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Virtudes comuns (crónicas)

por Luís Naves, em 24.02.08

Os territórios

 

A melhor coisa que podia ter acontecido à Sérvia era perder o Kosovo, a região mais atrasada do país, onde Belgrado apenas possuía soberania formal.

Sei que a ideia é difícil de aceitar e, sobretudo, colide com a opinião quase unânime dos que se pronunciaram em blogues ou jornais. Para muitos, a independência foi mal gerida, vem aí uma guerra, os radicais triunfam. Talvez, mas a Sérvia não tem solução para esta sua perda, excepto a de se fechar num irredutível chauvinismo que não a levará a lado nenhum. A política internacional não se constrói sobre o princípio da equidade.

Se a Sérvia perdeu a sua soberania sobre aquele território, só havia dois caminhos possíveis: formalizar o facto consumado ou devolver o Kosovo aos sérvios. Qual dos dois era menos absurdo?

Os territórios, hoje, não fazem o sentido que faziam antigamente, sobretudo quando estão ligados à ideia de orgulho. No passado, representavam acumulação de recursos escassos. Hoje, o mercantilismo não se pratica e uma região pobre é um fardo. Aliás, o patriotismo é um conceito usado desde o século XIX, teve a sua utilidade, mas tornou-se numa péssima ferramenta para o século XXI, admitindo que estamos na era da globalização.

Há exemplos do que quero dizer, mas gosto deste: em meados do século XIX, no auge de uma onda patriótica da elite, os filólogos húngaros decidiram magiarizar a sua língua. Recuperaram elementos esquecidos, do húngaro bárbaro antigo, e eliminaram palavras e regras latinas, eslavas e germânicas que pululavam na língua do povo. O resultado floresceu nas escolas primárias, mas partes da população nunca aceitaram a língua, demasiado diferente e complexa. Os húngaro-falantes tornaram-se minoritários na sua metade do império e o húngaro ficou associado ao poder da minoria, exacerbando as distinções sociais. Esta bola de neve culminou com um falhanço imperial e a perda de dois terços do território, incluindo extensa parte que hoje é o norte da Sérvia. Mas, lá está: a História nunca foi sobre equidade.

Os que criticam a independência do Kosovo lembram que pode haver outros casos: a Catalunha, por exemplo. Mas estas análises esquecem que a questão catalã é típica do século XXI e tem sobretudo a ver com impostos e com o facto de uma região mais rica de um país não querer pagar tanto para regiões mais pobres.

Para um português é difícil perceber os tribalismos da Europa Central e os custos do chauvinismo patriótico. Vivemos num país que gosta de se embrulhar na bandeira, mas onde nunca existiu o “inimigo interno”. Por outro lado, em certas regiões da Europa, basta andarmos numa estrada dez quilómetros e atravessamos aldeias com línguas diferentes e culturas opostas. Os habitantes de uma e outra não se falam, não se casam, não negoceiam entre si.

O peso do passado, cuidadosamente repetido em narrativas radicais, torna difícil a ideia de que os territórios perderam a sua importância. Mas lembram-se do fim da Checoslováquia? E podia mencionar Hong Kong ou Singapura.


8 comentários

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De A.Teixeira a 25.02.2008 às 00:49

Parabéns!

A ideia do benefício sérvio por se ter separado do Kosovo parece-me uma ideia original e creio que está bem defendida.

Não percebo (e gostaria que me esclarecesse, se quiser) é a alusão final a Hong Kong e a Singapura
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De daniel marques a 25.02.2008 às 08:53

Caro Luis Naves,

Concordo consigo na questão fundamental: Isto é o melhor que pode acontecer à Servia. Tese já provada no final da primeira guerra mundial com a Austria e a Hungria que ganharam estabilidade contra a perda de território.

Acho no entanto a sua intrepretação do papel do Hungaro errada:
- Não houve magiarização do Hungaro, houve uma reforma.
- A reforma do Hungaro partiu da necessidade de o modernizar face ao progresso cientifico e começou no final do sec. XVIII
- O hungaro como lingua oficial (1844) tem origem como afirma na onda de patriotismo mas em reacção ao Imperio que na altura era apenas austriaco. O imperio só se tronou austro-hungaro em 1867.
- o império já era multi-etnico e os hungaro falantes tornaram-se odiados não porque falavam Hungaro mas devido ao acordo bilateral com a Austria e, graças a esse acordo, se terem tornado senhores dos eslavos.
- A tentativa de magyarização posterior é já uma consequência do ganhar de poder dos hungaros onde já eram minoritários (Note-se que se considerarmos a globalidade da sua parte do imperio os hungaros eram maioritários (54%) ).
- A perda de 2/3 do territorio na sequencia da derrota na primeira guerra mundial nasce das correntes favoráveis à auto-determinação dos povos caras aos vencedores, nomeadamente a Wilson e foi apenas o apressar do inevitável.
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De Luís Naves a 25.02.2008 às 11:09

agradeço muito estes comentários. a referência final a Singapura e Hong Kong serve para sublinhar a questão do território e da perda relativa de importância da ocupação de espaço. Estas diuas cidades não precisam de território para assegurarem a sua prosperidade.
O comentário do Daniel corrige um parágrafo onde não fui tão claro. Uma pessoa que estudou este assunto disse-me que a magiarização foi muito extensa. Não sei se ele exagerou, mas penso que não. A magiarização empobreceu a língua no sentido de a tornar menos cosmopolita, portanto, fechando-se ao exterior e obrigando a uma mentalidade mais chauvinista (e era este o ponto). a impopularidade dos húngaros no final do século XIX não era obviamente linguística (aí não me fiz entender), mas tinha razões sociais. Mas a precisão do seu comentário coloca os factos no local correcto.
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De ncb@sapo.pt a 25.02.2008 às 22:15

O problema é se esta epidemia da recusa de "solidariedade nacional" para com as regiões mais pobres de cada Estado, começa a alastrar. Imaginem um fenómeno destes, em Portugal. Hoje é impensável, mas o porvir é decerto uma incógnita. Mas os media tudo podem, como, quando e onde quiserem.
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De boemundo a 26.02.2008 às 15:58

Perder o Kosovo é bom para a Sérvia? Genial!
O único problema é que os sérvios ainda não tiveram o privilégio de contactar com os seus doutos ensinamentos sobre a bondade dessa perda territorial, caro Luís Naves. Recomendo enviar para Belgrado doses maciças do seu post, para que todo o processo venha a passar-se na paz dos anjos.

Agora, a sério. Não podia estar mais em desacordo. Particularmente, quando escreve que só havia dois caminhos possíveis: "formalizar o facto consumado ou devolver o Kosovo aos sérvios. Qual dos dois era menos absurdo?".

Pois é, você mesmo classifica ambos os caminhos como absurdos. E defende aquele que, na sua opinião, será o menos absurdo dos dois. Já o disse no comentário a outro post. Não havia só dois caminhos. Havia, pelo menos, um terceiro: a partição.
Deste modo, a parte norte do território, maioritariamente habitada por sérvios, permaneceria na Sérvia. Resolveria pacificamente o problema? Não. Mas seria uma solução com um potencial de violência menor do que o menor dos "absurdos", por si defendido. Além de ser uma solução que reflectiria alguma equidade, conceito pelo qual você parece nutrir um ligeiro desprezo, no que toca à sua aplicação às relações internacionais.

Por fim, as suas observações sobre o carácter oitocentista e ultrapassado do "patriotismo" deixam-me banzado. Quer dizer, fica-se a perceber que, para si, o patriotismo que não presta é o patriotismo sérvio. Quanto ao patriotismo albanês kosovar, esse já é patriotismo hi-tech, à século XXI. E não me diga, por favor, que a vontade de auto-determinação dos albaneses do Kosovo não é patriotismo.
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De Luís Naves a 26.02.2008 às 17:03

Avisei que a leitura deste post era exigente e que aceitar a minha opinião não seria fácil. Quando a corrente vai num sentido apenas, é difícil argumentar. a partição é, possivelmente, o que vai seguir-se, mas isso não altera em nada o que escrevi. A partição será necessariamente mais violenta do que a independência. E não é preciso pensar muito tempo sobre isso: a partição obriga a uma limpeza étnica (Bósnia), enquanto a independência deveria servir para a impedir. Leia o post com atenção: a Sérvia perdeu um território atrasado onde nunca iria recuperar a soberania. Quanto aos patriotismos, leia o que está escrito. nunca escrevi que o patriotismo albanês seja hi-tech.
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De Luís Naves a 26.02.2008 às 17:09

aproveito para deixar uma pergunta: qual era a vantagem para a Sérvia de manter o Kosovo?
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De boemundo a 27.02.2008 às 21:00

Estamos de acordo numa coisa: a Sérvia nunca iria recuperar a soberania sobre o Kosovo. Soberania de facto, porque a de direito, como sabe, só a perderá quando a Rússia o permitir no conselho de segurança da ONU. Arriscando alguma futurologia, diria que tal sucederá lá para o dia de são nunca à tarde.

A diferença é que você parece comprazer-se com aquele facto consumado, enquanto eu o acho lamentável. A comunidade internacional afirma ter dado à Sérvia nove anos para negociar o estatuto do Kosovo. É falso: deu nove anos, sim, para a Sérvia negociar a independência do Kosovo, pré-determinada, pré-definida. Ou seja, nove anos para negociar coisa nenhuma, a não ser engolir o sapo de perder uma parte do território que os sérvios consideram o berço da nacionalidade.

Francamente, não o percebo quando diz que é difícil argumentar "quando a corrente vai num sentido apenas". É que vai mesmo num sentido apenas: o Kosovo independente custe o que custar e a Sérvia que se lixe. E a sua argumentação é, precisamente, mais um contributo para reforçar essa corrente que vai num sentido apenas.

Quanto à sua pergunta, sobre o que teria a Sérvia a ganhar em manter o Kosovo, recordo-lhe que não defendi nem defendo a devolução do Kosovo à Sérvia, mas apenas duma parte bem pequena do território, aquela em que os sérvios são maioritários. De qualquer modo, embora a premissa da sua pergunta me pareça duma inversão falaciosa, respondo-lhe. O que é que a Sérvia teria a ganhar recuperando o Kosovo? Território. Está na cara, não?

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