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V.P.V. foi o pioneiro da rebeldia contra esta prisão mental. O seu lugar na história na geração que fez a transição do Estado Novo para a democracia deve-se a esta coragem precoce.
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V.P.V. lutou contra o neorrealismo em defesa de um módico de honestidade intelectual: a filiação partidária e ideológica do escritor não deve entrar na análise que fazemos ao seu trabalho. Contudo, a luta contra o neorrealismo também lhe deixou um vício intelectual que está ligado ao meio social daquela Lisboa minúscula e oitocentista: o snobismo. Neste sentido, há que olhar com redobrada atenção para uma experiência fundamental da juventude de V.P.V., uma experiência ainda mais antiga do que “O Tempo e o Modo” — a revista “Almanaque” (1959-1961).
A “Almanaque” era dirigida por Cardoso Pires e contava com a colaboração de Sebastião Rodrigues, Abel Manta, Luís de Sttau Monteiro, Augusto Abelaira, José Cutileiro, Alexandre O’Neill e Vasco Pulido Valente. A revista tinha uma atitude relaxada de bon vivant que chocava de frente com a fria austeridade dos neorrealistas. O neorrealismo defendia que um livro ou autor só poderia ser considerado sério ou sofisticado se estivesse comprometido com a consciencialização social e revolucionária. Contra esta obtusidade comunista, a “Almanaque” assumia-se como um roteiro de curiosidades da vida urbana, uma espécie de “Time Out”. Apostava na fruição da vida, não na austeridade comunista; abordava temas como roupa, comida, carros e até automobilismo. Se Cardoso Pires foi aqui a referência estilística de Vasco, Sttau Monteiro foi a referência para o desenvolvimento da pose do intelectual aristocrático que não se deixava dominar pela estética da alfaia agrícola.
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Ao recusar os excessos do neorrealista, V.P.V. entrou no extremo oposto, o extremo da petulância snobe que recusa colocar os pés no pó da vulgaridade.
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A elite e os indígenas
Lido à distância, o boçal snobismo do “Independente” é ainda mais estranho: como é que a velha soberba snobe, com aquele traço de lorde oitocentista, ainda foi a tempo de ser a base do (alegado) renascimento da direita portuguesa dos anos 80 e 90? Como é que os (alegados) renovadores da direita portuguesa se limitaram a dar uma roupagem pop e pós-moderna aos velhos tiques snobes? E o que assusta é que este orgulhoso snobismo do “Independente” teve um sucesso estrondoso, revelando como as elites dos anos 80 e 90 não tinham mudado muito em relação às elites de 1950. Há um ponto de ligação entre o “Almanaque” dos anos 50/60 e de esquerda e o “Independente” dos anos 80/90 e de direita. Na verdade, como tem dito António de Araújo, a grande clivagem da sociedade portuguesa não é ideológica ou religiosa, é social ou socialite; a clivagem não é entre direita e esquerda, crentes e não crentes, é entre as pessoas que alegadamente têm pedigree e as pessoas que alegadamente não têm esse pedigree. Elites versus “indígenas”.
Felizmente, o Miguel Esteves Cardoso da velhice e das entrevistas (que me parece mais interessante do que o Esteve Cardoso da meninice e das crónicas) já fez um espantoso mea culpa: “Fomos muito pirosos nisso (ataque a Cavaco e a cavaquistas). Ao princípio, achávamos graça à meia branca, era uma espécie de bullying armado em snobe, de que me arrependo. É muito foleiro, mas éramos novos. Era desagradável o que fazíamos (...) Hoje arrependo-me imenso. E gozar com a condição social da pessoa, com o gosto da pessoa, não é nada conservador (...) Cavaco nunca pôs um processo, nunca chateou, nunca mandou uma carta, mesmo quando foi muito maltratado, foi impecável (...) Essas pessoas com que gozávamos, como o Macário Correia, acabavam sempre por ganhar, porque eram superiores.”
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Se quiser ser digna de respeito, se quiser ser lida e ouvida, a direita deve reconstruir as suas bases a partir desta autocrítica. Ser conservador não é o mesmo que ser snobe. Será que a direita em 2018 está disponível para seguir o Miguel Esteves Cardoso da velhice?
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Numa das entrevistas da velhice [Vasco Pulido Valente], até teve a candura ou coragem para reconhecer que gostava da pequenez da capital dos anos 50 e 60. A elite lisboeta, segundo Vasco, era um mundo “familiar, quase doméstico” em que toda a gente se conhecia pelo nome.
Jornal Expresso, 10 de Fevereiro de 2018