por Pedro Correia, em 29.11.07
No tempo em que na lua havia rios
Há aparições na tela que ficam para sempre gravadas na memória do cinema. Uma das mais inesquecíveis é a de Audrey Hepburn à janela do seu apartamento novaiorquino, de viola na mão, cantando uma melodia que Henry Mancini compôs para ela como se estivesse em estado de graça: “Moon River”.
Cantava num sussurro, ao jeito da bossa nova. Talvez não por acaso: nesse filme – Breakfast at Tiffany’s (1961) – ela representava uma “boneca de luxo”, pronta a rumar ao Brasil, onde daria um presumível golpe do baú. E chega até a pronunciar umas frases num português bem perceptível.
O golpe jamais se concretiza: Audrey troca a miragem da fortuna por um amante sem dinheiro. E em nenhuma outra actriz isso soava tão credível. Da novela ácida de Truman Capote, Blake Edwards fez uma deliciosa comédia romântica que ainda hoje parece não ter ganho rugas. Um filme só possível por incluir Audrey à cabeça do elenco: ela deixava sempre um rasto de fascínio na tela. Todas as películas que protagonizou perduram no subsconsciente do espectador.
O que havia nela de tão especial? Uma espantosa fotogenia que desafiava os padrões de Hollywood à época, sem dúvida. Mas, mais que isso, dela se poderá dizer o que Truman Capote escreveu sobre Holly Golighly, a rapariga de província que desembarca em Nova Iorque para satisfazer todos os sonhos: “Ele triunfava sobre a fealdade, o que tantas vezes é mais sedutor que a verdadeira beleza.” Como se o autor de Música Para Camaleões soubesse de antemão quem encarnaria a sua criação literária na adaptação para cinema.
Com aquela silhueta esguia e um par de olhos capazes de iluminar a escuridão de uma viagem ao fim da noite, Audrey Hepburn triunfou sobre a fealdade numa sucessão de obras-primas que a transformaram num dos maiores ícones da modernidade forjados nas salas de espectáculo. Quer fizesse de manequim (Funny Face, de Stanley Donen, 1957) ou de religiosa (A História de uma Freira, de Fred Zinnemann, 1959), em épicos como Guerra e Paz (de King Vidor, 1956), em westerns como O Passado não Perdoa (de John Houston, 1960) ou até em fitas de espionagem (Charada, outra vez de Donen, 1963). Milhões de jovens dos anos 50 imitaram-lhe o original penteado quando a viram cortar o cabelo numa cena de Férias em Roma (William Wyler, 1953), filme que lhe valeu o Óscar com apenas 24 anos. Lançaria uma nova mode de calçado baptizada com o nome da sua personagem ao interpretar Sabrina (Billy Wilder, 1954). E deu uma sofisticação sem par ao cockney londrino com a sua fabulosa Eliza Doolittle, em My Fair Lady (George Cukor, 1964).
“As pessoas julgam que uma estrela de cinema tem necessariamente um ego gigantesco. Na verdade, é essencial não ter ego nenhum.” São ainda palavras de Capote nesse tratado sobre as luzes e sombras da sedução que é Breakfast at Tiffany’s. Palavras que parecem aplicar-se em cheio à tocante fragilidade de Audrey, actriz mais etérea do que carnal, nos antípodas de várias divas suas contemporâneas, como Kim Novak ou Ava Gardner.
Tantos anos depois, é ainda o fio da sua voz que irrompe entre as nossas melhores recordações das noites de cinema: “Oh dream maker, you heart breaker, / Wherever you’re going I’m going your way...”
Onde quer que vamos, ela acompanha-nos. E se ela nos disser que existem rios na lua, nem por um instante somos capazes de duvidar.