Carlos Costa deu uma rara entrevista no fim de semana ao Expresso. Nela procura a redenção de todos os pecados que lhe apontam, e não são poucos. Eu confesso que acho que, apesar de todos os percalços nos últimos anos no sector bancário, Carlos Costa foi um homem de coragem, que fez muito mais do que qualquer Governador. Mas fazer ou não fazer, nesta sociedade dos nossos dias, não cria heróis. O que Carlos Costa possa ter feito de bom acabou ofuscado por eventuais erros e omissões e por conta dos inimigos poderosos que arranjou e que não desarmam na luta contra o Governador do Banco de Portugal. Esses inimigos têm a seu favor a falta de popularidade de um Governador que fez coisas pouco ortodoxas. Nem todas ao longo da entrevista ficaram bem explicadas.
Mas analisemos. Sobre o mais difícil da sua carreira, a Resolução do BES e as suas vítimas: os lesados do BES. Diz sobre isso, Carlos Costa, que aproveita para mostrar simpatia pela causa dos lesados, o seguinte:
"Os lesados tem razão para se queixar dos emitentes, a ESI e a Rioforte, que não cumpriram com aquilo a que estavam obrigados. Os lesados têm todo o direito de ser ressarcidos pela massa falida. Não são credores do BES porque o BES não lhes deu uma garantia formal. Se tivesse dado uma garantia formal nos termos da decisão de resolução teriam passado para o Novo Banco. Logo não podem ser credores do Novo Banco. Para isso acontecer é preciso haver um acto jurídico ou uma base jurídica para converter a situação em que eles se encontram em credores do BES. A única lei de que dispomos para este feito é o Código de Valores Mobiliário, que diz que em casos de venda abusiva a autoridade de mercado pode reverter a operação. Não pode ser o Banco de Portugal".
Reparem, Carlos Costa diz: tenho simpatia pela vossa causa. Mas o BES não deu uma garantia formal, por isso não é um tema do meu departamento. Têm de ir ali ao lado à CMVM que essa sim pode reverter a operação e dessa maneira reverter a venda de títulos e dessa forma os que os compraram é como se não o tivessem feito e ficam desta forma credores do BES. A esta hora a CMVM já lá deve ter uns quantos a bater-lhes à porta. Mas atenção, a reversão da venda é só em caso de se provar que houve venda abusiva. Pode ser difícil provar tal. Sobretudo passado tanto tempo.
Explica ainda o Governador, a propósito deste tema que:
Claro, claro. E a CMVM pode reverter a operação baseando-se em critérios genéricos se não quiser ir caso a caso, ou, no limite, se os lesados apelarem para os tribunais.
(...)
Nós temos de ter uma base legal e há duas que são importantes. Uma é o Código de Valores Mobiliários e a outra é a base legal da resolução. E as duas têm de ser respeitadas porque se eventualmente aceitássemos reembolsar alguém que não é credor do BES não teríamos nenhuma razão para aplicar a hierarquia de credores. Abríamos uma caixa de Pandora.
(...)
Têm acesso à massa falida e no caso em que haja razões para invocar o artigo do Código de Valores Mobiliários que os protege têm razoes para recorrer para a CMVM ou para os tribunais.
Com documentos escritos? [pergunta o Expresso]
Ou evidências que o permitam. Tem é de haver uma base legal. E uma base legal não é uma base moral.
Esta é a frase chave de todo o discurso de Carlos Costa e que rege toda a sua política à frente do Banco de Portugal.
Estou é a dizer que no dia 21 de Maio fiz uma proposta que tinha a concordância da ministra das Finanças no sentido de fazermos uma aplicação indiciária de critérios de venda abusiva para depois reverter as operações que tinham de ser revertidas. Nós queremos uma solução, mas essa tem de se enquadrar em dois princípios, o da legalidade e o da segurança do processo de resolução.
(...)
Quem decide nessa matéria é a CMVM. Se por acaso a CMVM não decidir, há lugar a recursos para os tribunais.
A este propósito é preciso dizer que os advogados são caros e que depois de se perder muito dinheiro das poupanças num banco que era referência no mercado, a última coisa que apetece é pagar milhares a advogados.
Vamos agora passar ao tema ESI e falsificação de contas, e mais ainda a proibição de venda de dívida dessa empresa do Grupo Espírito Santo aos balcões do banco.
Diz Carlos Costa:
Qual a autoridade moral do Banco de Portugal quando essas unidades eram vendidas ao balcão do BES e já tinham a noção de que o BES tinha falsificado contas.
"Estamos a falar de uma instituição que estava sediada no Luxemburgo que não era supervisionada por nós. A ESI só entrou no radar do Banco de Portugal porque no quadro do Etric decidiu ir controlar os grandes clientes dos bancos. A 26 de Novembro de 2013 identificamos um acréscimo do passivo financeiro da ESI. Três dias depois, requeremos explicação detalhada do porquê das coisas. A 3 de Dezembro, a ESFG informou o BdP que, por problemas de natureza contabilística, havia passivos e activos que não estavam registados no valor de 1,3 mil milhões de euros. Nessa altura não se falava que a situação líquida era negativa, nem de qualquer falseamento das contas. E em Dezembro o BES deixou de vender papel comercial dessa entidade por nossa imposição. Depois pedimos que fosse feita uma auditoria pelo auditor do BES. A 31 de Janeiro, a KPMG comunica que a ESI tinha uma situação líquida negativa de 2,4 mil milhões de euros, mas não identifica caso de falseamento de contas. A 7 de Fevereiro a KPMG, em conversa connosco, impõe a constituição de uma provisão de 700 milhões de euros na ESFG. A 14 de Fevereiro, o Banco de Portugal proibiu a comercialização directa ou indirecta de qualquer tipo de papel de entidades do grupo. A 28 de Maio, é a primeira vez que temos a indicação de que há falseamento de contas. Que não vem sequer através da KPMG, mas através de uma sociedade de advogados luxemburguesa".
Primeira grande pergunta: Porque é que o Banco de Portugal não tornou pública a proibição de vender papel comercial do Grupo a 14 de Fevereiro? Se o tivesse feito, não teria havido clientes do BES que tinham o dinheiro noutras subsidiárias fora de Portugal, a comprar papel comercial de empresas que não podiam vender papel comercial em Portugal por imposição do regulador. A transparência tinha sido essencial. Se alguma coisa se pode apontar ao Governador é o excesso de discrição. Muito discreto, muito discreto, e as consequências estão à vista. Muitos lesados dos bancos. Não foi só no BES, no Banif e no Novo Banco também já há lesados. Todos apanhados de surpresa.
Esta conversa entre o Expresso e Carlos Costa é digna de registo. Reparem:
Mas se em Janeiro há um relatório em que a KPMG diz que a ESI tem uma situação líquida negativa quando as fichas técnicas do papel comercial apresentavam uma situação líquida positiva.
Mas nessa altura o Banco de Portugal autorizava a venda do papel comercial da ESI? Não, já a tinha proibido.
Mas eles passaram para a Rioforte e para as pessoas era na prática o mesmo.
Mas a Rioforte é outro problema. O papel comercial não era supervisionado pelo Banco de Portugal. E nós impedimos a comercialização através dos balcões. Ao primeiro sinal de que havia um problema com este papel não era o Banco de Portugal que tinha de interditar a comercialização do papel.
Era a CMVM?
Nós só podemos impedir uma instituição de vender.
(...)
É muito fácil atirar a pedra ao Banco de Portugal.
Parece mais um jogo de culpas entre ex-amantes. Do género:- Tu traíste. -Eu nunca te prometi nada. -Mas destes sinais. - Não fui que te pedi para teres esperanças. Enfim.
O Banco de Portugal proibiu, e o que não proibiu não lhe cabia proibir. Não podemos impedir uma instituição de vender. Ora bolas!
Remata com esta:
"Vou ser muito claro neste ponto: a CMVM tem a supervisão dos produtos, nós temos a supervisão das instituições"
Agora o tema Vítor Bento (o presidente do BES que substituiu Ricardo Salgado). Sobre a venda do Novo Banco:
"Uma coisa é o que gostaríamos, outra é o enquadramento europeu.
Primeiro, tínhamos de trabalhar com os dados fornecidos pela Direcção-Geral da Concorrência, que diziam ser precisos dois anos para proceder à venda do banco e tínhamos que mostrar que éramos diligentes para justificar qualquer alargamento do prazo, o que foi feito, porque nos deram um ano adicional. Um ano que tem custos, porque implica medidas e remédios adicionais. Se não tivéssemos sido diligentes teríamos entrado na fase em que temos uma autoridade europeia de resolução, que seria um período de maior incerteza do ponto de vista da condução do processo. Segundo, estou muito agradecido a Vítor Bento pelo facto de naquele dia ter aceitado continuar à frente do banco de transição. Terceiro, as relações entre mim e Vítor Bento sempre foram de uma grande cordialidade. Ele teve o apoio de que necessitava, sempre que o pediu, e houve momentos em que achou que o projecto não o entusiasmava e pediu para ser substituído.
Os cinco anos que ele defendia não eram, e ainda hoje não são, compatíveis com as regras da DG Concorrência.
Esta semana, Vítor Bento abriu uma discussão sobre se o Novo Banco não deve ficar no sector público. O que diz o Governador sobre isso:
O Banco de Portugal, como autoridade de resolução, executa um mandato. Esse mandato resulta da carta de compromissos que o Governo subscreve junto da Comissão Europeia e da DG Concorrência. Neste momento, temos uma carta de compromissos que nos obriga a ser diligentes no processo de venda. Se a carta de compromissos for alterada num outro sentido, o Banco de Portugal agirá da forma mais diligente possível para a implementar.
Portanto, se o Governo quiser que o Novo Banco fique na esfera do Estado, deve falar com Bruxelas.
O impacto da venda do Novo Banco pode implicar aumentos de capital nos outros bancos? [Pergunta o Expresso]
Não. O princípio é de que o Fundo de Resolução fique com um crédito sobre os bancos que vai sendo amortizado ao longo do tempo, à medida que for sendo paga a taxa sobre os bancos.
Quanto é que o Novo Banco vai custar aos contribuintes? [Pergunta o Expresso]
Não vai custar aos contribuintes, vai custar aos bancos.
Quanto é que se vai perder no Novo Banco?
Não podemos saber. Se aplicarmos as taxas de desconto que estão em vigor no mercado, como o capital do banco anda pelos €6 mil milhões, o valor pode andar na ordem dos €3 mil milhões. O que compara com os €4,9 mil milhões.
Ou seja, uma perda de dois mil milhões de euros. Continua convencido que a resolução foi a melhor solução? [Pergunta o Expresso]
Eu tinha de assegurar que, no dia seguinte, segunda-feira, 4 de Agosto [de 2014], o financiamento à economia continuava, que a confiança dos depositantes continuava intacta, que os depósitos se encontravam protegidos e que não havia nenhum cataclismo na sociedade e na economia portuguesa. A verdade é que as pessoas continuaram na praia. A verdade é que não houve nenhuma corrida. A verdade é que o banco recuperou a sua credibilidade. Posso dizer-lhe mais, uma das constatações que resulta dos processos de venda anterior e do processo que está em curso é que a franchise do banco, na sua actividade nuclear, é forte e muito apreciada por eventuais adquirentes. É um activo muito apetecível.