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A extrema direita democrática

por henrique pereira dos santos, em 31.03.24

Este post começou a germinar a partir de uma peça sobre Georgia Meloni, no Observador (conheço mal o que se passa em Itália, apesar das minhas ligações familiares italianas, e tinha interesse em ter mais informação).

A tese da jornalista é a de que Meloni afinal não é tão extremista como diziam, sobretudo na política externa, mas continua a ter um discurso interno de extrema direita.

O que me chamou a atenção foram os exemplos dados para ilustrar a tese, de que escolhi um.

"Nada disto significa que Meloni tenha abandonado todas as suas bandeiras mais radicais. ... O discurso a favor da “família tradicional” é outro dos pontos que Meloni não larga e uma das áreas onde tem apresentado medidas é na limitação de direitos da comunidade LGBT: o seu governo, por exemplo, passou a proibir que casais gay possam ambos registar-se oficialmente como pais de uma criança (algo até aqui permitido) e está a criminalizar o recurso a barrigas de aluguer no estrangeiro — até aqui, apenas era crime se o processo tivesse lugar em Itália, razão pela qual muitos casais do mesmo sexo recorriam a agências estrangeiras de barrigas de aluguer".

A jornalista (Cátia Bruno) passa como cão por vinha vindimada sobre as complicações éticas associadas às barrigas de aluguer (que não são matéria de políticas LGBT, mas esqueçamos isso agora), fala de uma alteração administrativa como se fosse uma questão de vida ou de morte mas, e foi aí que começaram a piscar luzes encarnadas no meu cérebro, identifica a defesa da família tradicional como uma das bandeiras mais radicais de Meloni.

Saltemos também por cima do facto de, implicitamente, se estar a dizer que é preciso destruir a família tradicional para defender os direitos LGBT (acho que a jornalista nem se apercebeu que é isto que diz o que escreve), um disparate, para realçar esta afirmação extraordinária: a defesa da família tradicional é uma bandeira radical da extrema direita.

Quando este absurdo já me tinha feito decidir escrever um post, houve duas coincidências que me ajudaram a pensar no que escrever sobre isto.

Primeiro foi um lamento de Pedro Santa Clara sobre a forma como uma jornalista (Margarida Davim) tinha noticiado a retirada de uma proposta de Carlos Moedas para trazer o projecto TUMO para Lisboa, em termos inqualificáveis, em que a jornalista faz questão de caracterizar Pedro Santa Clara como um perigoso liberal "Parte das dúvidas tinha que ver com a forma como o projeto TUMO chegou a Lisboa e foi parar às mãos de Pedro Santa Clara, professor de Economia da Nova SBE, mandatário da IL nas últimas eleições e membro do Instituto +Liberdade".

O mais extraordinário desta história, e da forma como a jornalista a vê, é alguém achar que pegar num projecto estruturado, com provas dadas, com resultados verificáveis, em execução noutras partes do mundo, deve ser posto no mesmo pé que um concurso de ideias para ver se há propostas na área da educação digital.

Como é evidente, pode estar-se ou não de acordo com o apoio da Câmara ao TUMO (eu não estou), pode discutir-se se esse apoio é excessivo mas, manifestamente, o que não faz sentido é ir buscar argumentos de treta, sinalizadores de virtude, sobre uma suposta falta de transparência, apresentando uma proposta alternativa, sem qualquer base sólida, cujo único objectivo é sabotar a política de Carlos Moedas e noticiar isso chamando a atenção para o facto do promotor ser um perigoso liberal e amigo de Carlos Moedas.

A segunda coincidência foi eu ter tido acesso a uma intervenção pública de Vítor Bento, em Abril de 2023, no Grémio Literário, na apresentação de um livro de Miranda Sarmento, em que Vítor Bento defende que muito mais que contestar políticas que se consideram erradas, o mais importante é mesmo combater ideias erradas que acabam a influenciar as políticas públicas (por exemplo, o ataque constante ao lucro das empresas, ou a ideia parva com que comecei, a de que defesa da família tradicional é uma bandeira radical da extrema direita).

Como vai longo o post, acabo a explicar o seu título, porque me parece um exemplo evidente de como a esquerda tem condicionado o debate na sociedade, de tal forma que me parece que a quase toda a gente acaba por parecer estranho falar-se em extrema direita democrática.

Se há alguma coisa que me parece útil no que o Chega faz, é exactamente o facto de, tal como fez Cavaco Silva na sua altura de governante (como presidente não é bem assim), se recusar terminantemente a submeter-se aos limites da ditadura das ideias que podem ser defendidas, discutindo nos seus termos, e não nos termos que os seus adversários acham aceitáveis.

O facto é que a extrema esquerda, que foi toda ela defensora da ditadura do proletariado e outras ditaduras subsequentes (mesmo quando não eram do proletariado), evoluiu e é hoje considerada democrática - e bem, se o PC ganhar amanhã as eleições, não se acaba a democracia em Portugal, seguramente - mas se considera que a extrema direita congelou em 1930, sendo inevitavelmente anti-democrática, apesar das evidências em contrário (de que é exemplo o Chega, se ganhar as eleições, não se passa nada, governa e quando perder as eleições, sai, ao contrário do que fez a esquerda na Venezuela).

Já é tempo de deixarmos de aceitar os limites da discussão de ideias que a esquerda tem imposto e passar a discutir nos termos que nós próprios definirmos.

Páscoa em tempos de cólera

por João Távora, em 31.03.24

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Nunca como nestes últimos dias da Semana Santa, que favorecem o recolhimento em memória da paixão, morte e ressurreição de Jesus, tinha intuído tão clara e profundamente a oposição entre "Realismo" e "Subjectivismo".

Este último conceito refere-se à percepção do sujeito no confronto com os factos que testemunha, uma visão precária e condicionada à sua psicologia, à sua sensibilidade no momento, e inteligência. Já o conceito de "realidade" tem a ver com outra perspectiva, aquela que reflecte o Real, apenas acessível a Deus, que a todos nos interpela e perscruta.

É importante perceber isso, nestes dias em que se celebra a vitória da Vida sobre a morte, em que os cristãos são convidados a perceber o Mundo, a realidade, de forma vanguardista: de que esta apenas mudará, mesmo que ligeiramente, através da mudança interior de cada um, nesse local a que os antigos chamavam “coração”, onde as emoções se reflectem e se fazem sentir no seu digladiar. Parece-me importante meditarmos nisto nestes dias tumultuosos, em que a conflitualidade e a ruptura são acenadas como virtudes em detrimento dos consensos, na aceitação de que a mudança na realidade só se opera pelo empenho de cada um na sua vida, no seu meio. A insatisfação e o inconformismo, deveriam ser motores de empreendedorismo, doação e criatividade, e não de contendas, ódios e intrigas insanáveis, onde o feio prevalece sobre o belo, e o mal se confunde com o bem.

Não é só a mundanidade e o consumismo da grande cidade inquieta e materialista que reduz os cristãos nos dias de hoje à quase irrelevância. Como é que nos distinguimos na sociedade, no trabalho, na política, na família, e até na Igreja, submergidos numa berraria inestética, a dividir, a fracturar de faca nos dentes, dispostos a mudar um mundo teimosamente inamovível na sua corrupção e precaridade – feito de pessoas?  

Realidade, Real, Realismo, Realeza… Voltando ao início, a “realidade”, tida como tudo o que existe, apenas acessível a Deus, é um conceito que em termos terrenos somente uma instituição política pretende interpretar: o Rei. É também por esta ordem de razões que sou monárquico. Somente do Rei se espera a autoridade (no seu duplo sentido de autor e de encarnação do poder legítimo), a exemplaridade e a representação colectiva assente na dignidade e no cumprimento do dever. É o Rei que, ainda nos nossos dias, encabeça com sucesso o mais aprimorado sistema político, democrático e conflitual, que ambiciona a interpretação da soma dos múltiplos desejos das pessoas. Rei na medida em que for o primeiro servidor dos seus súbditos, o garante das suas antigas liberdades e a pré-condição de continuidade que não inibe a mudança, mas a enquadra no contexto longo da história partilhada.

Mas esse regime só é possível numa sociedade estável, com mínimos de urbanidade, estabilidade e consensos. Avessa a rupturas e revoluções.  

Publicado originalmente no Observador

Imagem: Negação de Pedro de Carl Heinrich Bloch

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Porque os Europeus são tão superiores aos Americanos?

por Jose Miguel Roque Martins, em 30.03.24

Quando observamos longas series económicas entre os Estados Unidos e a União Europeia, desde há algumas décadas, há uma quase constância de 30% entre o indicador mais robusto para comparar rendimentos de diferentes espaços económicos: o produto per capita medido em paridades de poder de compra. Mudam-se os tempos, mas não se muda a riqueza relativa: os Europeus têm um rendimento 30% inferior aos dos Estados Unidos.

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É também interessante a convicção generalizada dos Europeus da superioridade do seu modelo económico e social. Poucas pessoas encontro que, tal como eu, apreciem o desempenho e a liberdade do povo Americano, mesmo sabendo que uma percentagem não desprezível, mas não grande, vive na sua margem.

Raramente encontro pessoas que saibam que nos EUA, mesmo que de formas mais incipientes do que na Europa, existe subsídio de desemprego, pensões de reforma e, desde o Obamacare, um esqueleto de um serviço Universal de saúde. Uma parte de mim deseja mais Social, outra receia, com argumentos, que estes movimentos sejam, entre outros, os factores que desencadeiem um empobrecimento geral, um custo de 30% da riqueza criada e uma vida tolhida por regras.  Gostava de saber até onde se deve ir.

Poucos são os que, do alto da sua superioridade, reclamando uma absoluta primazia cultural dos Europeus, não ignoram a excelência das suas universidades privadas, dos hipermercados de livros, dos fantásticos museus, do espaço da música erudita, da arte em geral. Mais frequentemente comparam os ignorantes ou pouco cultos, que aparecem em filmes e series, com representantes de excelência da academia Europeia. Esquecendo que a inteligência e provavelmente a cultura, cá e lá, se distribuem da mesma forma estatística.

É evidente que nem tudo é melhor nos Estados Unidos do que na Europa, já para não falar de períodos menos deslumbrantes de um lado e doutro.

Tudo somado, parece-me de uma intolerância preconceituosa absurda e criminosa não haver interesse popular em investigar porque tantas coisas são melhores na América do que na Europa.

Uma Santa Pascoa para todos, são os desejos de um agnóstico.

… e pergunta a maioria absoluta: «Foi para isto?!»

por José Mendonça da Cruz, em 30.03.24

Luís Montenegro recebeu dos portugueses um bom capital: uma vitória por escassa margem, e a ordem para negociar e mudar. Negociar para mudar, não, obviamente, com quem a maioria absoluta dos portugueses quis rejeitar, o Partido Socialista. Negociar para a mudança.

Luís Montenegro e a AD poderiam ter aprendido alguma coisa com António Costa, que em estritas questões de sobrevivência é genuinamente hábil. Costa não hesitou em aliar-se com partidos esses sim antidemocráticos, para governar e, de passagem, engolir os aliados.

Mas não aprenderam nada. E, hoje, Luís Montenegro e a AD decidiram negociar com o PS, e deitar o capital todo pela janela, para não mais o recuperar.

Fio-me muito em certas imagens, e o rosto acinzentado, luzidio, a atitude corporal nervosa de André Ventura ao saber da partição da presidência da Assembleia da República, dizem-me que não esperava aquilo. Esperava negociar e obter alguma coisa que pudesse empunhar. Negociar in extremis, é claro; negociar a falar grosso, é claro; negociar ao fim de umas quantas contradições, é claro; e, depois, ceder. No fim, relevaria até os disparates extemporâneos com que Melo e Rangel se entretiveram a cavar fossos em bicos dos pés. [Quem creia que Ventura estava irredutível, terá que pensar que sacrificou intencionalmente a vice-presidência da AR, um completo absurdo].

Mas a AD preferiu negociar com o PS. E, assim, numa demonstração de embaraço verdadeiramente lamentável, assim e de uma penada só atirou a fiabilidade pela janela fora. E, com este gesto canhestro, a AD cometeu várias coisas, todas elas lamentáveis.

A primeira coisa que cometeu foi subscrever a ideia antidemocrática do Livre e do Bloco de que as novas bancadas da Assembleia são compostas de uma maioria de esquerda e uma minoria de direita constituída pela AD. Há depois, segundo esta tese, uma inexistência, um fumo, um vazio: 50 deploráveis eleitos por mais de um milhão deles. Perante a opção de Montenegro e da AD a extrema-esquerda sorri e esfrega as mãos.

A segunda coisa que a AD cometeu foi hipotecar de vez toda a capacidade de governar. Desde hoje, a AD só poderá tomar as medidas que o PS a deixar tomar. O PS sorri e esfrega as mãos.

Segue-se, portanto, que a AD cometeu uma terceira coisa, um outro erro: o de condenar-se a eleições antecipadas.

A AD cometeu, por fim, a quarta e mais grave de todas as coisas: no momento em que deitava fora o capital que lhe fora confiado, riu-se de quem lho confiou. O que a faz correr o risco de, nas eleições antecipadas a que se condenou, devolver o centro ao PS, a maioria à esquerda toda, e o primeiro lugar da oposição ao Chega (quanto ao CDS, lá terá provavelmente que desatarraxar a placa outra vez). E o PS ri a bom rir, e esfrega as mãos.

E o eleitorado, que pensa? Não faço ideia, mas imagino. Imagino a esquerda a dizer: «São burros, nunca se entendem, estão de saída não tarda». Imagino a maioria absoluta do eleitorado a dizer: «Foi para isto?!»

Publicado no Observador

E quanto ao PS?

por henrique pereira dos santos, em 30.03.24

A minha interpretação da posição da AD e do Chega no arranque dos trabalhos parlamentares já terá ficado clara, sobretudo somando o artigo de hoje no Observador.

A tese central é a de que o inimigo principal do Chega é o PSD e "a ideia de que o debate no parlamento português já não é tanto um debate entre adversários políticos que têm ideias diferentes sobre as políticas a seguir, mas um debate sobre grupos sociais que temem pela sua sobrevivência: uns porque temem perder o que sempre foram, outro porque quer garantir que chega onde os outros chegaram", tendo o Chega uma "necessidade de caos" para atingir os seus objectivos.

Hoje interessa-me responder à perplexidade da esquerda da esquerda que, com razão, fez notar que o acordo do PS com a AD para desbloquear o impasse institucional era um acordo muito desequilibrado para o lado da AD, visto que a AD obteve tudo o que queria - garantir a eleição da mesa que repunha a prática institucional que António Costa tinha destruído, com a indicação dos nomes que a AD pretendia no que lhe dizia respeito - sem que o PS realmente tivesse tido algum ganho real.

Ninguém acredita que o parlamento não seja dissolvido antes de se chegar ao momento em que o PS indica o presidente da AR mas se, por milagre, o parlamento ainda estiver em funções nessa altura, é uma vitória tão grande da AD, que até lhe fica bem a magnanimidade de entregar a presidência da AR ao PS.

Por que razão o PS aceitou um acordo que lhe é tão desfavorável (independentemente de imediatamente ter posto a correr a ideia de que tinha sido o PS o verdadeiro condutor de todo o processo)?

Aparentemente, o PS ficou tão surpreendido como a AD com "Korbut flip" do Chega.

Até ao momento em que se contaram os votos da primeira eleição, o Chega alimentou a ideia de que iria votar favoravelmente Aguiar Branco (aparentemente para ampliar a dimensão do gesto de vassalagem que esperava que a AD viesse a fazer depois) e a esquerda passou a manhã toda a dizer que afinal a AD, na primeira necessidade, tinha ido a correr para os braços do Chega.

Esta é uma ideia base do PS: radicalizar a sua posição para obrigar a AD a aparecer de braço dado com o Chega, uma ideia exactamente simétrica, e complementar, da do Chega que consiste exactamente em radicalizar a sua posição para a AD aparecer de braço dado com o PS.

Acontece que para o PS esta ideia é meramente tática, visando ter ganhos de comunicação, sendo estratégica para o Chega, que pretende cavalgar a ideia de que o PS e o PSDois são a mesma coisa, portanto quem quer uma vida diferente, tem de votar no Chega.

Para surpresa do PS (do Chega, da comunicação social e minha) a AD, em vez de entrar em parafuso e ir a correr fazer todas as cedências necessárias para não passar pela humilhação de não conseguir eleger um presidente da AR, encolheu os ombros e disse que havendo uma coligação negativa entre PS e Chega, que se chegassem à frente e elegessem quem quisessem, a AD iria manter a sua posição inicial.

E deixou o assunto correr, apesar do coro da comunicação social a assinalar a incapacidade da AD resolver o assunto, o barulho do Chega a pôr-se em bicos de pés e dos zig-zagues do PS para evitar deixar sedimentar a ideia de que fazia parte de uma coligação negativa com o Chega e de que era um partido irresponsável, mesmo em questões meramente institucionais.

Quando Montenegro foi ter com Pedro Nuno Santos, evitando a cedência à chantagem do Chega, manteve-se na mesma: recusava deixar de votar nos nomes indicados pelo Chega, que era a sua obrigação constitucional, e mantinha a candidatura de Aguiar Branco o tempo que fosse necessário até o parlamento encontrar uma solução.

Ou o PS cedia, mesmo encontrando uma maneira de salvar a face, ou ficava associado ao bloqueio institucional criado pelo Chega, o que podia ter custos eleitorais relevantes no futuro.

Com a impossibilidade de dissolver o parlamento nos próximos seis meses, com duas eleições nos próximos meses em que o PS não quer aparecer coligado com o Chega no bloqueio das instituições, o PS cedeu e propôs uma solução que, no essencial, é uma derrota em toda a linha, como muito bem assinalou a esquerda da esquerda (o PS não tem nada a temer desse lado, é só pôr Fabian Figueiredo falar o mais possível, que a questão da fuga de votos do PS para o BE fica resolvida definitivamente).

O resultado final é Aguiar Branco a propor uma revisão do regimento da Assembleia e um aviso sério da AD ao PS: tenham lá cuidado com o que fazem porque não temos problema nenhum em pôr nas mãos da coligação PS/ Chega a resolução dos problemas que quiserem criar, escusam de agitar o fantasma das alianças da AD com o Chega, porque existem tanto quanto as alianças com o PS.

A vida está difícil para a AD, mas não está mais fácil para o PS, o Chega, os pequenos partidos e nós.

Flor de estufa

por henrique pereira dos santos, em 29.03.24

A AD informa todos os grupos parlamentares que tenciona seguir as práticas institucionais anteriores ao seu abandono por António Costa, isto é, interpretar a constituição de maneira racional: os lugares da Mesa da Assembleia da República seriam distribuídos de acordo com a representação de cada grupo parlamentar, que indicariam os nomes para os ocupar.

Note-se que as regras do regimento da Assembleia da República para materializar o que é a letra da constituição - "Eleger por maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções o seu Presidente e os demais membros da Mesa, sendo os quatro Vice-Presidentes eleitos sob proposta dos quatro maiores grupos parlamentares" - são más, ao introduzirem um mecanismo que permite que as maiorias conjunturais boicotem, ad aeternum, a indicação dos partidos que a constituição manda respeitar ("4 - É eleito Presidente da Assembleia da República o candidato que obtiver a maioria absoluta dos votos dos Deputados em efetividade de funções. 5 - Se nenhum dos candidatos obtiver esse número de votos, procede-se imediatamente a segundo sufrágio, ao qual concorrem apenas os dois candidatos mais votados que não tenham retirado a candidatura. 6 - Se nenhum candidato for eleito, é reaberto o processo.").

Como as regras para a eleição da mesa são semelhantes - "1 - Os Vice-Presidentes, Secretários e Vice-Secretários da Assembleia da República são eleitos por sufrágio de lista completa e nominativa. 2 - Cada um dos quatro maiores grupos parlamentares propõe um Vice-Presidente e, tendo um décimo ou mais do número de Deputados, pelo menos um Secretário e um Vice-Secretário. 3 - Consideram-se eleitos os candidatos que obtiverem a maioria absoluta dos votos dos Deputados em efetividade de funções. 4 - Se algum dos candidatos não tiver sido eleito, procede-se de imediato, na mesma reunião, a novo sufrágio para o lugar por ele ocupado na lista, até se verificar o disposto no número seguinte. 5 - Eleitos o Presidente e metade dos restantes membros da Mesa, considera-se atingido o quórum necessário ao seu funcionamento." - na prática, onde a Constituição pretendia garantir a pluralidade e representatividade, as regras de materialização permitem que maiorias conjunturais impeçam essa pluralidade e representatividade, dando origem a situações como as da legislatura anterior, em que vários lugares ficaram vagos por imposição da maioria de esquerda, ou a situação actual em que há um acordo de rotatividade que o regulamento não prevê (o Presidente da Mesa é eleito para a legislatura, só com a sua renúncia é que pode haver substituição, um típico esquema manhoso em que PS não só se especializou, mas em que tem orgulho).

Retomando o fio à meada, a AD decidiu repor a normalidade institucional que António Costa, por pura conveniência política conjuntural, tinha mandado às malvas.

O Chega resolveu fazer uma performance, anunciou que tinha um acordo com a AD (como vimos, tinha o Chega e tinha toda a gente, a AD ia repor a normalidade que o Chega tinha passado a legislatura toda a exigir em vão, nada mais que isso) e depois manda às malvas a normalidade institucional, juntando-se ao PS no seu desprezo pelas regras e instituições (e à esquerda em geral, mas os partidos anti-institucionalistas da esquerda da esquerda sempre foram contra a democracia burguesa e sempre se comportaram em conformidade), do que resulta um bloqueio que visava uma de duas coisas: 1) garantir o beija-mão de Montenegro a Ventura; 2) em alternativa, obrigar os partidos mais responsáveis a encontrar uma saída institucional, permitindo ao Chega apresentar-se como o partido que se mantém fora do sistema.

Se dúvidas houvesse, basta ouvir os vários dirigentes do Chega a dizer que teria bastado um telefonema para Ventura (Montenegro deveria ter dito "peço desculpa, houve um desentendimento, nem sempre consigo manter uma linha condutora, um fio condutor na Aliança Democrática, tenho vozes que não consigo controlar e Paulo Rangel teve uma declaração que não corresponde à linha orientadora do PSD ou Nuno Melo também teve um momento de deriva apenas e só do CDS e estava a situação esclarecida", explicou candidamente Rita Matias), absolutamente transparentes na identificação do problema: Montenegro teria de ir ao beija-mão de André Ventura, independentemente de esse beija-mão não ter qualquer utilidade prática para o que estava em causa - eleger a Mesa da Assembleia - como se demonstra pelo facto de tudo ter acabado exactamente como estava previsto.

Ou melhor, quase tudo, porque como Montenegro se recusou a ir ao beija-mão, teve de ir resolver o assunto de outra maneira, o que obrigou a uma concessão irrelevante para o PS não perder a face e o assunto poder ser desbloqueado, antes que o PS começasse a sentir os efeitos eleitorais do bloqueio institucional que não estava nos seus planos.

A questão de fundo parece-me muito simples, e pode-se ilustrar com uma hipótese absurda, mas que ajuda a tornar mais claro o que está em causa.

Imaginemos que a AD fazia então um acordo a sério com o Chega, entregando a Presidência da Assembleia durante dois anos ao Chega, com o compromisso de que daqui a dois anos a pessoa indicada pelo Chega renunciava ao mandato para permitir uma nova eleição, desta vez da AD (é esse o acordo com o PS, com a ordem dos partidos trocada).

Alguém no seu perfeito juízo pode garantir que o Chega cumpria o acordo e, depois de dois anos, não inventava uma desculpa qualquer para dizer que as regras não obrigam ninguém a renunciar ao cargo?

Este é o problema prático com o Chega e a flor de estufa que o lidera: um adulto que amua por falta da atenção a que se julga com direito não dá confiança a ninguém, impedindo acordos sérios seja de que tipo for.

A confiança é a base do capitalismo

por henrique pereira dos santos, em 27.03.24

O capitalismo funciona na base da confiança entre as pessoas.

Claro que o sistema repressivo do Estado reforça essa confiança quando penaliza as quebras contratuais, mas na base está mesmo a confiança entre as pessoas que permite aliviar os sistemas de controlo e tornar tudo mais eficiente.

Durante algum tempo é possível usar essa característica para subir rapidamente, enganando os outros, mas se é sempre possível enganar alguém durante muito tempo, não é possível enganar toda a gente durante todo o tempo.

O problema da relação entre a AD e o Chega está num desencontro que não se poderia resolver sem confiança, e Montenegro não tem confiança em Ventura (eu também não).

Dizer-se que era possível ter um governo estável com um acordo entre a AD e o Chega porque matematicamente desse acordo resulta uma maioria de deputados, pressupõe a convicção de que André Ventura cumprirá adequamente os compromissos que assumir, convicção que, a não existir (e como eu compreendo que não exista), torna a vantagem matemática numa inutilidade política.

Aparentemente há um braço de ferro pelo primeiro lugar à direita, de que resulta a falta de confiança de Montenegro em Ventura, suspeitando que toda a sua acção política tem como objectivo levar o Chega a substituir o PSD no regime, e a falta de interesse em Ventura se associar, de forma tranquila, ao seu principal inimigo, intuindo que o crescimento que a aliança objectiva que estabeleceu com o PS lhe permitiu, possa ser limitado numa conjuntura menos favorável.

Ventura e António Costa são muito iguais, aos dois a governação não interessa muito, o que lhes interessa é o exercício do poder, e isso permite-lhes em cada momento defender qualquer política que lhes garanta poder, tornando-os adversários temiveis.

Os tempos mais próximos não parecem estar de feição para institucionalistas como eu, que gostam de governos e políticos cinzentos, que executem políticas públicas minimalistas, deixando às pessoas, tanto quanto possível, as decisões que entenderem tomar, livremente, respeitando o carácter sagrado do direito à asneira.

A direita que dá razão a Rui Tavares e Mariana Mortágua

por José Mendonça da Cruz, em 27.03.24

Fio-me muito em certas imagens. Pareceu-me extremamente reveladora a cara e o nervosismo de André Ventura ao saber da partição da  presidência da Assembleia da República entre AD e PS. Pareceu-me reveladora de que não esperava aquilo. Pareceu-me reveladora de que estava disposto a negociar -- in extremis, claro; a falar grosso, é claro -- , mas a acabar por fechar com a AD algum acordo com que pudesse acenar. Mas a AD preferiu ir negociar com o PS.

A AD foi estúpida e incapaz. Peço desculpa, mas tenho que repetir: a AD foi estúpida e incapaz. Foi estúpida como Nuno Melo e Paulo Rangel foram estúpidos ao dizerem disparates desalinhados a meio de uma negociação. A AD foi estúpida e incapaz na cegueira persistente perante 50 deputados e um milhão de voto.

Por ser frouxa, e cega, e estúpida e incapaz, a AD conseguiu hoje, de uma penada:

1. Subscrever a sugestão antidemocrática de Rui Tavares e Mariana Mortágua, de que nesta nova AR existe uma maioria de esquerda, uma minoria de direita, e uma inexistência formada por 50 deputados eleitos por mais de um milhão de portugueses.

2. Irritar todo o eleitorado.

2. Pôr o PS e toda a esquerda a rir e a esfregar as mãos.

3. Condenar definitivamente o seu governo. A partir de agora, AD só poderá tomar as medidas que o PS a deixar tomar.

4. Promover o partido Chega a primeiro partido da direita, o PSD ao declínio, e o CDS a desaparafusar novamente a placa que acaba de afixar numa parede de São Bento, depois das eleições antecipadas, agora inevitáveis.

5. Devolver a maioria parlamentar à esquerda.

Votei AD, e arrependo-me (suspeito que com muitas centenas de milhar). Não se imagina pior.

 

Travar o projecto da direita

por henrique pereira dos santos, em 27.03.24

Ontem, por acaso, ouvi umas partes da rábula da eleição do Presidente da Assembleia da República, ainda antes de se saber do "Korbut flip" do Chega.

Uma das coisas interessantes que ouvi foram as variações dos partidos anti-democráticos (PC, BE e PAN) sobre a necessidade de travar o projecto da direita.

Que estes partidos anti-democráticos achem que o voto dos eleitores é irrelevante para a definição do rumo da governação, parece-me trivial.

Que o PS alinhe nesta ideia, já me parece apenas uma consequência do famoso "legado" de António Costa: a chuva dissolvente sobre as instituições que andou a promover (já agora, acho que nunca conseguirei compreender os liberais que optaram por se aproximar do Chega, preferindo soluções cesaristas ao reforço das instituições).

Actualmente o projecto da esquerda limita-se a ser "travar o projecto da direita", sendo muito curioso porque ninguém sabe em que consiste esse famoso projecto da direita (eles próprios dizem que é uma barafunda, ao mesmo tempo que o acham tão perigoso que travá-lo é o seu único objectivo político).

Por exemplo, já para não falar do BE e do PAN, cuja consistência ideológica sempre esteve mais próxima da gelatina que do granito, o PC é hoje um partido que ninguém sabe o que defende para o país.

Eu sei, defende trabalho com direitos, subida dos salários e pensões e outras coisas que qualquer pessoa decente defende, mas quanto aos meios para lá chegar (essa é a essência da política), fica-se por estar sempre, sempre ao lado dos trabalhadores e pensionistas, suponho eu que mesmo quando os trabalhores e pensionistas votam esmagadoramente na AD e no Chega e, apenas residualmente, no PC.

Resumindo, a generalidade dos representantes dos eleitores acham normal não os representar, perdendo-se em coisas extraordinárias como atender ou não um telefonema, dependendo do interlocutor estar ou não à altura do destinatário do telefonema.

Ouvi que a Assembleia da República estava refém de um menino mimado, mas não me parece rigoroso dizer isto, está refém de meninos mimados sim, não de um, mas de dois, Ventura e Pedro Nuno Santos que, aliás, não acharam nada melhor que inaugurar a representação dos seus eleitores coligando-se entre si, coisa que parece evidente que é o que pretendiam os eleitores de um e de outro.

Brincai, brincai com a legitimidade da representação e, a prazo, veremos se os resultados justificam as figuras ridículas que andais a fazer.

Para já parece estar a ser muito divertido.

Empresas e bem colectivo

por henrique pereira dos santos, em 26.03.24

"É bom para as empresas, mas um prejuízo público", escrevia um amigo meu a propósito de plantações florestais (como é normal, a questão são os eucalitpos, sobre a plantação dos quais este meu amigo até tem uma posição moderadíssima, quando comparada com o mainstream ambiental).

De resto, ainda na semana passada ouvi um investigador, um bom investigador que conheço, de quem gosto e que tem trabalho muito válido em questões ambientais, fazer uma diatribe contestanto o trabalho dos seus colegas que investigam especificamente os impactos da plantação de eucaliptos.

Depois da minha entrada habitual nestas circunstâncias ("manda-me os links dos teus artigos que reflectem a tua investigação científica sobre eucaliptos"), estivemos um bom bocado a discutir, de forma cordial, civilizada e racional, as razões de cada um para termos as divergências que temos da avaliação do que se sabe sobre o impacto da plantação de eucaliptos (ele, na posição clássica do ambientalismo "a espécie interessa", eu, na posição minoritária entre os que não estudam o assunto, mas maioritária entre os que estudam o assunto "a espécie até pode interessar marginalmente, mas deixa de ter relevância quando se avalia o peso da espécie, face ao peso do modelo de gestão, nos impactes gerados").

Dificilmente algum de nós muda de posição sobre o que pensa da plantação de eucaliptos e a raiz disso está na frase que citei primeiro, que é de um terceiro (também investigador), que corresponde a uma ideia muito enraizada na sociedade, mas que me parece bastante frágil, a ideia de que as empresas são entidades reais autónomas, e não meras organizações de pessoas, como as igrejas, as associações, os grupos almoçaristas, as comissões fabriqueiras, as famílias, as tribos, os grupos musicais ou quaisquer outras designações que damos a agrupamentos de pessoas.

É dessa ideia que nasce outra ideia muito mais prejudicial, a ideia de que as empresas têm interesses.

A verdade é que as empresas são pessoas ou, se quisermos, uma forma específica de organizar pessoas e grupos de pessoas, accionistas, consumidores, trabalhadores, fornecedores, receptores de impostos, reguladores, tribunais, fiscalizadores, enfim, grupos diferentes de pessoas, mas sempre pessoas concretas.

Como em todos os grupos há diferenças, quer entre pessoas separadamente, quer nos grupos em que se organizam, mas no fim de tudo estão sempre pessoas.

As plantações florestais (de eucaliptos, mas de outra coisa qualquer, a que se podem juntar os usos agrícolas, e coisas funcionalmente semelhantes a plantações florestais) se são benéficas para as empresas que as promovem, é porque as empresas que as promovem (os accionistas que nela investem, os gestores que dela retiram os seus ganhos, os trabalhadores que dela retiram o pagamento do seu trabalho, os consumidores que usam os seus produtos, os fornecedores que têm nelas o seu mercado, o Estado que nelas se financia, os receptores de apoios sociais que nelas têm a origem dos seus recursos e até os ambientalistas que nelas definem o inimigo de que se alimenta a sua utilidade social) criam alguma coisa socialmente útil.

Uma empresa não paga impostos, por exemplo, quem os paga ou são os seus accionistas (raramente), ou, de maneira mais geral, os seus consumidores, mas também os seus trabalhadores que vêem o o preço do seu trabalho ser afectado pela comissão que o Estado cobra por cada hora de trabalho de cada um de nós.

Quando uma coisa é boa para as empresas não quer dizer que seja boa para todos, por exemplo, não saindo dos eucaliptos, se uma área está ocupada com uma plantação de eucaliptos, não pode ser dedicada à conservação da biodiversidade, prejudicando as pessoas que beneficiariam dessa área de biodiversidade.

É aquilo a que os economistas chamam um custo de oportunidade, se os recursos são usados numa coisa, não são usados noutra.

Note-se que se a área for usada para optimizar a produção de biodiversidade, isso significa um custo de oportunidade para a produção de eucalipto.

Numa e noutra opção há ganhadores e perdedores, mas não há bem público, ou prejuízo de um lado e bem privado ou prejuízo privado noutro, há bem e prejuízo privado e público nas duas opções.

Tornar claro o que se ganha e se perde em cada opção é bom e útil, porque ajuda a tomar melhores decisões privadas e colectivas.

Eu não vejo em que medida ter decisões tomadas por terceiros sobre recursos que são meus conduzirá a melhores opções para todos, a menos que se considere que os terceiros são tão melhores que eu, que mais valia que governassem a minha vida.

O que nunca vi é a demonstração de que isso alguma vez se tenha verificado em algum lado, salvo em franjas da sociedade (no governo das crianças, no governo de pessoas com fragilidades sociais irrecuperáveis e coisas que tais, e mesmo assim com limitações muito claras).

Os bens públicos resultam das decisões privadas de cada um de nós, não são uma abstracção que se possa definir tecnicamente por grupos de sábios.

As empresas são apenas uma das formas de organização social que ajudam a materializar o que queremos fazer da nossa vida, sendo especialmente eficazes nalgumas actividades (e pouco úteis noutras), acabando sempre, sempre, por servir, bem ou mal, pessoas, sendo muito pouco provável que apenas se sirvam a si próprias.

A tenaz

por João Távora, em 25.03.24

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A vozearia sobre a viabilidade do governo AD sem maioria absoluta ainda vai aumentar mais uns decibéis. Se a esquerda à espera de melhores dias se distancia higienicamente dos “retrocessos” e de fantasmas fascistas (sempre assim foi), do outro lado, André Ventura vitimiza-se por não lhe darem lugar numa dança que na verdade não quer dançar. Se é verdade que para um Tango são precisos dois, definitivamente não é nesses maus modos que se pede a uma senhora para dançar, insultando-a, caluniando-a sistematicamente em público. É preciso mostrar boas maneiras e um módico de empatia para inspirar confiança num parceiro de dança. O esforço do Chega tem sido no sentido contrário, num jogo de equilibrismo tático da vitimização e reivindicação, ostracizado pelas linhas vermelhas que são o seu seguro de vida. O irrevogável “não é não” de Montenegro constitui o seguro de vida do Chega, que vive dessa marginalidade. Marginalidade em relação aos media tradicionais que são irrelevantes para o seu eleitorado, marginalidade em relação ao parlamento que os seus eleitores desprezam, marginalidade a qualquer solução de governo que tornaria o partido cúmplice do sistema que os seus militantes execram. O Chega é o único partido que está onde quer, por isso é que se chama “chega”. Não tem razões de queixa, o descontentamento (pobreza, desencanto) tende a ser maioritário e vêm aí umas eleições para o Parlamento Europeu.

Vêm aí tempos interessantes.

Proteger os inquilinos (ou os trabalhadores, ou os migrantes)

por henrique pereira dos santos, em 25.03.24

O Público tem uma jornalista de causas que escreve sobre habitação, com muita frequência e umas peças muito grandes.

Não me lembro (não quero ser injusto, a minha memória é péssima e posso não estar a lembrar-me, não correspondendo à realidade) de alguma vez ter escrito sobre os senhorios que se vêem em palpos de aranha para gerir a função social que o Estado lhes impõe.

Os senhorios parecem-me sempre uma abstracção sem coração, nas peças de Rafaela Burd Relvas, mesmo quando têm nome e são ouvidos.

Lá está hoje mais uma peça, com manchete na primeira página "Leis "sem aplicação prática" falham em proteger inquilinos de abusos".

"Seria muito importante ter uma ASAE do arrendamento" diz um senhor da associação "Chão das lutas".

Espanta-me que uma jornalista (e um conjunto alargado de pessoas de associações) de causas nunca tenha lido o Principezinho: "Se eu ordenasse, costumava dizer, que um general se transformasse em gaivota, e o general não me obedecesse, a culpa não seria do general, seria minha."

O problema, meus caros senhores, é que a maior garantia que um inquilino pode ter, a maior protecção que um inquilino pode ter, é a liberdade de escolher uma solução melhor para si, não é a lei que pretende impor aos generais que voem.

O mesmo é verdade para um trabalhador: muito mais que uma legislação laboral que garante direitos, é a possibilidade do trabalhador encontrar rapidamente um posto de trabalho alternativo que lhe garante protecção eficaz contra os abusos dos patrões.

Não estou a negar que exista assimetria nas relações de trabalho, tendo o patrão mais poder que o trabalhador, o que estou a dizer é que a forma mais eficiente de diminuir essa assimetria é dar a maior liberdade possível ao trabalhador para escolher trabalhar com outro patrão, em vez de diminuir a liberdade do patrão em escolher os trabalhadores que entenda, em cada momento.

E o mesmo se passa em relação aos migrantes: a maior protecção que lhes pode ser dada não está do lado da repressão às práticas abusivas de terceiros, mas do lado da garantia de liberdade de mudar para situações mais favoráveis (o que imediatamente remete para a necessidade de reduzir drasticamente o trabalho e migração ilegal, a maior base para o abuso de migrantes que existe).

Nada disto significa que não seja precisa regulação e repressão, claro que é necessário um Estado forte que garanta uma regulação que é realmente aplicada, assente num sistema repressivo eficaz, a questão é que não é, em primeiro lugar, a regulamentação que protege as pessoas, mas a possibilidade de as pessoas se defenderem, aplicando o velho ditado "quem está mal, muda-se".

Esperar que numa circunstância em que há uma grave carência de alojamento para arrendar é a lei que vai garantir a limitação de práticas abusivas por parte de senhorios, corresponde à ideia de mandar generais serem gaivotas... e esperar que isso se traduza no aumento de gaivotas.

Torna-viagem

por henrique pereira dos santos, em 24.03.24

Vou na página 18, ao mesmo tempo que acabo o livro de Nuno Palma e antes de começar a ler a "Breve história de Moçambique".

Quer dizer que a opinião é pouco fundamentada, mas José Pimentel Teixeira (o jpt com minúsculas que por vezes passa por aqui) tem escrito coisas que frequentemente me interessam, em grande parte porque Moçambique é, para todos os efeitos, o mais perto que tenho do que possa chamar a minha terra (apesar de ter nascido em Angola e ter vivido a maior parte da minha vida em Portugal) e porque fala de um Moçambique diferente do meu, "sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição, e sobretudo sem desapego ou indiferença" (estas aspas não são dele, são de Jorge de Sena, ao contrário das próximas).

"Surge um padre na estrada, desses de décadas de mandioca e feijão com bicho, guerras, água morna no cantil, falhanços tantos, malárias, um trabalho insano e eterno, que fazem este ateu sentir-se um pouco mais pequeno do que já é. Irritado, o velho! Ali mesmo narra o episódio do padre italiano, seu colega, seu patrício, que morreu há dias, arrastado nas cheias ao tentar levar doentes ao hospital. E do outro padre partido em busca do cadáver, para o tal de lhes prestar o "enterro digno", seguindo por caminhos irregulares, margens lamacentas, atolado vezes sem conta, o cansaço sem desespero de gente de fé. E do seu regresso, ainda sem sucesso para breve descanso e se reequipar, durante o qual a polícia de trânsito o multa em um milhão de meticais, que isso de nas buscas ter caído a chapa da matrícula ... até pode ser verdade mas não apaga a ilegalidade".

O livro foi publicado no sistema de print on demand (pessoalmente, prefiro os crowdfunding, mas este é também um bom sistema para a publicação baseada em razões pessoais, diria eu) e quem quiser ler o resto, de que dei uma amostra acima, é dar aqui um salto e mandar vir.

Funciona, dentro de dias recebe-se o livro, o meu sistema de pagamentos baralhou-me ao falar de dificuldades de pagamento e comprei dois exemplares em vez de um, nada de grave, darei destino adequado ao segundo, sem dramas.

Não conheço pessoalmente José Pimentel Teixeira, cruzámo-nos brevemente na feira do livro a propósito de um outro livro, "Antes que a gente morra", um livro de memórias grande parte sobre Moçambique, e não tenho nenhuma razão pessoal para recomendar o livro que, como digo, ainda não li, a não ser as primeiras 18 páginas, mas um livro de crónicas sobre assuntos que me interessam e com 18 páginas que não me desiludiram, é razão mais que suficiente para o registar aqui.

A arte da boa crónica

por João Távora, em 23.03.24
(...) "Tanto o Chega como o Livre medram na sua ambiguidade ideológica, ou, melhor dizendo, no seu relativo vazio ideológico. O Livre e a sua enigmática “esquerda verde nórdica” é um vazio, e Rui Tavares o seu profeta. O Chega, uma amálgama de crendices popularuchas sobre o país e a origem dos respetivos problemas, é o beneficiário liquido de uma reação genuína e virulenta contra certos delírios mais excêntricos da cultura woke, a que o Livre, nos seus exatos antípodas e à falta de melhor, dedica o grosso do seu torrencial paleio. Que a esquerda útil aliene sectores sociais inteiros à conta do wokismo é coisa que não tira o sono ao Livre: é um partido de nicho, nada incomodado por viver dos votos dos departamentos mais exóticos das ciências sociais, desde que os abocanhe quase a todos, logrando três ou quatro deputados para o antifascismo-verde-nórdico-cicloviário.
 
O Chega, por sua vez, rapa votos nas imediações. Sempre que o Livre nos recorda as perfeições morais inerentes ao acolhimento irrestrito, em Portugal, de todos os deserdados da Terra, Ventura, como um carro-vassoura, limpa eleitores por atacado, da variedade farta dos ditos deserdados.
 
Monopolista do tema, o Chega fatura com uma realidade escassamente debatida por quem o poderia fazer com equilíbrio, pedagogia e tino, sem atear no processo as brasas da xenofobia, e sem medo dos santos apóstolos que pretendem resgatar a humanidade, transferindo-a para Vila Nova de Milfontes.
 
A ideologia comunista, já defunta, libertou multidões maltratadas pela vida do seu enquadramento sociopolítico. O lume do ódio de classe continua aceso, mas já não ilumina a luta de classes. Agora arde nos altares do Chega. O Alentejo pós-comunista pode, finalmente, deixar de dizer que ganha quando perde e de chamar à derrota catastrófica “desenvolvimento negativo”. (...)
 

Sérgio Sousa Pinto no Expresso

A fraude não é o problema

por henrique pereira dos santos, em 22.03.24

Por estes dias apareceu mais uma notícia de uma fraude com fundos comunitários.

Estas notícias aparecem regularmente há anos, quem tiver dúvidas que procure notícias sobre fraudes com o Fundo Social Europeu relacionadas com a formação profissional.

Quando aparece uma notícia destas mais sumarenta (cabeluda, diriam os brasileiros de forma talvez mais expressiva), envolvendo beautiful people, há sempre quem escreva sobre o assunto de um ponto de vista justicialista.

Com certeza é útil que tenhamos mecanismos de investigação e sancionamento da fraude, só que os efeitos negativos da disponibilidade de dinheiro fácil não resultam essencialmente das fraudes, por isso deveríamos estar a investir seriamente na avaliação de resultados da sua aplicação legal e regulamentar e não tanto na repressão da fraude (Nuno Palma fala sobre isso aqui).

Ontem estive num Fórum sobre eucalipto, organizado pela Navigator, e isso fez-me pensar que até tenho um bom exemplo para tentar explicar este ponto de vista.

Portugal tem um problema grave de abandono de gestão de paisagem de que resulta uma área brutal de sucata florestal, tornando largas partes do nosso território num passivo social.

Para transformar este passivo num activo, do que precisamos é de gestão sensata e sustentável.

Como temos muito dinheiro que o Estado pode mobilizar facilmente (basta acenar com o problema dos incêndios, um dos efeitos desse abandono), temos milhões a ser gastos em ideias que quem controla as instituições decide que são boas: faixas de gestão de combustível, mosaicos, equipas de sapadores, apoio a gabinetes técnicos florestais, emparcelamento, programas de transformação da paisagem, etc., tudo soluções que não são nem sensatas nem sustentáveis.

Não há sombra de fraude nessa utilização (não estou a dizer que não existe, eu até acho que as regras e os mecanismos de controlo favorecem a corrupção, mas em qualquer caso, acho que será sempre uma percentagem menor dos recursos que é desviada pela corrupção) mas os resultados pretendidos simplesmente não aparecem.

Este problema só não é tão visível como deveria porque os critérios de avaliação se baseiam em indicadores de processo (dinheiro gasto, hectares intervencionados, operações executadas e coisas que tais) e não em indicadores de resultados (valor destruído pelo fogo, por exemplo, ou conteúdo em biodiversidade ou mesmo hectares geridos ou com cargas de combustível que tornem os fogos geríveis).

Ora a fileira do eucalitpo (e, na verdade, as fileiras do pinheiro e do sobreiro parecem estar a ser arrastadas no mesmo sentido), com base nos lucros da sua actividade e na prossecução dos seus interesses (garantir o abastecimento das suas fábricas a preços que lhes permitam ser competitivas nos mercados internacionais), acabam por ser muitíssimo mais eficientes na diminuição da sucata florestal através dos programas que têm, sejam o melhor eucalipto, o limpa e aduba ou os projectos piloto de recuperação pós-fogo.

Ou seja, os milhões que o Estado anda a gastar para tentar gerir paisagem, transformar paisagem, têm um resultado marginal para a alteração do passivo num activo social, ao contrário do que acontece com o que a indústria anda a fazer com o mesmo objectivo.

E esta é a questão central, o problema não é a fraude (é um problema, sim, mas é um problema menor) na utilização dos fundos comunitários, o problema é que como o dinheiro é fácil, pode ser gasto de forma ineficiente e, mais que isso, permite que promessas assinadas em papel molhado sobre amanhãs que irão cantar, bloqueiem o desenvolvimento de soluções melhores, mais eficientes e socialmente mais úteis.

Este é um exemplo que conheço bem, calculo que o mesmo se passe, em maior ou menor grau, com o resto da utilização de fundos comunitários.

O país mudou

por João Távora, em 22.03.24

(...) O país mudou, tal como todo o Ocidente mudou. Essa mudança é hoje um assunto de conversa tão inevitável como o tempo. É do que se fala à mesa, na barbearia ou no táxi. De facto, só os políticos não falam disso. A causa imediata da mudança está no colapso das fronteiras externas da UE. O acesso de migrantes à Europa está hoje limitado apenas pela geografia e por algum Estado fronteiriço subsidiado, como a Turquia. Em Portugal, os residentes com naturalidade estrangeira duplicaram desde 2015, em menos de 10 anos. Representam 11,6% da população. Um quarto dos bebés são filhos de mães nascidas no estrangeiro. É a maior mudança social desde a industrialização. A classe política diz que precisamos dos migrantes, e tem razão. Mas não bastam as contas da segurança social, nem a vantagem da mão de obra barata, para extinguir a estranheza que uma grande mudança social, quando é brusca e caótica, sempre inspira.

Para muitos, essa mudança tornou-se preocupante sobretudo pela sua conjugação com a cruzada woke, nas escolas e na imprensa, contra tudo o que tem sido a base da coesão social do país e da sua capacidade de integrar outras populações: a identidade nacional, uma história comum, a religião tradicional. Eis a população desafiada a renunciar a qualquer sentido de comunidade, e a conceber o seu país como um simples aeroporto internacional, onde todos estivessem de passagem. Naturalmente, rejeita isso. Porquê tratar essa rejeição como xenofobia? Porque não ver aí o cuidado legítimo e razoável com um modo de vida que aliás sempre esteve aberto a quem veio de fora? Porquê não admitir que a redução da sociedade a um aglomerado de guetos pode comprometer muita coisa? (...)

Rui Ramos na integra aqui

Um assunto importante

por João Távora, em 19.03.24

Só quem leva a sério o seu papel de pai, sabe como é ingrata essa tarefa. Logo de início, quando os filhos nascem, entendemos como o nosso papel é secundário, subsidiário em face ao da mãe com que um dia quase foram um só. Se nessa altura, na revolução que é a chegada de um novo ser à família, a prestação do homem é preciosa para manter a ordem na casa e libertar a mulher para aquilo que seja insubstituível no cuidar do bebé, é então, ao apreciar aquela relação que nos percebemos como somos assessórios.

Sim é verdade, maior do que as conquistas de emancipação feminina nas suas carreiras académicas, de ministras, deputadas e até no futebol; a maior “revolução” dos tempos modernos é a chamada do homem ocidental à assunção plena da paternidade. Hoje ninguém se choca com o pai presente desde o parto: conhecemos os nossos filhos desde muito cedo, com a ajuda da pele e de uma enorme cumplicidade. Com muitas canções, lengalengas, fraldas, banhos de banheira, de mar e de mundo.

Não me é difícil reconhecer que nem sempre consegui cumprir o meu papel da forma mais nobre, porque é deveras exigente. Quantas vezes aceitar ser secundário, amar sem reivindicações, refrear a testosterona, as fúrias, os medos e aflições, aprender a gerir silêncios e concessões - nem sempre nem nunca. E o mais difícil, aceitar pacificamente a autonomia crescente dos filhos, de os ver partir devagar ainda em casa, às vezes de costas voltadas, que é a forma mais fácil de preparar uma despedida.

De resto, tenho o São José como o meu herói entre os Santos. Uso uma medalha perto do coração e dei o seu nome ao meu filho mais pequeno. Na esperança de que a sua santidade inspire os meus passos.

 

Divertimento eleitoral inútil

por henrique pereira dos santos, em 17.03.24

Por puro divertimento, resolvi olhar, lado a lado, para os resultados das eleições de Domingo passado e para os resultados das europeias de 2019, que se irão repetir dentro de menos de três meses.

Comecemos pelo número de votantes: cerca de seis milhões no Domingo passado contra cerca de três milhões em 2019.

Começar por aqui é importante para se poder ler os números seguintes, que seguem a ordem de voltação nas últimas europeias.

O PS elegeu então 9 deputados, com um milhão e cem mil votos e 33,38%. Daqui a menos de três meses irá, com certeza, perder alguns destes deputados, tendo em atenção que nas eleições de Domingo teve um milhão e oitocentos mil votos, o que é mais que em 2019, mas 28,7% dos votos, uma perda de quase 5%.

O PSD e o CDS (vou juntá-los porque parece fazer sentido), elegeram 7 deputados com com mais de novecentos mil votos, que comparam com o milhão e oitocentos mil que tiveram no Domingo passado, o que em percentagem quer dizer passar de 28% para 29%, por aí. Ou seja, devem eleger 6 a 8 deputados, se se considerar (consideração  assumidamente estúpida, o que não quer forçosamente dizer inútil) que as eleições de europeias terão alguma consistência de resultados com as de Domingo passado.

O BE elegeu dois deputados, com 320 mil votos e quase 10% dos votos, mas no Domingo passado teve 275 mil votos e menos de 5% de percentagem, portanto, poderá eleger, ou não, um deputado europeu (o último a eleger, em 2019, foi o PAN com 5% dos votos, perto de 170 mil), sendo mais provável que Catarina Martins acabe eleita, mas dificilmente haverá um segundo deputado europeu do Bloco de Esquerda.

O PC elegeu dois deputados, com cerca de 270 mil votos e quase 7% dos votos, que contrastam com os 200 mil votos e menos de 4% dos votos no Domingo passado, ou seja, eleger um deputado parece possível, tendo em atenção o número de votos do PAN nas últimas europeias, mas não é nada seguro tendo em atenção a diferença de 3 para 6 milhões de votantes entre umas e outras eleições.

O PAN elegeu um deputado com apenas 170 mil votos, mas 5% dos votantes, só que agora, com o dobro dos votantes globais, ficou-se pelos 120 mil votos e 2% dos votos, uma percentagem em linha com os vários partidos que não elegeram deputado nenhum nas europeias anteriores, portanto, deve perder o seu deputado europeu (na verdade, perdeu-o logo depois das eleições, à conta das divergências internas).

A IL e o Livre estão, essencialmente, na mesma posição, não elegeram com votações mais ou menos residuais em 2019 (30 mil e 60 mil votos, respectivamente, 0,88% e 1,83%), mas no Domingo passado tiveram votações com alguma expressão (300 mil e 200 mil votos, respectivamente, 5.08% e 3,26%), sendo possível que eleger um deputado cada, mais provável para a IL, mais difícil para o Livre.

O Chega não concorreu em 2019 e agora teve um milhão e cem mil votos, em torno dos 18%, o que quer dizer que deve ficar com os deputados todos que os outros perderem, 3 a 4 do PS, um do BE, um do PC e um do Pan, menos um que a IL pode ir buscar, ou seja, aí uns 5 deputados, mais coisa, menos coisa.

Claro que tudo isto não passa de um divertimento sobre o futuro, as variações do número de votantes inviabilizam qualquer comparação minimamente sólida, os cabeças de lista podem influenciar qualquer (pouco, mas pode ser a diferença entre ter mais um ou menos um deputado) e confesso que divertiria imenso que o Chega candidatasse Mithá Ribeiro como cabeça de Lista, para ver os branquelas todos dos outros partidos a acusá-lo de racista (a discussão sobre o racismo está tão absurda que Cristina Roldão, uma mulata que escreve no Público sempre a mesma crónica sobre diferenças de tons de pele, reconhece a ironia de ser o Chega o único partido a ter elegido deputados racializados (sem qualquer ironia, não consigo mesmo perceber este conceito de pessoas racializadas), dizendo que elegeu Mithá Ribeiro (ascendência em famílias pretas e indianas, se não me engano) e um outro deputado manifestamente mulato, nem reparando que Rita Matias é também mestiça, com ascendência indiana).

IRS para a Montis

por henrique pereira dos santos, em 17.03.24

Num comentário ao meu post anterior, um dos leitores lembrou que vamos entrar na época do IRS.

Depois de muitas peripécias, que duraram anos, obrigaram a mudanças estatutárias irrelevantes (comunicadas em avaliações sucessivas e não apenas na primeira análise, isto é, os serviços públicos acham admissível que depois de analisarem um documento, indicarem que alterações precisam de ser feitas para estar correcto, na verificação de que essas alterações foram feitas, descubram novas desconformidades que precisam de ser corrigidas), a Montis, desde o ano passado, passou a ser elegível para receber 0,5% de IRS que os contribuintes indiquem.

A coisa está toda explicada aqui, mas essencialmente o que é preciso é que no formulário do IRS se indique:

Tipo de entidade que pretende apoiar: Pessoas coletivas de utilidade publica de fins ambientais
NIF da entidade - MONTIS 510976077
O tipo de consignação: “IRS”

Como no ano passado foi o primeiro ano em que isso foi possível, não havia, até há uns dias atrás, qualquer ideia do que teria resultado desse processo.

Não sei muitos pormenores, mas tenho ideia de um dia destes, em conversa com alguém da direcção, me terem dito que já tinha entrado a receita proveniente desse processo no ano passado e ser relevante para um dos objectivos centrais da Montis, desde o primeiro dia: ter um número de sócios suficiente para que as quotas pagassem um secretariado, sem depender de mais ninguém.

Na altura não se considerou a possibilidade de consignação de 0,5% do IRS, mas faz sentido que se junte este dinheiro ao dinheiro das quotas para reforçar este objectivo: o secretariado profissional mínimo da Montis deve ser pago pelos seus sócios e apoiantes, sem depender de mais ninguém.

Esse é mais um dos instrumentos para que a Montis seja uma associação realmente independente, cuja orientação depende primordialmente do que os sócios querem que seja a associação, em cada momento.

Ao fim de dez anos, se se consideraram 400 sócios e o dinheiro da consignação do IRS talvez se esteja a falar de qualquer coisa como o custo de uma pessoa a tempo inteiro, que é a base de trabalho que permanece sempre disponível, independentemente das flutuações de disponibilidade de recursos que dependem de projectos e outras fontes de financiamento.

Parece um objectivo ridículamente pequeno, mas olhem que não, olhem que não.

10 anos da Montis

por henrique pereira dos santos, em 16.03.24

A Montis é uma pequena organização de conservação da natureza que ajudei a fundar e de que fui presidente nos primeiros dois mandatos.

Estatutariamente não se pode fazer mais de dois mandatos e os dirigentes não podem ter comércio jurídico (incluindo receber dinheiro que não seja ressarcimento de despesas documentadas) da associação que dirigem.

É das poucas organizações deste tipo que conheço em Portugal que leva a sério o pagamento de quotas, portanto, estatutariamente, em vez da solução usual de remeter a perda de qualidade de sócio para uma decisão da Assembleia Geral (que, na verdade, raramente ocorre), essa perda da qualidade de sócio ocorre automaticamente desde que não exista pagamento e o sócio tenha sido avisado de que está a dever a quota (por isso os meus amigos estão a receber contactos meus, a pedido da direcção, no sentido de pagarem as quotas, se for esquecimento. Se for opção, tenho pena, mas é a vida, nunca insisto).

Quando digo pequena organização é porque terá qualquer coisa como 410 a 420 sócios (dos quais, uns 80 em risco de perder essa qualidade por falta de pagamento de quotas), sendo o crescimento em número de sócios a minha maior frustração com a Montis (já agora, quem se quiser fazer sócio, é só daqui um salto).

Para muita gente, é uma associação frustrante, porque não tem posições políticas, limita-se a estar comprometida com a gestão concreta de terrenos em que ninguém está interessado, ou porque os comprou para dedicar à conservação (penso que será dono de qualquer coisa entre 15 e 20 hectares, quase todos comprados com recurso a crowdfunding), ou porque fez acordos de gestão de longo prazo com os proprietários, não pagando rendas, limitando-se a gerir com objectivos de conservação (deve andar pelos 200 ou 300 hectares, mas como não estou ligado à gestão diária da associação, não tenho os números na cabeça. Em qualquer caso, quem quiser saber mais sobre isso, partindo do princípio de que a informação está actualizada, princípio errado porque já vi que faltam pelo menos as propriedades na zona da serra da Estrela, pode dar um salto aqui).

O que me interessa é que no dia 21 (às vezes aparece como sendo no dia 23, eu não me lembro) a associação vai comemorar dez anos, o que, em si, representa, para mim, uma grande vitória: dez anos a crescer lentamente, sem estar apoiada no Estado, quase sem grandes projectos aprovados (o único grande projecto apoiado, um projecto LIFE, ia transformando a associação em mais uma associação de conservação mais preocupada em captar recursos que em gerir terra com objectivos de conservação), sem grandes mobilizações "contra interesses", sem nada de especial que não seja o gosto por gerir terra com objectivos de conservação e o compromisso de confiar nas pessoas comuns para o conseguir.

Nas próximas semanas irei fazendo mais posts sobre a Montis, até porque está em preparação mais um crowdfunding para criar uma base melhor de aquisição de terrenos mas, para já, o que queria era sinalizar o meu gosto por estes dez anos assentes em gente livre que se junta para fazer o que acha que nos beneficia a todos.

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