por Corta-fitas, em 31.03.06
A minha gabardina azul tem um corte antiquado, manchas de cor desvanecida, mangas demasiado curtas. Quando foi à lavandaria, a empregada disse: “Tem a certeza de que quer mandar limpar e impermeabilizar? Custa-lhe muito dinheiro e quase que podia comprar uma nova”. Sim , claro, eram bons argumentos, mas não seria a mesma gabardina.
Os tempos mudaram e, hoje em dia, veste-se de forma diferente do que na altura em que a comprei. Aquele foi um caso de imediato pronto a vestir, nem sei explicar, como nos acontece em paixões que levam tudo à frente, do bom senso ao juízo propriamente dito. Era barata e sem marca. Olhei para ela e vi todos os defeitos, não resistindo talvez em me olhar ao espelho. Seriam de certa maneira também os meus próprios erros: a forma algo anacrónica, uma espécie de orgulho em excesso (as gabardinas não podem ter tal coisa, mas foi o que vi!). O azul ficava-lhe bem e, na juventude resplandecia, sobretudo quando a luz do sol lhe batia num certo ângulo. (Já vejo os leitores a rirem das minhas frases disparatadas; o sol a incidir numa gabardina é um pobre fracasso de função).
As vestimentas querem-se janotas e sem conteúdo, de grafismo impecável e pouca alma; coisas que se possam descrever em poucas palavras, catitas e modernaças. Acima de tudo, a roupa serve para esconder o indivíduo atrás de um hábito que transfigura o ser em algo de efémero e distinto de si, que pensa apenas na sensação súbita de percorrer uma rua e sentir-se o alvo da admiração alheia. A satisfação do ego justifica a marca, símbolo de ascensão. O traje deve ser ambicioso e contemporâneo.
A minha pobre gabardina não tem nenhum destes empregos. Não serve para muito, pois a impermeabilização fracassou. Mas é esta a sua história, até agora. É uma gabardina em desuso, pois elas querem-se de cor beije ou vagamente creme. Aliás, já passou o tempo das gabardinas. É isso, passou o seu tempo.
Um dia, tenciono falar-lhes aqui das minhas botas; contar algumas das suas aventuras em vários cenários. É pena que elas também já estejam fora de moda.
5 comentários
De Anónimo a 31.03.2006 às 20:17
Parabéns pela crónica. Veio enriquecer muito este blogue aonde venho todos os dias.
De Anónimo a 31.03.2006 às 16:00
Uma gabardine,
uma lambreta,
uma festa.
Os mods.
My generation.
THE WHO.
De fonte próxima a 31.03.2006 às 15:30
É claro que o desprezo pela moda também é uma moda para alguns...
De fantasmadaópera a 31.03.2006 às 14:26
Até que enfim alguém dá primazia ao sentir e que se lixe a opinião dos outros!
De f.mad. a 31.03.2006 às 13:42
Ah!Gogol moderno...