Por puro acaso, voltei recentemente a ver este video sobre o colonato do Limpopo.
O video tem coisas interessantes e tem Fernando Rosas.
O que me impressiona é Fernando Rosas (e quem definiu o guião do episódio), seguir uma prática frequente na história contemporânea portuguesa, em especial na que se debruça sobre a história colonial: há um evidente interdito que impede historiadores - e jornalistas, já agora - de recorrer à memória de alguns grupos sociais relevantes para perceber a complexidade desse processo histórico.
Nunca estive no colonato do Limpopo (que me lembre, mas tenho péssima memória) antes do 25 de Abril, lembro-me sim de uma vez ter ido a uma reserva no vale do Limpopo, mas seguramente com muito pouca relação com o colonato: era uma reserva natural, quase sem intervenção humana pesada, um bocado na sequência do Kruger Park, calculo eu hoje (penso que seria a origem do actual Parque Nacional do Limpopo, mas não garanto), ao contrário do colonato do Limpopo, que era uma área de intensificação agrícola através de investimento em regadio.
Aqui, de forma breve, uma visão alternativa do que foi esse colonato.
Mas a minha mulher viveu lá até 1974 ou 1975, o meu sogro fazia parte da brigada técnica do colonato (era um agrónomo que sempre trabalhou em regadio e, tanto quanto sei, foi para África à conta de assuntos de saias, motivação que provavelmente o historiador Fernando Rosas nunca consideraria nas suas análises) e estive lá, no que é hoje o Chokwé, há coisa de quatro ou cinco anos, quando a minha mulher resolveu ir mostrar-me a casa onde tinha crescido (e onde tinha estado uns anos antes, quando tinha voltado a Moçambique, numa altura em que não fui, uma história que já contei por aqui).
A tese do episódio para que fiz uma ligação na primeira frase do post, é a de que se tratava de uma tentativa de colonização branca das colónias portuguesas, explicando todo o processo numa base racial, para o que evidentemente foi preciso ajeitar os factos, esquecendo os colonatos da Junta de Colonização Interna que também foram criados em Portugal (Santo Isidro de Pegões é o mais conhecido e que ainda hoje subsiste, mas houve bastantes mais, pensados e estudados por pessoas como Henrique de Barros, cujo alinhamento com o regime toda a gente sabe qual era), investimentos como Cabora Bassa e outros pormenores que não encaixam na tese.
O episódio acaba com citações de Cláudia Castelo (não sei de onde, gostaria de as verificar no original, conheço a visão sectária de Cláudia Castelo sobre o assunto, mas isso não diminui o meu interesse em ler o contexto das afirmações feitas) que afirmam que os colonatos foram meras acções de propaganda falhadas, o que se pretende demonstrar com a diminuição progressiva do número de colonos.
Espantado com algumas afirmações que, mesmo já dando o desconto de serem feitas por Fernando Rosas, careciam de um mínimo dos mínimos de rigor, fiz duas ou três perguntas à minha mulher sobre a composição racial nas escolas (o desprezo com que Fernando Rosas fala do que chama assimilados é uma inequívoca demonstração do seu profundo racismo).
Confirmei que na escola primária - e havia uma por cada uma das treze aldeias do colonato, a brigada técnica estava sedeada na vila, sendo o que a minha mulher conhece melhor, naturalmente, saiu de lá na adolescência, numa altura em que subir às árvores era bem mais relevante que compreender a sociedade em que se está metido - havia uma mistura racial enorme.
No secundário a questão era diferente, primeiro porque só havia na vila, e algumas aldeias eram mesmo longe, e depois porque se verificava a distinção social que existia também em Portugal no ensino secundário, com os filhos da burguesia e dos colonos a serem quase todos brancos e a população escolar no colégio.
Falta-me o meu sogro para perguntar como era na escola agrícola em que também deu aulas, suspeito que teria tantos alunos brancos como mulatos e pretos, mas já não lhe posso perguntar para confirmar.
Mas como a minha mulher insistia na falta de certezas, que a memória vai falhando, e para além disso estava no colonato como filha de um funcionário público e não de um colono, resolvi fazer duas ou três perguntas a um amigo que sobrou do tempo da tropa e de que me lembrava ser filho de colonos do Limpopo.
Explicou-me que realmente o pai tinha ido para Trigo de Morais como colono, em 1956 (quase no início do colonato, a primeira aldeia começa em 1953, mas é em 1956 que é inaugurada a barragem, o meu sogro só foi mais tarde), a mãe tinha-se depois juntado em 1960, tinham vivido primeiro na vila, depois em Leonde, mas saíram do colonato em 1961: quando acabou o contrato com o Estado preferiu fazer uma machamba dele no mato e por outro lado os grandes trabalhos de desmatação e de construção de infra-estruturas estavam feitos, aspectos que explicam bem a diminuição de colonos, mas que Fernando Rosas esquece.
A história, como se vê, é o contrário de um falhanço, é a de um homem que sai da pobreza da sua terra, faz cinco anos de contrato com o Estado, e com os recursos e experiência conseguidos, investe numa machamba própria para dar um futuro melhor aos seus filhos. No entanto, percebo que seja difícil a Fernando Rosas falar disto sob este ponto de vista, e não sob o ponto de vista da diminuição de colonos como consequência das condições miseráveis a que os colonos eram sujeitos.
Explicou-me que ele próprio viveu muito pouco tempo no colonato, conhecia Leonde das visitas que os pais faziam a amigos, e explicou-me que fez a primeira classe numa aldeia (que não fazia parte do colonato, estava a 60 quilómetros em linha recta de Trigo de Morais, hoje Chokwé, o que na África daquele tempo pode significar várias horas de viagem) em que ficava em casa de um amigo dos pais - a machamba era no mato, não dava para ir e vir à escola - e quando os amigos se mudaram, foi para um internato em Lourenço Marques, hoje Maputo, numa missão (penso que uma escola técnica salesiana) em que a maioria dos alunos eram orfãos pretos (que me perdoem os mais sensíveis ao politicamente correcto, mas os meus amigos pretos sempre foram pretos, e essa designação não tinha, nem tem, nem para mim e nem para eles, qualquer conotação negativa).
E confirma a mistura racial na escola primária, que eu próprio conhecia da minha escola primária, apesar de ser a escola da burguesia colonial urbana de Lourenço Marques, a que a minha família pertencia (a definição da burguesia colonial está muito longe das vulgatas marxistas habituais, incluía muitos funcionários públicos de origem social mais que modesta e a quem a escola tinha permitido o acesso ao funcionalismo público e à progressão na carreira, outra coisa que Fernando Rosas desconhece seguramente).
Considerar uma obra de irrigação de uns milhares de hectares, que deu origem a um povoamento consistente, que ainda hoje persiste, à instalação de comunidades religiosas, mas também de fábricas e uma escola agrícola, como uma obra de propaganda que falhou, é uma visão peculiar da realidade.
Mas não é essa visão peculiar que me interessa, não tenho ilusões sobre o peso da ideologia na história contemporânea e não pretendo que a minha visão seja mais objectiva e menos ideológica que a de Fernando Rosas (eu acho que é, mas Fernando Rosas achará o inverso com a mesma legitimidade), o que me interessa é o que me distingue de Fernando Rosas na abordagem da questão: Fernando Rosas filma-se no Chokwé a explicar o que acha que era a realidade, eu seguramente filmaria as pessoas comuns que ainda lá andam a falar do que viveram nesse tempo.
Tal como daria espaço aos colonos e pessoas próximas que ainda por aí andam (ainda um dia destes num zapping qualquer aparecia uma senhora a dizer que tinha nascido em Trigo de Morais, hoje Chokwé, muito provavelmente filha de colonos), aos técnicos que ainda estejam vivos, e outras pessoas comuns, para registar as memórias de diferentes pontos de vista sobre assuntos complexos.
Infelizmente, os historiadores contemporâneos que conheço e tratam estas matérias contentam-se em olhar pelo retrovisor ampliando o ângulo morto que decidem ignorar: a voz e as memórias das pessoas que estavam lá, mas no lado da história que eles consideram errado.
Esses testemunhos não são mais objectivos que outros, mas as diferenças de pontos de vista ajudariam a compreender de forma mais profunda toda a complexidade do processo de colonização e descolonização, evitando-se uma série de tolices que Fernando Rosas diz neste programa, sem a menor base factual (se o meu sogro ouvisse Rosas a falar do carácter autoritário da brigada técnica sorriria com evidente ironia e limitar-se-ia a constatar em voz alta o óbvio: é tolo).