa dinâmica no retorno para os trabalhadores, até porque o mais poderoso instrumento promotor de justiça social (que não deve ser confundido com igualdade) é, sempre foi e, provavelmente continuará a ser, o justo pagamento do trabalho.

O busílis é que há sempre constrangimentos inultrapassáveis para alguns e que as medidas de optimização social podem ter efeitos negativos na dinâmica económica, razão pela qual a política, como a história, nunca terá fim.

Do que eu gostava mesmo é que nas comemorações dos 51 anos do 25 de Abril se investisse fortemente na destruição dos mitos que temos disseminado sobre o mais dinâmico período económico da nossa história nos últimos 200 anos, não porque eu pretenda ilibar o regime da sua ilegitimidade, ou acusar o 25 de Abril de tropelias várias, mas porque esses mitos têm contribuído, excessivamente, para limitar a discussão sobre a melhor forma de nos organizarmos para optimizar resultados sociais (o que significa, também, optimizar o nosso potencial produtivo).

Nunca li nada de Soljenitsin, mas tropecei numa citação sua que vale a pena trazer aqui para ilustrar as tais clivagens ideológicas: "Liberdade e igualdade são conceitos mutuamente exclusivos, até mesmo hostis. A liberdade, por sua própria natureza, mina a igualdade social, e a igualdade suprime a liberdade – pois de que outra forma ela poderia ser alcançada?".

Já seria tempo de substituir a igualdade pela justiça em quase todos os programas de intervenção política, dado o efeito tóxico que a procura de igualdade de resultados gera, mesmo quando apenas substitui a justa reivindicação de maior igualdade de oportunidades.

Como é possível, Susana?

por henrique pereira dos santos, em 29.04.24

Por causa do meu post de ontem, fizeram-me notar que havia alguma imprecisão no que eu dizia sobre o aumento de produtividade na economia portuguesa nos vinte anos anteriores ao 25 de Abril e chamaram-me a atenção para a facilidade com que poderia olhar para dados existentes sobre o assunto, nas séries longas da economia portuguesa.

Eu não percebo nada de economia (nem consta que eu tenha biblioteca), não sou um académico, limito-me a ser um pobre homem da Póvoa com curiosidade, é portanto possível (não é um orgulho, é uma circunstância) que não saiba, ou pelo menos não me lembre, das séries longas da economia portuguesa quando me teriam dado jeito para dizer menos asneiras que as que digo.

De resto, esta minha queda para a dispersão faz-me ficar a olhar para bonecos como este, em vez de me concentrar no essencial de que tratará o post.

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O que gostava de entender é por que razão, se Susana Peralta quer discutir o emprego e o rendimento das famílias antes e depois do 25 de Abril, não recorre a estas séries longas de dados, em vez de ir buscar um obscuro relatório de 1977 que acha que a economia anterior a 1974 criou relativamente pouco emprego (que Susana Peralta transforma num taxativo "criou pouco emprego").

Vamos a dados concretos.

Em 1953 há 3 364 700 empregos e em 1973 há 3 825 600 empregos, ou seja, mais 460 900 empregos, cerca 13,7% de aumento de emprego nesses vinte anos. Nos vinte anos seguintes, entre 1974 e 1994 passamos de 3 825 300 para 4 520 100, ou seja, cerca de 18,2% de aumento.

Melhor, sem dúvida, mas como existem os dados, olhemos para eles.

Entre 1953 e 1973 foram destruídos 517 600 empregos na agricultura, silvicultura e pescas, ou seja, o aumento de emprego no resto da economia não foi de cerca de meio milhão, mas de cerca de um milhão de empregos. Entre 1974 e 1994, os vinte anos posteriores ao 25 de Abril, o emprego na agricultura, silvicultura e pescas continuou a diminuir, passou de 802 900 para 658 200, ou seja, foram destruídos um pouco menos de 150 mil empregos nesses sectores.

Se a emigração dos anos sessenta foi sobretudo rural e deve andar pelo milhão e meio de pessoas, correspondendo à destruição de meio milhão de empregos na agricultura, o aumento de emprego no resto da economia, meio milhão de compensação dos empregos perdidos na agricultura e outro meio milhão a mais, é consistente com a fixação de um milhão e meio de pessoas (um pouco menos porque a diminuição do tamanho dos agregados familiares acompanha a urbanização) o que é coerente com o facto da população do país apenas ter diminuído cerca de 300 mil pessoas, apesar de uma emigração de milhão e meio.

E é aqui que está a maior falta de rigor no que eu disse sobre produtividade no meu post anterior, mas também a dimensão do absurdo de pretender que o aumento do PIB não coincidiu com um aumento generalizado dos indicadores de rendimento e qualidade de vida da população, tese que Susana Peralta, para mim incompreensivelmente, resolveu subscrever.

O processo descrito acima corresponde à substituição de empregos de baixíssima produtividade e baixíssimo rendimento numa agricultura de subsistência (a miséria da cultura de cereais, como escrevia Salazar na sua tese de 1916) por empregos na indústria e serviços, incomparavelmente mais produtivos (por hora de trabalho) e mais bem remunerados.

Ou seja, ao contrário do que eu escrevi, há de facto aumentos de produtividade muito grandes, sem ser por nenhum dos processos que referi no artigo de ontem.

Não fiz as contas (nem as saberia fazer, de resto), mas diz-me quem as fez, que os salários reais (salários reais, note-se) cresceram cerca de 7% ao ano e a distribuição em “ordenados e salário dos empregados a trabalhar no território nacional" ter-se-á multiplicado por seis e qualquer coisa nesse período.

De resto, mesmo no sector da agricultura, os adubos de síntese, a mecanização e o melhoramento genético, impulsionados também pelas crescentes desvalorização de terras produtivas, abandono das terras menos produtivas e escassez de mão-de-obra, provocam um aumento de produtividade muito relevante.

O processo migratório foi de facto uma válvula de escape, como muito bem o caracteriza o tal relatório de 1977 e Susana Peralta, bem, subscreve, mas isso não é um indicador evidente das condições miseráveis de vida de uma parte substancial da população portuguesa decorrente do Estado Novo, pelo contrário, faz parte de um processo de transformação social que em grande medida ocorreria sempre, independentemente do governo ou regime da altura (nesse sentido, não pode ser contabilizado a favor do regime em que ocorreu que, como qualquer governo, tem uma influência muito mais pequena na dinâmica social do que habitualmente achamos todos).

Esse processo migratório contribuiu largamente para reduzir as tensões sociais que ocorreriam, pela destruição do emprego numa agricultura de miséria, dentro dessa transformação social que corresponde à mudança de um país com um capital humanos desqualificado, rural e miserável, num país ainda pobre, mas menos, mais industrializado, com mais serviços, mais urbanizado e com uma população várias vezes mais qualificada e rica que a geração anterior.

Ao contrário do que acontece com parte da migração actual, em que exportamos capital humano qualificado e importamos capital humanos pouco qualificado, porque o perfil da nossa economia é o que é, nos vinte anos anteriores ao 25 de Abril, estávamos a fixar o capital humano mais qualificado (e a qualificá-lo a uma velocidade muito maior que nos dois séculos anteriores), ao mesmo tempo que exportávamos capital humano pouco qualificado e afecto a actividades de baixíssima produtividade.

Pretender negar isto para fazer um retrato do Portugal de 1973 como o resultado da longa noite fascista, ultrapassa a minha capacidade de compreensão, não vejo que o possa o regime democrático ganhar em negar evidências.

Viva o 25 de Abril, cujas virtudes não dependem, em nada, dos seus resultados económicos (embora a insistência em espantalhos, para nos distrair das suas dificuldades e das más decisões que tomamos em matéria económica, seja um grande problema que alimenta o crescimento dos inimigos da democracia e da liberdade).

"Concordo com o viva o 25 de Abril..."

por henrique pereira dos santos, em 28.04.24

O título deste post é um sensato comentário ao artigo de Susana Peralta "Quando Portugal era mesmo pobre", que está no Público de 26 de Abril e refere-se à frase com o que o artigo fecha: "Viva o 25 de Abril".

É uma fórmula elegante, correcta e lúcida de enquadrar uma opinião negativa sobre o artigo ("O resto é a lenga-lenga do costume... Fixa-se no ponto do tempo sem considerar a dinamica", é o resto), opinião que partilho e que choca de frente com a opinião que Susana Peralta tem do artigo "Grandes progressos no PIB, não nos indicadores de qualidade de vida e pobreza, como mostro no meu artigo de hoje no Público".

Susana Peralta, que é economista, subscreve uma tese arriscada (e ao arrepio de boa parte da historiografia que se dedicou a estudar isso) sobre o desenvolvimento do país antes do 25 de Abril, a de que a economia cresceu marcadamente ("grandes progressos no PIB"), mas isso não se traduziu nos "indicadores de qualidade de vida e pobreza".

Esperaria eu que uma economista com a reputação de Susana Peralta, ao subscrever uma tese tão exótica (em Portugal ou em qualquer lado do mundo), fizesse um artigo com uma fundamentação sólida e verificável, comparando os indicadores de qualidade de vida e pobreza no momento em que começam os "grandes progressos no PIB" e no momento em que esse grandes progressos travam bruscamente, em 1973, demonstrando não haver relação entre aumento da produção da riqueza e aumento da qualidade de vida e riqueza da generalidade da população.

Para minha surpresa, não só não é este o método de comparação escolhido por Susana Peralta, como o artigo acentua o exotismo da argumentação, escolhendo um artigo (na verdade é um relatório de uma missão técnica, feito pelo chefe dessa missão e publicado na revista da Organização Internacional do Trabalho) sem verificação por pares "Employment and basic needs: lessons of a mission to Portugal", de 1977, que, acordo com Susana Peralta, demonstra que o crescimento brutal entre meados dos anos 50 e 1973, criou pouco emprego.

Esta conclusão estranha, a de que uma economia que tem crescimentos anuais em torno dos 10% criou pouco emprego (em rigor, o artigo fala em relativamente pouco emprego), seria, por si só, motivo para uma revisão atenta das conclusões dessa missão da OIT, e respectivos fundamentos, o que Susana Peralta parece achar irrelevante, limitando-se a citar a ideia de que o desenvolvimento em Portugal, entre 1956 e 1973, não é o desenvolvimento típico de uma economia com excesso de trabalhadores, mas o de uma economia drenada dos seus trabalhadores.

Ao aceitar esta tese, sem mais, está-se a fazer um enormíssimo elogio ao Estado Novo, que simplesmente não tem qualquer relação com a realidade.

É que uma economia crescer à volta de 10% ao ano sem criar grande emprego só seria possível com enormíssimos ganhos de produtividade, obtidos através de tecnologia de ponta, organização de ponta, inovação e qualificação do capital humano envolvido nessa economia, tudo características que era bom que tivessem sido as da economia portuguesa em alguma altura, mas seguramente não a caracterizam nos últimos 200 anos, pelo menos.

Para além deste evidente absurdo, a mera consulta dos censos da população permitiria verificar que, mesmo que a emigração tenha sido de milhão e meio de pessoas (é uma estimativa razoável), a população do país apenas desceu 300 mil pessoas (para se ter um termo de comparação, nos últimos dez anos entre os dois últimos censos, 2011/ 2021, a população de Portugal diminui cerca de 200 mil pessoas).

Ou seja, aparentemente, um milhão e duzentas mil pessoas que emigraram foram compensadas pelo crescimento natural da população, o que só se consegue explicar com a criação de emprego em ordens de grandeza compatíveis, uma vez que o desemprego era bastante baixo nessa altura.

A estranheza pelo absurdo da argumentação acentua-se quando Susana Peralta pretende demonstrar que o crescimento do PIB não se traduziu na melhoria das condições de saúde da população e, para isso, escolhe olhar para a esperança de vida e a taxa de mortalidade infantil.

Opta por olhar para as séries longas que existem destes dois indicadores (estão por todo o lado, mas poderia, por exemplo, olhar para o recente livro de Nuno Palma, cujo capítulo 9 trata, de forma muito fundamentada em indicadores numéricos, todas estas questões)?

Não, prefere pegar nos números desses indicadores de 1960, em Portugal, e ver quantos países, actualmente, têm valores daquela ordem de grandeza: Afeganistão, Somália e República Centro-Africana.

Em 1960, Paris estava rodeada de bairros de lata, coisa que os portugueses sabem bem porque era aí que vivia uma boa parte dos seus emigrantes, que nessa data ainda nem sequer estava autorizada a mais usada vacina contra a polio, só na década de 70 o uso do DDT foi banido em muitos países, o uso da talidomida generalizou-se por essa data, e só depois foi proibida, e os padrões de nutrição, em especial de nutrição infantil de recém nascidos e até aos cinco anos, eram estratosfericamente diferentes do que são hoje, em todo o mundo, para ser breve, Susana Peralta parece ignorar os factos básicos que invalidam completamente esse tipo de comparações absurdas: "Many of us are not aware that child mortality has declined substantially everywhere and still imagine the divided world as it was in 1950. A divided world where progress in the richest countries was dynamic, but static and persistently bad elsewhere. As the chart shows, substantial declines in child mortality have occurred across all regions. In 2018, average rates in Africa are now lower than the European average in 1950".

Para justificar os delírios em que fundamenta os mitos a que resolve dar livre curso, Susana Peralta recorre a teorias de conspiração sobre a produção de informação sobre pobreza e igualdade (como se houvesse alguma relação fixa comprovada entre pobreza e desigualdade, um mito marxista com mais de cem anos de invalidação e, ainda assim, resiste), procurando demonstrar que o Estado Novo, que cria o Instituto Nacional de Estatística nos seus primeiros anos, que produz as primeiras estatísticas modernas do país em 1940, que em 1970 faz o primeiro censo da habitação (matéria que Susana Peralta trata de forma conspiratória no artigo), afinal o que queria era que não houvesse informação sobre o país.

Deve ser por isso que Susana Peralta recorre ao trabalho da OIT já citado para dizer que "quase um terço da população ingeria menos de 30 gramas de proteínas diárias e era, portanto, sub-nutrida", em vez de recorrer à informação do INE, como seria normal ou, se não lhe causasse urticária, mais uma vez recorresse a Nuno Palma para saber que o facto de alguém ser pobre em 1977 não quer dizer que o regime anterior ao 25 de Abril fosse um regime de exclusão, já que o consumo de leite, ovos e carne aumentou brutalmente durante todo o Estado Novo (ler, por exemplo, "Stunting and wasting in a growing economy: biological living standards in Portugal during the twentieth century", de Alexandra L. Cermeño, Nuno Palma e Renato Pistola ).

Note-se que a alteração dos padrões de consumo não só está amplamente documentada, como é banal na historiografia portuguesa, por exemplo, Luciano Amaral, 1994: "Graças à subida dos rendimentos urbanos induzida pelo desenvolvimento industrial, o consumo, nomeadamente o alimentar, sofreu um razoável aumento entre a década de 50 e a de 70. Em matéria de alimentos, esse aumento foi-se fazendo em benefício dos chamados produtos agrícolas ricos — carne, leite, ovos, fruta, etc. — e em detrimento dos mais pobres — cereais, como o centeio, a cevada e o arroz, mas também a batata, o vinho e outros".

Infelizmente, nem Susana Peralta, nem o relatório de 1977 que chama à colação, explicam como foi calculado o consumo de proteínas, mas como o relatório citado identifica especiais carências nas zonas rurais do Norte, fico com a ideia de que alguém avaliou o consumo de proteínas com forte desvalorização do consumo de leguminosas secas, porque não é crível que mais de 50% da população de Trás-os-montes não comesse feijão, grão, favas e ervilhas em quantidades bastante razoáveis.

Viva o 25 de Abril, sim, nisso estamos de acordo, não estamos de acordo é que "só a liberdade e a democracia obrigam os governos a responder às necessidades do povo", como a história demonstra amplamente, embora baste olhar para a ditadura chinesa para se perceber que a melhoria da qualidade de vida das pessoas possa ocorrer em regimes inimigos da democracia e da liberdade.

Mais que isso, não estamos de acordo em manipular a história para criar mitos sobre a superioridade de uns regimes sobre outros: a democracia pode precisar de ter resultados económicos para se defender dos seus inimigos, mas não precisa da manipulação da história para criar falsas justificações económicas para o que se justifica plenamente com a liberdade das pessoas e a legitimidade do poder, independentemente de quaisquer resultados económicos.

A ignorância como política oficial do Estado

por henrique pereira dos santos, em 27.04.24

Bem sei que a notícia é da Lusa, portanto o seu rigor precisaria de ser verificado, mas o sentido geral do que é dito pela GNR será, com certeza, consistente com a realidade.

Comecemos, antes de falar do Estado, por falar da imprensa.

A escolha do título são os 2,5 milhões que o Estado, através da GNR, arrecadou em relacionadas com a gestão de combustíveis por causa dos incêndios.

Comecemos por notar que o mais relevante para a imprensa é o valor das coimas, e não qualquer indicador de resultado e por notar que a imprensa acha inútil perguntar ao Estado quanto custou cobrar esses 2,5 milhões de euros, quer em meios de fiscalização, quer na instrução dos processos, quer ainda no esforço de cobrança, depois de decididos os processos de contra-ordenação.

Agora falemos do Estado, e não da GNR, que faz o que lhe determinam.

O Estado português reconhece a existência de um problema sério de gestão do fogo, do qual resultam perdas sociais relevantes, quer em vidas de pessoas, quer em destruíção de infraestruturas, quer em destruição de capital físico, quer ainda em diminuição da competitividade do sector que ocupa cerca de um terço do território (um terço de Portugal são usos não florestais, dois terços são usos florestais divididos entre matos e povoamentos florestais, grosso modo).

O Estado, através do sistema científico que tem ou apoia, e da parte desse sistema científico que é da responsabilidade das empresas e da sociedade civil, sabe que a gestão do fogo se faz pela gestão de combustíveis finos e que o principal problema de gestão que existe, associado ao fogo, é a ausência ou insuficiência da gestão desses combustíveis finos, por manifesta inviabilidade económica das operações de gestão.

Tendo este quadro, o Estado acha que a melhor maneira de lidar com a inviabilidade económica de uma actividade socialmente útil é determinar, legalmente, a sua execução, pondo o seu aparelho repressivo a garantir que as pessoas, empresas e outras instituições executam operações economicamente ruinosas.

Mas o Estado português vai mais longe, ilegaliza, ou complica administrativamente, a execução das operações de gestão de combustíveis que servem os interesses sociais, pondo de novo o seu aparelho repressivo a perseguir a execução de operações de gestão de combustíveis que são socialmente úteis: "A GNR totalizou, de 2018 a 2023, por falta de limpeza de terrenos florestais 26.140 contraordenações e, desde 2019 até ao ano passado, registou 3.419 por queimas e 1.359 por queimadas".

E nem quero falar do desprezo, quando não perseguição, das actividades económicas que poderiam ajudar a gerir o problema do fogo.

Que isso é uma opção perfeitamente clara, é uma evidência:

"Afirmando que, após identificação das causas dos incêndios, “o uso do fogo é a maior preocupação” e que “só as queimas e queimadas contribuem com mais de 35% das ocorrências de incêndio nos últimos anos”, a GNR apela a “um esforço [de todos] para que a redução do combustível se possa realizar com recurso a outros métodos alternativos”, como “a incorporação no solo e a produção de biomassa, reduzindo-se assim o risco de gerar ocorrências”."

Nem mesmo a verificação da estupidez desta opção abala a confiança no pensamento mágico que a suporta: "De acordo com Ricardo Vaz Alves, precisamente o que continua a criar maior pressão de todas as causas de incêndio é “o recurso às queimas e queimadas” e “continua a haver uma grande dificuldade em identificar métodos alternativos” à gestão dos resíduos florestais".

Caro comandante, o senhor não tem responsabilidade nenhuma nisto, nem tem obrigação nenhuma de saber que o que põe pressão na gestão do fogo não é o recurso a queimas e queimadas e, pelos vistos, é suficientemente inteligente para, mesmo não tenho tido formação adequada sobre ecologia do fogo, reconhecer que "continua a haver uma grande dificuldade em identificar métodos alternativos", mas a verdade é que tudo isto corresponde a assumir a ignorância como política de Estado.

O que interessa num incêndio não saber como começa, mas por que razão não é possível pará-lo.

O que põe pressão é o abandono, a falta de gestão, a falta de viabilidade económica das operações de gestão de combustíveis finos e a falta de fogo no Outono, Inverno e Primavera.

Eu percebo a sua frustração "“Nesse sentido, nós estamos atualmente com uma comunicação bastante intensiva, não digo [para] abolição, porque o fogo vai existir sempre, mas pelo menos para adequar os comportamentos e o tratamento de resíduos florestais por outras vias, que não seja a queima e a queimada, seja através de incorporação nos solos, seja através da venda depois para centrais de biomassa ou para centrais de transformação em ‘pellets'”, frisou", mas sabe, isto não é uma questão de comunicação nem de tratamento de combustíveis finos por outras vias, isto é mesmo uma questão de economia e falta de uso correcto do fogo como ferramenta de gestão.

Estando todos de acordo com o que diz nesta parte: "“O nosso foco nunca é o auto em si, o nosso foco é sempre a salvaguarda da segurança e a preservação daquilo que são as condições mínimas de distância face ao edificado”, vincou Ricardo Vaz Alves", só posso lamentar que quem toma as decisões sobre segurança e preservação resolva ignorar todo o conhecimento que existe sobre o problema e ponha os seus homens a reprimir comportamentos socialmente úteis, como impedir queimadas em alturas adequadas, em vez de os pôr a apoiar as pessoas a fazer essas queimadas de forma adequada.

Mas não é o senhor comandante que me entristece, é isto ser sabido há tanto tempo, e continuarmos nesta triste sina de usar o dinheiro dos contribuintes em políticas sem base técnica que, para além de um enorme desperdício, ainda têm como efeito agravar o problema que se quer resolver.

Triste sina, triste país.

Não podias

por henrique pereira dos santos, em 26.04.24

Sim, eu sei que a campanha "Não podias", uma campanha oficial de comemoração dos 50 anos do 25 de Abril, já tem algum tempo e já se escreveu bastante sobre ela.

Ainda assim, quando a dei como exemplo de como a manipulação da história é a política oficial portuguesa - uma prática, aliás, em que o Estado Novo era bastante mais agressivo que o regime democrático -, responderam-me com a seriedade intelectual de responsáveis pelas comemorações, matéria sobre a qual não tenho de ter qualquer opinião, as coisas são o que são.

A verdade é que esta pulsão de comparações entre dois tempos, para retirar conclusões gerais sobre os regimes ou governos que existiam nesses dois tempos, não é apenas governamental: a Fundação Francisco Manuel dos Santos, por exemplo, neste 25 de Abril, resolveu comparar estatísticas do país em 1974 e em 2024.

Não há nenhum problema em comparar estatisticamente momentos diferentes, pelo contrário, há muita informação, algum conhecimento e pontual sabedoria, que se pode obter desta forma.

De resto, fiz uma tese de doutoramento inteiramente assente na comparação de estatísticas associadas a uma unidade geográfica - o concelho - ao longo do século XX, o que me parece que demonstra como evidentemente reconheço o interesse em fazer comparações estatísticas entre diferentes momentos.

O que não faz sentido nenhum, e esse é o principal problema da campanha "Não podias", é atribuir aos governos de cada momento toda a responsabilidade pelo retrato social desse momento.

Dizer "Não podias beijar" ou "Não podias defender-te", como características anteriores ao 25 de Abril é estúpido, mas olhando mais em pormenor, a campanha não é tão desaustinada como parece, quando limita a simplificação, afinal só se pretende dizer que os códigos sociais do namoro antes do 25 de Abril (e não vou discutir a tolice de considerar "antes do 25 de Abril" como um tempo homogéneo, como se Portugal fosse o mesmo durante todo o Estado Novo) eram diferentes dos actuais.

Atribuir esses códigos aos regimes anterior e posterior ao 25 de Abril, quando toda a gente sabe que o Maio de 68, em França, começa com um protesto de um pequeno grupo de estudantes a propósito da segregação sexual dos lares estudantis, é pura manipulação, por mais que os factos referidos sobre a diferença de namoro há 50 anos e hoje sejam facilmente aceites como verdadeiros (dou de barato as imprecisões idiotas que caracterizam a campanha).

É quase tão estúpido como dizer que "Não podias" aceder à internet antes do 25 de Abril e atribuir esse facto ao regime, mesmo que realmente não se pudesse aceder à internet, ou usar telemóveis, antes do 25 de Abril.

A campanha continua a existir e a quantidade de pessoas razoáveis que mostra tolerância a este grau de manipulação da memória histórica para obtenção de ganho político é brutal (Patrícia Gilvaz, deputada da Iniciativa Liberal, assina um artigo de opinião intelectualmente indigente sobre o 25 de Abril em que começa por afirmar "Nos anos que antecederam a Revolução dos Cravos, enfrentávamos uma crise económica que condenava o nosso país à mediocridade", o que demonstra bem como tem sido eficaz essa manipulação da história).

Para mim, que considero a democracia intrinsecamente melhor que a ausência de democracia, é incompreensível a insegurança das pessoas que acham que para realçar as diferenças entre uma ditadura e uma democracia é preciso manipular a história, não vá alguém ter dúvidas sobre as razões que justificam a superioridade das democracias sobre as ditaduras.

Golpadas e revoluções

por João Távora, em 25.04.24

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Golpe de Estado é a fórmula típica portuguesa de fazer as reformas que os apaniguados do regime protelam e empurram com a barriga. É assim há mais de 200 anos a "começar de novo" e não tem dado bom resultado. Uma sondagem há dias dizia que o 25 de Abril é o momento histórico mais importante da história de Portugal. Aguardemos pelo próximo.

Perplexidades

por henrique pereira dos santos, em 25.04.24

Não acompanhei com a atenção devida a rábula das mexidas no IRS que, de qualquer maneira, ainda vai a meio.

O que percebi até agora é o seguinte.

Há partidos, como o PC, o BE e o Livre, que acham que a riqueza é um sistema de vasos comunicantes que faz com que os pobres sejam menos pobres quando os ricos são menos ricos.

Como perseguir os ricos é muito mais fácil que apoiar os pobres, até por serem muito menos, todas as suas propostas se centram na ideia de diminuir a riqueza dos ricos.

O PS tem uma posição diferente, entende que a riqueza não é um sistema de vasos comunicantes e portanto não basta diminuir a riqueza dos ricos para haver mais riqueza para os pobres, é possível melhorar a situação dos debaixo ao mesmo tempo que aumenta a riqueza dos de cima, desde que se crie mais riqueza. Ainda assim, acha que a forma de diminuir a pobreza é criar apoios sociais para os mais pobres e coisas afins, como ter uma elevada progressividade dos impostos sobre o trabalho, de maneira que a sua prática tem sido aumentar os impostos globalmente, porque acredita que o melhor é entregar o dinheiro ao Estado para criar ou aumentar apoios sociais, mas de forma as que os de cima paguem proporcionalmente muito mais que os de baixo.

A AD tem um ponto de vista manifestamente diferente, diz que é preciso ter uma fiscalidade amiga do esforço de todos, incluindo dos mais ricos, de tal forma que as pessoas não desistam de esforçar para ganhar mais dinheiro em Portugal (ou porque emigram, ou porque preferem não investir, ou porque preferem investimentos de baixo risco, etc.), pretendendo resolver parte do problema da pobreza como melhores salários pagos por uma economina mais sólida e dinâmica, e não tanto por baixar uma fiscalidade que, para os de baixo, já é proporcionalmente baixa. E porque entende que contas públicas desequilibradas acabam sempre em problemas maiores para os de baixo, tem propostas gradualistas de diminuição da carga fiscal para todos (o que se reflecte em diminuições absolutas maiores para quem recebe mais dinheiro, evidentemente).

A IL tem uma posição semelhante, mas mais radical, considerando que baixar os impostos sobre o trabalho é o mínimo dos mínimos para fazer o elevador social funcionar, e o Estado que arranje maneira de se governar com menos dinheiro.

Depois há o Chega que quer ser o maior partido da direita o mais rapidamente possível, seja de que maneira for.

Resultado até agora?

Uma coligação  entre o Chega e o PS para manter a política fiscal do PS, ainda que a um nível um bocadinho mais baixo do que antes (não, não sou a dizê-lo, é a André Ventura a explicar que tem é de se preocupar com as pessoas que ganham menos e não com as pessoas que ganham mais).

Veremos o resultado final daqui a uns tempos.

Inconveniências de Abril

por João-Afonso Machado, em 25.04.24

Ao melhor estilo do Almirante Tomaz, Marcelo perorou ontem sobre o actual 1º ministro e o seu antecessor no cargo. Acerca deste teceu umbricada filosofia sobre a sua oriental lentidão de procedimentos - isto é, foi levantar lebres étnicas inúteis e ainda por cima tontas, incidentes sobre o mais ladino dos políticos portugueses. Já àquele apelidou-o de rural; do Interior, um homem de Espinho, enfim eventualmente sabendo orientar-se no Porto, em Lisboa não.

Marcelo esquece a sua origem minhota. Daqui partiu, andou não sei por onde e estacionou numa quinta - que já foi rural, onde se caçavam rolas e perdizes, e que uns tantos magnatas estragaram. É a Quinta da Marinha, está tudo dito.

Hoje, para rematar, depois de uma sanfona de "Grândolas" que já atordoa: o enfase dado à chaimite que levou Marcelo Caetano e dois ministros seus para o exílio. Feio, muito feio. Humilhante. Respeitem-se os vencidos. Que cá têm ainda filhos, netos, gente que não deixará de sofrer com essa despropositada lembrança. Aliás, bem poderia dar-se o caso de o Pai de Marcelo ter ido lá dentro também.

50 anos

por João Távora, em 24.04.24

Evidentemente saúdo a democracia recuperada há 50 anos no 25 de Abril - quase desbaratada de seguida. Afinal, foi ao tempo da monarquia liberal, ao longo do século XIX, que se ensaiaram os primeiros e acidentados passos duma democracia moderna, um processo interrompido com o regicídio e a 1ª república.

Para celebrar o nosso regime liberal representativo não são necessários exercícios infantis de diabolização do passado. Acontece que não nos aliviam a consciência das misérias e preocupações do presente, uma delas com a Liberdade.

Romantismo rural

por henrique pereira dos santos, em 24.04.24

Na entrevista a Ribeiro Telles que citei recentemente, e que é de Agosto de 2003, há um aspecto que merece atenção, não por ser de Ribeiro Telles, cujo pensamento sobre a matéria é bastante conhecido e pacífico, mas porque os mitos (hoje são inegavelmente mitos, na altura ainda poderiam ser opiniões discutíveis) sobre o mundo rural que lhe estão na base se mantêm vivos, apesar de todo o conhecimento entretanto acumulado.

"O mundo rural foi considerado obsoleto, como qualquer coisa que vai desaparecer. Veja-se o disparate que foi a política de diminuição dos activos na agricultura. Contribuiu para o aumento dos subúrbios, dos bairros de lata, da emigração. Trouxe alguma coisa melhor para a província? Não. Apenas um grande negócio para as celuloses e para os madeireiros. ... [os agricultores] foram convencidos de que eram uns labregos. Houve toda uma política de desprestígio do mundo rural tendo por base a ideia de que era inferior ao mundo urbano. Despovoámos os campos e essa gente toda veio para a cidade."

Quem conhece o contexto do que transcrevi, sabe que na sua origem estão ideias que nesta entrevista não são explícitas, mas que numa outra entrevista, no Correio Real, de Novembro de 2011, são muito claras e explícitas:

"entender o agricultor como verdadeiro guardião dos campos, serras e matas — do espaço rural cuja beleza, equilíbrio e estabilidade geram benefícios de ordem cultural, social e física.Temos de pensar em termos de dignificação do homem e de valorização da terra".

Esta é a essência do romantismo rural que continua a ser uma linha de pensamento sobre o mundo rural, ainda hoje, e de que as ideias sobre o pagamento de serviços de ecossistema serão a face tecnocrática, admitindo que o parágrafo anterior tem uma face tecnocrática possível.

O problema da ideia romântica de que a vida das pessoas do mundo rural não se guia pelas mesmas pulsões humanas das outras actividades, incluindo as pulsões económicas, mas que existe uma dignidade intrínseca na produção de alimentos que não existe noutras formas de criação de riqueza, é que é um beco sem saída.

Qualquer actividade humana pressupõe consumo permanente de recursos pelo que ou essa actividade gera esses recursos, ou tem de haver outras actividades geradoras de recursos que sustentem actividades que são sobretudo consumidoras de recursos.

Considerar que houve uma política de diminuição de activos na agricultura (activos, na frase em questão, quer dizer pessoas) em detrimento de uma visão menos romântica que reconhece que a evolução do mundo permitiu às pessoas comuns encontrar formas de vida que acharam preferíveis, é considerar que o mundo é comandado por forças poderosas e não pelos milhões de decisões que todos os dias são tomadas por milhões de pessoas à procura de uma vida melhor.

Ribeiro Telles, cujo PPM era caracterizado no tempo do PREC pelo humor da simplificação programática expressa na frase "Os sovietes e o Rei", que no movimento monárquico me parece que foi dos poucos que não teve hesitações quando foi preciso optar entre liberdade e tradição, ficando sempre do lado da liberdade, que sempre defendeu uma regionalização baseada em dezenas de regiões naturais assentes no municipalismo, acaba por defender o mais feroz centralismo ao deixar-se conduzir pelo  romantismo rural que referi: "O Estado não domina totalmente a expansão urbana quando quer, não faz planos gerais de urbanização? Não se devia poder plantar o que se quer porque também não se pode construir o que se quer. Constrói-se mal porque, às vezes, o Estado adormece".

O que me parece é que esse centralismo a que se chega não é verdadeiramente o que caracteriza o pensamento sobre a dignidade específica do agricultor e do pastor, é apenas uma resposta atamancada ao beco sem saída que o romantismo rural representa: se o que financia a actividade do mundo rural não é a riqueza material criada, como se financia, então?

É verdade que a derrocada do mundo rural tradicional se traduz em perdas de diversidade, seja na maneira de falar, seja na diversidade de pão ou das cozinhas, seja na diversidade das celebrações comunitárias, seja na paisagem, seja na biodiversidade, se quisermos simplicar, na relativa uniformização cultural que caracteriza um mundo urbano globalizado.

É verdade que custa ver morrer toda essa diversidade e ter consciência da perda de vitalidade cultural que representa,  e é bom que existam muitos projectos como "A música portuguesa a gostar dela própria" para registar coisas antes que se percam, na esperança de que haja, para elas, um futuro diferente do que pensamos que venha a ser: cultura viva de comunidades em permanente evolução que se transforma na triste cristalização das peças de museu.

Reconhecer a morte de um mundo de que se gosta não é apenas útil para se poder fazer o luto e seguir em frente, é sobretudo útil para evitar a tentação de nos concentrarmos no esforço inútil e dispendioso de tentar reanimar um cadáver.

"Tecnicamente verdadeiro"

por henrique pereira dos santos, em 23.04.24

Desde que a AD formou governo, ou mesmo um bocadinho antes, já várias vezes li em peças jornalísticas (sejam elas de opinião ou não, que eu tenho cada vez mais dificuldade em distinguir uma coisa da outra) a expressão "tecnicamente verdadeiro".

O contexto é sempre o mesmo: alguém diz alguma coisa que é verdade, mas o jornalista (ou opinador, insisto que tenho dificuldade na distinção) acha que não devia ser, então diz que a afirmação é tecnicamente verdadeira, mas ... e depois dedica-se à habitual intriga.

Mais ou menos como se alguém dissesse que o que distingue um pastel de nata de um bom bocado era um ter massa folhada e outro ter massa areada (e eu não vou discutir se o que acabei de dizer é verdade ou não, é irrelevante para explicar o argumento) e o jornalista dizer que isso é tecnicamente verdade, mas nada diz sobre se o pastel de nata é melhor que o bom bocado, coisa que nos bastidores tem sido forte tema de controvérsia bem demonstrativa da incapacidade desse tal alguém inicial dizer alguma coisa de jeito.

E, no fim, chamam jornalismo à arte de contrariar uma coisa através da distinção entre a verdade técnica, a que é objectiva e verificável, da verdade verdade, a que o jornalista define.

Em louvor de Ribeiro Telles

por henrique pereira dos santos, em 22.04.24

“V: A excessiva divisão do território (em meio milhão de proprietários) dificulta as limpezas florestais?
GRT: A limpeza da floresta é um mito. O que se limpa na floresta, a matéria orgânica? E o que se faz à matéria orgânica, deita-se fora, queima-se? Dantes era com essa matéria que se ia mantendo a agricultura em boas condições e melhorando a qualidade dos solos. E, ao mesmo tempo, era mantida a quantidade suficiente na mata para que houvesse uma maior capacidade de retenção da água.
Com a limpeza exaustiva transformámos a mata num espelho e a água corre mais velozmente e menos se retém na mata, portanto mais seco fica o ambiente.
V: Se as matas estivessem bem limpas ardiam na mesma?
GRT: Ardiam na mesma e a capacidade de retenção da água não se dava, passava a haver um sistema torrencial. A limpeza tem que ser entendida como uma operação agrícola. Mas esta floresta monocultural de resinosas e eucaliptos, limpa ou não limpa, não serve para mais nada senão para arder. Aquela floresta vive para não ter gente. Se houvesse lá mais gente aquilo não ardia assim”.

Em Agosto de 2003, depois dos grandes incêndios desse ano, a Visão entrevistou Ribeiro Telles e, em Junho de 2017, depois de Pedrogão, a então sub-directora da Visão, Alexandra Correia, republicava a entrevista, afirmando “Esta entrevista tem 14 anos mas podia ter sido dada hoje”, acrescentando uma frase que, em qualquer caso, não se baseia na entrevista, mas num abuso de interpretação “Vale a pena voltar a ler as suas palavras e perceber como nada aprendemos com a História, continuando ano após ano na permissividade da celebração do eucaliptal”.

Comecemos por este abuso, e depois vamos à substância das coisas.

Ribeiro Telles é claríssimo na sua oposição à florestação comercial, a que contrapõe um mundo rural anterior à revolução verde.

Em Portugal, esse era um mundo rural de agricultores e pastores – usando o fogo como um instrumento essencial para a gestão e queimando extensamente matéria orgânica – cujas actividades se interligam.

Nessa visão, pinheiro e eucalipto estão no mesmo pé, ao ponto de afirmar, na mesma entrevista: “Perguntem às vítimas dos incêndios que ficaram sem as casas se querem outra vez pinheiros à porta. Destruíram as hortas… Porque ardem as casas? Porque o pinheiro está no quintal”.

De resto, a afirmação final que transcrevi “Se houvesse lá mais gente aquilo não ardia assim” está absolutamente certa, apenas está errada a relação de causa e efeito estabelecida: não é por causa da florestação que lá está menos gente, é porque está lá menos gente que há florestação comercial.

No entanto, a jornalista acha que nas palavras de Ribeiro Telles está uma crítica à permissividade da celebração do eucaliptal, o que manifestamente não é verdade.

É verdade que Ribeiro Telles sempre foi fortemente crítico da produção de eucalipto, mas não é verdade que essa fosse a questão central para ele, apresentá-la desse modo corresponde a uma coisa muito frequente nos que se apoiam em Ribeiro Telles para fundamentar os seus pontos de vista: a deturpação do que era o seu pensamento.
Vamos então à substância da citação com que começo este post.

Em 2003, quando a entrevista é feita, Ribeiro Telles tem 80 anos, mais coisa menos coisa, pelo que grande parte do diz é relevante em função da experiência e conhecimento desses 80 anos, mas ninguém poderia esperar que fosse relevante por corresponder ao conhecimento mais actualizado sobre temas específicos.

Não é, pois, de espantar que Ribeiro Telles, ou qualquer outra pessoa com 80 anos (ou mesmo eu, com os meus actuais 60 e qualquer coisa) diga coisas que correspondem a conhecimento desactualizado, sobretudo em matérias que não são o centro da sua actividade intelectual ao longo dos tais 80 anos.

É manifestamente o caso da ecologia do fogo, uma disciplina incipiente durante quase toda a vida activa de Ribeiro Telles, que se desenvolve, em Portugal, essencialmente a partir dos anos 80 do século XX (já Ribeiro Telles tinha a idade que tenho agora, uma idade que posso confirmar que, mesmo que se saiba muito mais, se aprende muito menos do que se aprendia quando se tinha 20 anos e ideias menos cristalizadas).

O que justifica esta resposta: “V: Se as matas estivessem bem limpas ardiam na mesma? GRT: Ardiam na mesma”, que está manifestamente errada, já estava errada quando Ribeiro Telles a diz, mais errada está hoje (no sentido em que mais informação o demonstra), mas era possível que não estivesse demonstrado que estivesse errada quando Ribeiro Telles, muitos anos antes, firmou a sua convicção de que o que comandava a progressão do fogo eram as árvores dominantes de um povoamento.

Já em 2003 era perfeitamente claro que o que comanda o fogo é a quantidade e estrutura dos combustíveis finos, sendo as espécies de árvores que dominam o povoamento razoavelmente indiferentes, sendo muito mais relevante para a discussão a frase seguinte da resposta, a que infelizmente se dá muito menos atenção “A limpeza tem que ser entendida como uma operação agrícola”.

Mais de vinte anos passados sobre a entrevista (ou, no momento da sua republicação, 14 anos depois) é possível avaliar se o futuro confirmou as previsões de Ribeiro Telles quando afirma “Com a limpeza exaustiva transformámos a mata num espelho e a água corre mais velozmente e menos se retém na mata, portanto mais seco fica o ambiente”.

E o que sabemos hoje é que não há a menor evidência de que as previsões de Ribeiro Telles se tenham verificado, mesmo que parcialmente.

De resto, os fogos de 2017 são, eles mesmos, indício de que os problemas não foram os identificados por Ribeiro Telles, ou melhor, Ribeiro Telles está certo quando identifica a derrocada do mundo rural pré-revolução verde e a sua relação com a florestação comercial, mas nem a solução que propõe é viável – retornar a esse mundo rural cheio de gente – nem os efeitos são os que previu.

Na maioria do território o que há é abandono, como que isso significa de ausência de gestão dos combustíveis finos, criando as condições para fogos progressivamente maiores, mais contínuos e intensos, que têm um efeito de retroalimentação do abandono ao diminuir a viabilidade económica da gestão (“A limpeza tem que ser entendida como uma operação agrícola”, diz Ribeiro Telles sem que daí retire qualquer conclusão útil para a discussão da sua viabilidade económica, discussão que afasta com profissões de fé sobre a viabilidade económica de usos alternativos, nunca demonstradas).

Numa pequena parte do país, os cerca de 200 mil hectares geridos pelas celuloses, que teoricamente não serviriam para nada se não para arder, a prevalência de fogo é um quarto da média nacional, os combustíveis finos são intensamente geridos porque há uma actividade económica que gera recursos para essa gestão e beneficia da diminuição da prevalência do fogo.

Não há qualquer sinal de que se tenha formado um “espelho e a água corre mais velozmente e menos se retém na mata” porque o interesse dos produtores florestais é reter a água e o solo, razão pela qual desenvolveram técnicas de produção com esse objectivo, em especial modelos de plantação em socalcos que permitem reter água, solo, nutrientes e diminuir a capacidade erosiva das escorrências, conduzindo-as por sistemas de drenagem eficientes, mas também plantações que permitem executar uma série de operações ao longo da curva de nível, ao mesmo tempo que a linha, e a vegetação que nela subsiste com as técnicas usadas, funciona como barreira à escorrência.

Quer isto dizer que não vale a pena ler e discutir Ribeiro Telles?

Não, de maneira nenhuma, o que quer dizer é que não vale a pena lê-lo como se fosse o oráculo de Delfos, aceitando acriticamente tudo o que pensou, escreveu ou disse e, muito menos, distorcer o seu pensamento para usar o seu justificado prestígio para contrabandear as ideias de terceiros.

Louvar Ribeiro Telles é ler os originais, ouvir os originais, de forma crítica e compreendendo o contexto do que é escrito e dito, reconhecendo o seu mérito e o que tem de modernidade, mas evitando que o uso indevido das suas ideias acabe por destruir o valor do que fez e disse, apenas porque, inevitavelmente, em tudo o que disse e escreveu, haverá sempre coisas erradas ou inviáveis.

É por isso de saudar que amanhã seja lançado mais um livro com o que escreveu e espero que isso se traduza em mais gente a compreender melhor o contexto do que pensou, escreveu, disse e fez.

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Escapará por certo a muita gente que Gonçalo Ribeiro Telles, entre os anos cinquenta e setenta do século XX, assumiu um importante papel na transição do regime, que culminou com a sua eleição como deputado da AD e designação para Ministro da Qualidade de Vida do governo de Francisco Sá Carneiro. Tal percurso aconteceu, resumidamente, com a criação em 1957 do Movimento dos Monárquicos Independentes, a que se seguiria o Movimento dos Monárquicos Populares, com a posterior integração em 1969 na Comissão Eleitoral Monárquica, para concorrer à Assembleia Nacional. Hoje mais conhecido como fundador do movimento ecologista em Portugal, Ribeiro Telles sempre foi para mim um exemplo da moderação e da abrangência política particularmente relevante num líder monárquico. Como já referi por diversas vezes, a chefia de Estado Real, o rei, só o será algum dia enquanto máximo zelador da liberdade de todos, todos, todos. Uma monarquia, na complexidade das sociedades actuais, só poderá perdurar assente em largos e profundos consensos duma nação antiga como a nossa, que legitimem a prevalência dessa tradição.

Independentemente do falhanço do equívoco projeto partidário do PPM, que Ribeiro Telles fundou com algumas das mais excepcionais personalidades políticas de então, como Henrique Barrilaro Ruas, Francisco Rolão Preto e Augusto Ferreira do Amaral, a sua liderança e autoridade — que extravasou o âmbito dos monárquicos — sempre me mereceu profundo respeito. Não partilhando muitas das suas referências ideológicas, admiro-o como o comunicador cativante e inato que foi, como católico praticante, e pela manifesta lealdade à Causa Real e à Casa de Bragança, na pessoa do Senhor Dom Duarte, que perdurou até ao fim da sua longa vida. Até poucos anos antes da sua morte em 2020, fez questão em participar na vida da Real Associação de Lisboa, de que era membro, e com ele tive o privilégio de me cruzar em Assembleias Gerais e de o entrevistar para a revista que publicamos.

É porque esse seu protagonismo na política portuguesa tende a ser esquecido e menosprezado pela tirania politicamente correcta, que a Real Associação de Lisboa, no âmbito das celebrações do 50.º aniversário do 25 de Abril, decidiu reeditar uma sua antologia intitulada Porque Sou Monárquico, com base na recolha preparada por Vasco Rosa (que também organizou para a Real Associação de Lisboa a antologia A Liberdade Portuguesa, de Henrique Barrilaro Ruas, também ele deputado constituinte de boa memória para muitos), cujo lançamento se realizará — simbolicamente — no próximo dia 23, terça-feira, pelas 18:30, no Auditório Almeida Santos do Parlamento português, ou palácio de São Bento. A nova edição, com um texto inédito, estará disponível para venda no local e também aqui.

Com mais esta homenagem ao saudoso arquitecto paisagista, ecologista e político, pretende-se realçar o papel dos monárquicos na transição do Estado Novo para a Democracia. Aqui deixo o desafio aos leitores a participar neste importante evento, que contará com a honrosa presença dos Duques de Bragança e com a participação especial de Augusto Ferreira do Amaral, co-fundador do PPM, João Barroso Soares, que com o homenageado conviveu durante os seus mandatos na CML, e do historiador José Miguel Sardica, profundo conhecedor da história do século XX, área de investigação em que há muito se vem afirmando. A conferência promete.

A democracia e a liberdade são o território natural dos monárquicos portugueses. Importa não esquecê-lo — ou, como agora se diz, cancelá-lo.

Texto original publicado no Observador

Fundo de Conservação da Natureza

por henrique pereira dos santos, em 21.04.24

Há mesmo muitos anos que tento, sem conseguir, criar em Portugal um fundo de conservação da natureza que, anualmente, liberte os seus ganhos para o apoio à conservação da natureza.

A ideia é muito simples de explicar: mobilizar capital, preferencialmente privado, mas sem descurar as oportunidades de os contribuintes lá meterem dinheiro, que é aplicado livremente no mercado financeiro, para obter um rendimento anual que deve ser disponibilizado à sociedade, de forma aberta, para a execução de projectos de conservação da natureza, incluindo a compra de terrenos.

A principal dificuldade da ideia, não tendo eu dinheiro, é que para que o retorno financeiro ter algum significado, com base numa a gestão financeira prudente, teria de se basear num capital muito grande.

O que sempre tentei, para resolver esta dificuldade, foi encontrar um mecanismo para ir amealhando dinheiro sempre, até que um dia o capital amealhado fosse suficiente para gerar rendimentos relevantes, o que, evidentemente, demora muito tempo.

De maneira geral, quem tem recursos para aplicar em filantropia ou é uma pessoa que, naturalmente, prefere definir ela como os aplicar, ou é uma pessoa ou entidade que pretende reconhecimento, o que é incompatível com a alimentação de um fundo, anos a fio, antes que se torne relevante.

A única hipótese, parece-me, é ir juntando pequenas contribuições de muita gente.

Foi com esta ideia que, quando se discutiram na Montis as acções a realizar para comemorar os seus dez anos, eu, que não faço parte da direcção, propuz que se fizesse um crowdfunding que, na minha cabeça, não necessariamente na cabeça de outras pessoas, poderia ser a semente desse tal fundo de conservação da natureza.

Não sei, porque as decisões colectivas envolvem sempre muita gente, se este fundo para aquisição de terrenos que a Montis está agora a procurar lançar virá a ser a semente do que eu defendo, ou se virá a ser um fundo que a Montis usa para aproveitar melhor as oportunidades de compra de terrenos para a conservação, que é o compromiso que está na base da campanha.

O que sei é que, de uma maneira ou de outra, um euro investido neste fundo é um euro cuja utilidade para a conservação da natureza se mantém sempre, independentemente da sua evolução futura, porque é um euro em compra de terrenos, o mecanismo mais sólido que existe para garantir a conservação da natureza no longo prazo num determinado sítio.

Dir-se-á que mesmo que os terrenos que hoje tem a Montis, à volta de 15 hectares, aumentem para 30 hectares, é uma gota no oceano.

É verdade, mas se nos próximos dez anos da Montis se comprasse tanto como nos primeiros dez, chegando a esses 30 hectares, e se continuasse, daqui a cem anos seriam 150 hectares mas, sobretudo, é muito pouco provável que o crescimento do esforço de aquisição fosse linear à medida que crescesse a confiança no trabalho que vai sendo feito, com base na transparência de processos.

Por mim, isso vale bem cinco euritos de apoio à campanha, quanto mais não seja, para alimentar a esperança.

Demagogia à volta de impostos

por henrique pereira dos santos, em 20.04.24

De vez em quando protesto com o facto de Sampaio ter dissolvido um parlamento dizendo que não explicava os fundamentos da decisão porque todos sabiam quais eram.

Sou (e o código do procedimento administrativo também) radicalmente contra a tomada de decisão pública sem fundamento (ou com fundamentação obscura, como diz o código do procedimento administrativo) e a minha irritação contra essa decisão de Sampaio não é com a substância da decisão, que cabe no poder discricionário do Presidente da República (e por ser discricionário, mais relevante é a fundamentação clara da opção), mas sim com a forma, no caso, com a sua falta de fundamentação.

Muitas vezes, quando digo o que escrevi acima, respondem-me que os resultados eleitorais posteriores demonstram que Sampaio tinha razão, o povo queria uma mudança.

Curiosamente, ainda não ouvi este argumento sobre a decisão recente de Marcelo dissolver a Assembleia, o de que, tendo ou não razão à partida, os resultados eleitorais legitimam a sua decisão ao demonstrarem que a maioria absoluta de deputados já não correspondia ao sentimento do eleitorado (pelo contrário, a esquerda mais radical acha que se o sentimento do eleitorado é votar no Chega, devem evitar-se eleições para que o eleitorado não possa votar mal).

Como disse acima, discordo em absoluto deste tipo de argumentação, as regras determinam tempos definidos entre eleições, e só razões fortes devem alterar esses tempos. O juízo sobre se há, ou não, razões fortes é estritamente do Presidente da República, que deve ser explícito nas razões que fundamentam o juízo que faz.

Este tipo de desfasamento entre opiniões sobre umas circunstâncias e outras semelhantes, quando um caso diz respeito aos meus adversários e outro diz respeito aos meus amigos, é normal e faz parte da política (o ditado aplicável é o de que ninguém é bom juiz em causa própria).

O que tem sido notável nos últimos dias é a ideia de que os meus adversários são responsáveis por deixar correr ideias erradas que eu próprio difundi.

Pedi a um dos meus amigos que me mostrasse notícias do tempo da campanha eleitoral sobre "choque fiscal", porque Montenegro diz que a AD nunca falou nisso.

Sem surpresa, tirando uma notícia que referia umas declarações de Hugo Soares que falava num choque fiscal e administrativo e numa baixa progressiva de impostos, todas as outras notícias eram declarações de dirigentes do PS e interpretações jornalísticas baseadas nessas declarações, ou seja, a acusação que, inacreditavelmente, a IL subscreve, de que a ideia de choque fiscal é da responsabilidade da AD porque deixou correr a percepção de uma ideia errada, corresponde a responsabilizar a AD pela campanha do PS.

Porque é que uma patetice destas acaba por se espalhar como fogo na pradaria?

Porque os impostos são uma matéria em que é muito fácil fazer demagogia, a partir do momento em que se atribuem aos impostos poderes mágicos que eles não têm, defendendo-os como instrumentos de políticas públicas para as quais não foram, nem podem ser, desenhados.

Há muito tempo que defendo que os impostos sobre o trabalho e o capital devem ser tendencialmente zero, o Estado não tem que se financiar junto dos factores de produção, devendo os impostos sobre o consumo subir para garantir o financiamento do Estado (de preferência, de forma simples, com uma taxa de IVA igual para todos os produtos).

Defendo-o porque os impostos, para mim, não servem para corrigir injustiças sociais, para orientar consumos, para apoiar a inovação, para garantir políticas culturais ou sociais e o mais o que se queira, para mim os impostos servem para financiar o Estado, e o Estado depois, com os recursos cobrados, que se entretenha a executar políticas sociais, culturais, ambientais, económicas, o que quiser, mas com os recursos que consegue recolher nos impostos, e não intervindo no mercado e na vida das pessoas com impostos.

Uma coisa é eu defender estes exotismos, que é do campo da ideologia, outra coisa é achar que o que eu defendo é exequível, saber o que pode ou não ser feito é do campo da política, a ideologia só serve para determinar a direcção, da mesma maneira que uma bússola não me ajuda a andar, mas ajuda-me a decidir para onde vou andar.

O problema, como se vê por estes dias, é que os impostos são terreno fértil para a demagogia.

A crítica mais séria às recentes medidas do governo em matéria de IRS é feita por Carlos Guimarães Pinto (infelizmente, a IL decidiu usar muito parcimoniosamente o ponto de vista de Carlos Guimarães Pinto, e de forma mais forte argumentos de treta que reforçam o seu posicionamento de partido da oposição ao governo) quando diz que grande parte do desagravamento fiscal não é desagravamento, é simples reposição do ponto de partida através da actualização dos escalões do IRS à taxa de inflação.

A crítica mais estúpida, feita por grande parte do jornalismo e mais alguns, é a de que Montenegro é responsável por deixar sem resposta a percepção, criada pelo PS e pela própria imprensa, de que o programa da AD representava um choque fiscal.

A crítica mais frequente e, talvez, a que mais adesão dos eleitores motiva, é a crítica de que a baixa de impostos beneficia proporcionalmente mais os mais ricos, que é a crítica mais demagógica de todas.

Se quem paga impostos são os mais ricos, ou as empresas mais lucrativas, qualquer baixa de impostos que não se limite aos que não pagam, ou pagam residualmente impostos, ou seja, qualquer baixa de impostos que pretenda ter algum efeito real, beneficiará sempre, sempre, sempre mais os que pagam mais impostos.

A discussão sobre a justiça social da baixa dos impostos faz-me lembrar as propostas sobre gestão do mundo rural a partir de benefícios fiscais: qual é a utilidade de atribuir benefícios fiscais a actividades que não existem porque não geram rendimento?

Vamos lá simplificar a coisa: os impostos servem para financiar o Estado, o que temos discutir é qual é o nível de financiamento mais sensato com circunstâncias económicas e sociais que temos, e depois tomamos decisões sobre impostos para assegurar esse financiamento que, se resultarem em necessidades de aumentar os impostos ou possibilidades de diminuir os impostos, vão sempre, sempre, sempre, afectar mais os mais ricos e os que geram mais lucros (na minha utopia, os que mais consomem, mas isso é na minha utopia fiscal).

Tudo o resto é demagogia que acaba a gerar decisões ineficientes, como ter montes de escalões de IRS, aplicar uma dupla progressividade nos impostos, complicar taxas e taxinhas, mais benefícios e isenções, etc., etc., etc..

Do ponto de vista dos impostos, são sempre os ricos que pagam a crise, mas o essencial é que as crises nem se pagam, nem se resolvem, com impostos, mas na economia, na produção, na eficiência, na justiça social, na responsabilidade ambiental, no orgulho cultural, nunca por nunca com os impostos.

O grande capital

por henrique pereira dos santos, em 19.04.24

"Dizem que o ódio é baboseira
E que a raiva é má conselheira
Mas nós com o grande capital
Damo-nos mesmo muito mal"

Começo com Sérgio Godinho para falar de Helena Pereira, uma editorialista do Público, e de muitos outros, como António Mendonça Mendes, do PS.

Antigamente era a esquerda mais radical que concordava com o Sérgio Godinho de 1974, partindo do princípio de que o lucro era sempre a apropriação indevida da mais valia que pertencia ao trabalhador por direito.

O resto das pessoas, incluindo a esquerda moderada, poderia defender "“Tax the rich” is always the answer. “Why” changes with the seasons", como diz John H. Cochrane neste artigo muito interessante que me mandaram ontem, mas, em teoria, não era contra o grande capital, só pretendia controlá-lo e taxá-lo (e, mesmo assim, na frase que citei, a ideia é taxar os ricos, não é taxar as empresas, grandes ou pequenas).

Helena Pereira escreve, como introdução, "a polémica descida do IRS que era para valer 1500 milhões de euros e que afinal se ficará por 200 milhões", uma mentira evidente da jornalista.

O governo, a AD e Montenegro sempre falaram de uma descida de 1500 milhões face a 2023 e é o que vai acontecer, mas o que verdadeiramente lhe interessa no editorial, até porque a mentira tem perna curta, é dar visibilidade a um argumento que a esquerda, incluindo o PS, tem vindo a usar: a contraposição entre impostos pagos pelas famíias, que é justo baixar, e impostos pagos pelas empresas, uma borla fiscal indecorosa, que rapidamente se afunila nas grandes empresas, vistos serem essas que pagam a larga maioria do IRC.

Comecemos pelo essencial: as empresas não pagam impostos, quem paga impostos são os seus donos, os seus fornecedores, os seus trabalhadores e os seus clientes através da actividade das empresas. Qualquer imposto sobre uma empresa é apenas um custo que se vai reflectir nos preços.

A ideia de que reduzir impostos sobre lucros é aumentar os lucros é uma ideia infantil, porque a maximização do lucro, um dos objectivos da empresa, com certeza, é limitada pela necessidade de produzir ao menor preço possível, se a empresa se quer manter competitiva.

Claro que se o retorno do investimento, se quisermos, claro que se a remuneração do capital não for interessante para o capitalista, ele vai investir esse capital noutra actividade, se se preferir, há um custo de oportunidade associado que se mede pelo lucro conseguido com determinado capital que pode ter diferentes aplicações.

Aumentar ou diminuir o imposto sobre lucros interfere nesse custo de oportunidade que, num mundo globalizado e com liberdade de circulação de capitais, significa analisar investimentos em todo o mundo.

Dito de outra maneira, aumentar os impostos sobre os lucros do Pingo Doce tem como resultado condicionar as opções da Jerónimo Martins sobre o que fazer ao capital disponível para investimento, seja no Pingo Doce (Portugal), Biedronka (Polónia), Ara (Colômbia) ou no outro sítio onde andam a preparar a entrada do grupo, que não me lembro onde é.

Se o retorno do capital investido pela Jerónimo Martins em Portugal, que tem um retorno talvez de 6%, ou coisa do género (sim, os milhões de lucros são muitos, mas os milhões de investimento também, o que interessa não é se o valor global do lucro de uma empresa é alto ou baixo, o que interessa é a taxa a que é remunerado o investimento necessário para criar esse lucro), for muito mais baixo que o retorno na Polónia, na Colômbia ou no tal outro sítio, o mais natural é que as decisões de investimento do grupo reflictam essa diferença e o investimento seja prioritariamente canalizado para onde tem maior retorno.

O que não faltam, em Portugal, são empresas de vão de escada com retorno do investimento muito maiores que os das grandes empresas, ou porque estão em sectores específicos em que o desequilíbrio entre oferta e procura é favorável à oferta, ou porque os donos trabalham horas sem fim sem remuneração adequada desse trabalho, ou porque têm uma vantagem que mais ninguém consegue (jogar melhor futebol, pintar de maneira diferente, etc.), ou porque exploram mais facilmente os seus trabalhadores, ou porque a sua pequena dimensão permite fazer desaparecer os lucros disfarçados de despesas, ou simplesmente porque têm acesso a contratos leoninos porque têm relações privilegiadas com quem decide esses contratos, especialmente se o dinheiro que os paga não é de quem os decide.

Taxar os lucros dessas empresas apenas faz com que os seus donos comprem carros que não são imprescindíveis, como remuneração acessória, para pagar menos impostos, numa aplicação de capital mais ineficiente que a que fariam se os impostos não atingissem um valor que os próprios acham excessivo, quer sobre o trabalho, quer sobre o capital.

Daí que a pergunta do editorial do Público de 17 de Abril "Descida do IRC vale sete vezes a do IRS?", seja uma pergunta sem interesse nenhum, não apenas porque parte de pressupostos errados sobre o valor global das descidas de impostos face a 2023, mas sobretudo porque baixar impostos sobre IRS e IRC vai acabar no mesmo, na diminuição da transferência de dinheiro da economia produtiva para o Estado.

A única discussão que interessa é se aumentar os recursos disponíveis na economia produtiva, por contraponto com a sua diminuição no Estado, é socialmente útil ou não, nas actuais circunstâncias.

A conversa dos lucros milionários, das borlas fiscais e das grandes empresas não passa de conversa de treta: as grandes empresas são as que pagam mais impostos (em valores absolutos, que é uma medida bastante imperfeita, mas enfim), as que têm maiores valores absolutos de lucros (uma medida tonta porque o que interessa é o lucro sobre o capital investido), mas também as que melhor pagam aos trabalhadores, as mais inovadoras, as ambientalmente mais responsáveis, isto é, as que melhor servem a sociedade.

Fazer delas o inimigo é um desporto nacional, dificilmente um partido que defenda que o que precisamos é de melhorar os mecanismos que permitam aumentar o número de grandes empresas, a ter grandes lucros, consegue grandes votações eleitorais, mas isso é só uma das razões pelas quais somos mal pagos.

E o nosso jornalismo é mau, cheio de gente que continua a cantar, convictamente:

"O grande capital
Está vivo em Portugal
E quem não o combate
É que dele faz parte",

mesmo que vivam da caridade de uma família de capitalistas, como os jornalistas do Público.

Lá vamos nós outra vez

por henrique pereira dos santos, em 18.04.24

A CIP dos bombeiros, isto é, a associação dos patrões dos bombeiros, sonsamente chamada Liga dos Bombeiros Portugueses, percebeu rapidamente a fragilidade do novo governo em matéria de pensamento estratégico sobre gestão do fogo (e, em geral, sobre gestão da paisagem) e aproveitou para ver se conseguia fazer o tempo voltar para trás.

Não me interessa muito discutir se a Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF) deve ser extinta ou não, acho uma asneira extinguir, mas não me interessa muito a discussão sobre decisões administrativas.

No entanto, interessa-me bastante discutir algumas das coisas que, segundo a Lusa, o patrão dos patrões dos bombeiros diz aqui.

Em especial, três coisas, uma das quais na verdade não é dita, mas está na base do que é dito.

O primeiro aspecto, o tal que não é dito, mas está na base do que é dito, é o que diz respeito ao papel do combate na gestão do fogo.

O fogo é um processo ecológico fundamental dos nossos ecossistemas e o que podemos fazer, tal como em relação à água ou ao solo, é compreender a sua natureza e características para tirar partido desse processo ecológico, deixando arder, ou promovendo o fogo, quando nos é útil, e limitando o desenvolvimento dos fogos que nos são mais prejudiciais que benéficos.

Dito de outra maneira, o que temos de fazer é escolher quando, como e onde arde, e não pretender suprimir o fogo das nossas paisagens, coisa que para além de impossível, é sobretudo estúpida e contra-producente.

Assim sendo, o combate aos fogos é apenas um dos instrumentos de gestão de que dispomos e, seguramente, não o mais importante e o centro da gestão do fogo.

Esquecendo esta trivialidade, António Nunes diz duas barbaridades que não podem passar sem contestação.

A primeira, diz respeito à auto-suficiência (dir-se-á, com propriedade, que a ignorância é muito atrevida) que considera "esta agência criada pelo anterior Governo socialista após os incêndios de 2017 tem um modelo baseado no combate aos incêndios dos Estados Unidos, Canadá e Chile, que a Liga rejeita".

António Nunes, cujo curriculum no combate aos fogos desconheço, ao contrário do curriculum do presidente da AGIF que só por acaso não morreu num incêndio que matou várias pessoas da brigada em que estava integrado, acha que Portugal não tem nada a aprender sobre gestão de fogos com países como os EUA, o Chile e o Canadá (e poder-se-ia acrescentar todos os outros que têm uma visão contemporânea do fogo, como a Austrália).

E com que base António Nunes, cujo curriculum científico em matéria de gestão de risco desconheço, ao contrário do presidente da AGIF, que tem um doutoramento na matéria, diz que Portugal é tão bom, mas tão bom, na gestão de fogo, que não precisa de estudar o que fazem outros países para lidar com a complexidade do problema?

É a segunda coisa que merece ser lida, porque contado não se acredita: "“Não pode haver bombeiros da floresta e bombeiros do edificado. Portugal não é isso, sabem perfeitamente que 10 minutos, 20 minutos depois de um incêndio florestal, nós temos uma casa, um povoado à frente, portanto, o nosso bombeiro tem que ser um bombeiro completo, como conseguimos desde 1976 para cá. Foi por isso que nessa altura se fez essa aposta”, frisou".

Para quem não esteja familiarizado com a discussão permanente, e braço de ferro que os patrões de bombeiros têm ganho sempre que os grandes incêndios começam a desvanecer-se na memória colectiva (2017 já foi há quase sete anos, o que quer dizer que estamos mesmo a meio do ciclo, entre os grandes fogos de 2017 e os grandes fogos que virão a ocorrer por volta de 2030, mais ano, menos ano), o que está em causa é o modelo que em Portugal, escusamos de olhar para os outros países se isso incomoda António Nunes, é responsável pela incidência de fogo de cerca de um quarto da média nacional, nos povoamentos das celuloses.

Nesse modelo as funções de combate florestal são executadas por bombeiros profissionais treinados em combate ao fogo florestal, com ferramentas com cabo de pau, os pés assentes na terra, conhecimento da situação e uso do fogo de em acções de combate ao fogo florestal, e as funções de protecção do edificado e das populações são executadas por outros corpos de bombeiros, eventualmente com forte presença de bombeiros voluntários, e usando técnicas de combate ao fogo urbano, incluindo uma muito maior presença de água e ausência de gestão de combustíveis.

A discussão sobre o modelo que desde 1976, como diz o patrãos dos patrões dos bombeiros, tem dado os resultados conhecidos, ou a alternativa de separação das funções de combate ao fogo florestal e de protecção civil, não tem nenhuma relação com a necessidade de bombeiros completos, espera-se que todos eles o sejam, mas sim com a especificidade de cada modelo de combate, em função do problema a resolver: gestão do fogo florestal ou protecção civil.

Infelizmente é bem possível que a CIP dos bombeiros consiga os seus objectivos porque, e espero estar redondamente enganado, o novo governo tem mais necessidade de baixar a rejeição eleitoral que de ter pensamento estratégico sobre gestão do fogo.

Afinal ainda faltam uns anos até chegarmos ao pico do risco de grandes fogos e, no curto prazo, é muito mais provável arder o governo que o país.

E pur si muove!

por João Távora, em 17.04.24

Mocidade portuguesa.jpg

Da leitura que faço da história de Portugal na primeira metade do Séc. XX, fico com a ideia clara de que Salazar se limitou a governar ao “centro” que é para onde empurram sempre os ventos da História. Tenho o entendimento de que o chamado “centro” em política é simplesmente o pensamento dominante em determinada época. Ou seja, a luta política pelos seus actores e lideranças sectárias, não é mais do que a promoção de um determinado modelo de ideias no espaço do centro, que é definido pela maioria politica-sociológica em que os regimes se suportam numa determinada época. Quero eu dizer, simplificando muito, que o Estado Novo correspondeu durante mais de duas décadas às expectativas da grande maioria população portuguesa. O Estado Novo não promoveu o catolicismo, limitou-se a surfar a religiosidade da grande maioria dos portugueses, não era mais puritano que a grande maioria desses portugueses. Em grande medida, sem uma repressão exagerada como aconteceu a leste da Europa, o Estado Novo foi simplesmente o espelho das expectativas dos portugueses que, depois dos tempos revolucionários da 1ª República, o acolheram e aclamaram com vista à sua felicidade. Não foi só a prosperidade económica e a esperança numa vida melhor (o ponto de partida era muito baixo) que determinou a aquiescência popular àquele regime autoritário. No fundo, no fundo, Estado Novo foi, ao seu tempo e no seu auge, “politicamente correcto”.

A experiência que a rua me concede coincide com este perfil dos portugueses. A sua grande maioria é muito pouco ideológica e menos ainda sectária. Acredito pouco no sucesso das movimentações partidárias que pretendem mudar à força (ortopedicamente) esse “centro” político dos portugueses. Quero eu dizer que os “Educadores do Povo”, sejam eles partidos políticos, ou a Comunicação Social, têm genericamente pouco sucesso nas suas intenções. Foi isso que intui, por exemplo nos tempos da Covid, e que tentei explicar um dia destes num almoço de amigos “reacionários”, digamos assim, sem sucesso. Vencia naquela mesa a tese de que a epidemia de Covid teria sido uma conspiração dos governos ocidentais para maquiavelicamente subjugar, talvez através de vacinas de cariz duvidoso, o povo ignaro. Talvez motivados pelos interesses obscuros dos grandes laboratórios. Contra isso, argumentava eu que, independentemente da avaliação do verdadeiro grau severidade da crise sanitária, os governos e as medidas por si implementadas se limitaram a corresponder às expectativas das populações dentro dos seus condicionamentos económicos e culturais. Veja-se o que aconteceu a Boris Johnson, cuja displicência inicial e os escândalos finais o liquidaram politicamente. As medidas implementadas pelos governos, mais ou menos repressivas ou persecutórias, liberais ou antiliberais, incluindo as campanhas de vacinação, foram aquelas que foram abraçadas, desejadas e exigidas pelo grande “centrão” político de cada país, sem grande critério científico ou outro. De resto, quanto aos resultados das diferentes estratégias, bem sabemos como as estatísticas bem torturadas, darão aquilo que cada um pretenda.

Serve isto para dizer que acho que não vale a pena batalhar-se pelas ideias que cada um defende, tentar influenciar o centrão politicamente correcto que nos oprime a cada época? Sendo certo que é ingénuo querer-se mudar a direcção do vento com as mãos, a história prova-nos à saciedade que mudam-se os tempos e mudam-se as vontades. Como tento explicar pelo exemplo dado no primeiro parágrafo, os ventos mudam, afrontando a irrelevância da vontade de cada um. Nem sempre para melhor, entenda-se, o “centro” move-se. Desde que pareça moderno a cada geração.

O cancelamento foi cancelado por causa do cancelamento

por José Mendonça da Cruz, em 17.04.24

Ao soar a campainha de alguma dessas agremiações cujos pronunciamentos são ignorados ou rejeitados por 90% dos eleitores portugueses, os jornalistas precipitam-se babados a beber-lhes as palavras. A esquerda radical para eles não existe, só a esquerda gloriosa e compassiva. Mas quando nacionalistas e conservadores se reunem em Bruxelas, numa conferência internacional, a NatCon Conference, os mesmos jornalistas cancelam: é a direita radical, não gostamos, não existe nas nossas activas mentes, cancela-se! 

Mas -- vida azarada -- o presidente da Câmara de Bruxelas, Emir Kir -- que há tempos acolheu com passadeira vermelha uns dignatários da teocracia islâmica -- resolveu cancelar a conferência. Não cancelar pela omissão, mas cancelando-a fisicamente, impedindo que houvesse, impedindo que os oradores reunissem e falassem. Veio então o chefe de Governo belga, Alexander DeCroo, explicar que não podia ser, que o país é livre, que a constituição não permite atentados à liberdade de expressão e reunião. Cancelado o cancelamento, a NatCon Conference continuou.

Cancelado também foi o cancelamento dos jornalistas portugueses, para quem uma reunião com antigos e atuais chefes de Estado e de governo, como Viktor Orban, ministros, comentadores de fama internacional como Douglas Murray, ou políticos destacados, como o governador da Florida, Ron de Santis, é coisa a calar absolutamente. Os jornalistas portugueses não gostam deles, logo não querem que deles se saiba.

Mas -- azares da vida -- dado o escândalo do cancelamento belga, tendo em conta que havia indignação internacional e geral (decerto inexplicável, para eles) lá tiveram que cancelar a omissão e noticiar. A arrastar os pés, evidentemente; com palermices à margem, é claro, como falar do catering, para dizerem que os conferencistas comiam salmão [«Salmão, percebem?» «Um luxo, percebem?» «Fascistas, percebem?» De certeza que vieram em «carros de topo de gama»]. Mas tiveram que noticiar. 

E as intervenções, as ideias, as declarações de antigos e actuais chefes de governo, antigos ministros, políticos no activo, opinion makers? Ah, isso não! Isso seria informação. Não se pode pedir tanto.

 

Pessoas comuns

por henrique pereira dos santos, em 17.04.24

Voltando à Montis, gostaria de fazer um comentário sobre estes gráficos, que estavam na apresentação de balanço dos seus dez anos.

socios.jpg

Um dia destes um amigo meu estranhou eu estar sempre a falar de pessoas comuns, como se quisesse marcar uma diferença moral entre grupos sociais diferentes, mas na realidade é o inverso, eu recuso as designações de activistas, jovens, ambientalistas, etc., porque não quero atribuir categorias morais a pessoas por fazerem isto ou aquilo.

A Montis sempre quis ser, até hoje (amanhã não sabemos, os sócios é que irão determinando o rumo), uma associação de pessoas comuns que se juntam para um objectivo específico: ter o controlo de propriedades que sejam geridas com o objectivo principal de produzir biodiversidade.

Não há nenhuma oposição à posição mais tradicional de procurar ter o controlo sobre a gestão de áreas de valor natural elevado, para evitar a sua degradação, mas havendo tanta gente e tanta organização empenhada nisso, pareceu-nos mais útil pegar em terrenos que não valem nada, mesmo do ponto de vista de conservação, e criar valor de biodiversidade a partir da gestão sensata dos processos naturais.

Esta gestão custa dinheiro e, mesmo inscrevendo a Montis nos seus objectivos aumentar o valor da biodiversidade e procurando rentabilizar o que for possível sem afectar o objectivo principal de produzir biodiversidade, isto quer dizer que não é possível sem recursos externos.

Os que os gráficos mostram é a evolução nos primeiros (e últimos) dez anos da Montis, mostrando à esquerda como tem evoluído o número de sócios e à direita como têm evoluído das receitas e despesas.

Há duas conclusões que me parecem relevantes.

Uma é a de que o crescimento dos sócios tem sido mais difícil do que se pensou e há menos capacidade de ter pessoas a pagar 25 euros por ano como contribuição para ter propriedades que não valem nada a ser transformadas em coisas úteis para todos, através do aumento do seu valor natural.

A segunda é a de que até é fácil aumentar rapidamente os recursos disponíveis com base em projectos, mas isso tem dois problemas: a) o desfasamento entre o momento em que as receitas sobem e o momento em que sobem as despesas inerentes à execução dos projectos; b) os parcos recursos da associação concentram-se na execução dos projectos, que respondem a objectivos dos financiadores, em vez de estarem concretados no que se pretende, isto é, na gestão de terra e no crescimento de sócios.

Felizmente depois de um valor artificialmente alto de receitas e despesas, resultante da aprovação de um grande projecto, a Montis conseguiu fazer uma aterragem suave para níveis de receita e despesa compatíveis com a natural evolução da associação.

E, tendo-o feito, parece muito sensata a opção de lançar agora, através de uma campanha de crowdfunding que pode ser visitada aqui, um fundo de aquisição de propriedades que recentre os próximos dez anos no essencial, o reforço de uma associação de pessoas comuns que se juntam para gerir propriedades com objectivos de conservação da natureza.

Se gostarem da ideia, é boa altura para uma contribuição na dita campanha de crowdfunding.

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