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Os conflitos de interesse são uma coisa séria, mas não substituem a lei.
Agora é porque Montenegro tem uma empresa que no seu objecto social tem uma actividade que, em tese, pode beneficiar de uma alteração à lei.
É possível que a empresa beneficie disso? É.
É plausível que a empresa beneficie disso? Não.
Não, por várias razões, algumas directamente relacionadas com a natureza da lei (aplica-se a uma percentagem ínfima de terrenos, em circunstâncias muito condicionadas, com processos de decisão complexos e abertos, envolvendo muita gente), outras com a dimensão do escrutínio a que é sujeito Montenegro (e a generalidade dos políticos com mais notoriedade), que transformaria qualquer tentativa de beneficiar da lei numa actividade de elevadíssimo risco (uma imprudência, portanto).
Para além de que o facto que pode gerar mais valias já existia (a transformação de solo rústico em urbano é trivial no processo de planeamento), apenas se alteraram alguns (poucos, na minha opinião) procedimentos, dispensando burocracia inútil.
Dir-se-á que o conflito de interesses não depende de se materializar, é um risco que tem de ser acautelado.
Sim, é verdade, é por isso que não é ilegal haver conflito de interesses, pode ser politicamente desastroso, pode ser eticamente discutível, pode ser desaconselhado em circunstâncias concretas, mas o conflito de interesses não pode ser levado a um extremo tal que um agricultor seja impedido de ser ministro da agricultura, o que deve acontecer é que o conflito de interesses deve ser explícito, tão transparente quanto possível, mas só a materialização real ou com elevada probabilidade, é que deve ser sancionada.
Infelizmente, em Portugal, frequentemente os populistas não gostam de empresas e empresários e basta a mera posse de uma empresa para desqualificar alguém para o exercício de cargos públicos, com base em descrições de ligações que, frequentemente, são meros devaneios.
Elvira Fortunato é das cientistas portuguesas mais premiadas e consideradas, com uma grande capacidade de mobilização de recursos para as suas equipas de investigação (isso não é um defeito, é uma grande qualidade).
Temporariamente foi ministra, com a tutela da área da ciência (ainda bem, à partida, eu ficaria mais preocupado se a tivessem nomeado ministra das finanças).
No exercício do cargo tomou decisões que, evidentemente, em tese, podem beneficiar os seus grupos de investigação (por exemplo, se forem reforçadas as verbas para a investigação, em tese, os seus grupos de investigação aumentam as probabilidades de ter mais recursos).
Depois do exercício do cargo, voltou tranquilamente para a sua carreira de investigação.
Há conflito de interesse?
Sim, parece-me uma evidência.
Isso deve impedir ou condicionar fortemente a sua escolha para ministra com a tutela da ciência?
Não, parece-me uma evidência.
Que se escrutine as decisões de tomou e que se avalie em que medida os seus grupos de investigação (e, consequentemente, ela própria) foram desproporcionalmente beneficiados, acho natural e benéfico.
O que não faz o menor sentido é fazer coisa diferente quando em vez de ser um académico, um funcionário, ou um jornalista, está em causa uma pessoa que tem actividade privada ou faz (ou investe) em empresas.
Ou melhor, faz sentido para os populistas, para mais ninguém.
Sou funcionário do ICNF (e respectivos organismos antecessores na área da conservação) há tanto tempo que acho que este ano já me posso reformar sem penalizações por conta dos anos de serviço.
Tem sido uma carreira de altos e baixos, tanto mais que quando o nível das minhas dívidas para com a minha família, quando avaliada à luz do saldo mensal de receitas e despesas cá de casa, indicava que eu estava falido, pedia uma licença sem vencimento e ia para a actividade privada ganhar dinheiro para repor as contas a zeros.
Foi numa dessas alturas, em que finalmente a minha actividade privada começava a ser compensadora, isto é, ganhava dinheiro suficiente e escolhia que trabalhos queria fazer e os que não me interessavam, que recebi em casa um telefonema de uma amiga minha a perguntar-me se eu estava disponível para ser o seu Vice-Presidente do ICN (penso que era esse o nome na altura, à administração pública portuguesa tem um estranho fascínio pela mudança de nomes, visto que mudar a realidade dá mais trabalho) porque tinha sido convidada para ser sua Presidente.
Embora as dívidas não estivessem pagas, eu tivesse quatro filhos pequenos (entre os 10 e os 4, penso eu) e morasse a uma hora e meia de Lisboa, disse rapidamente que sim, porque o convite era de quem era (na condição de que entraria cedo, mas à hora de banhos e jantares estaria, de maneira geral, em casa, o que significava que saía de casa por volta das cinco e meia e procurava chegar, no máximo, às sete da tarde, o que geralmente acontecia), e a partir daí a minha carreira foi tendo três estados principais (com pequenas transições entre eles): ou era dirigente (ser Vice-presidente não chegou a um ano e meio, e foi uma experiência fascinante sobre a natureza humana, mas depois tive outros cargos de direcção muitas vezes); ou estava na prateleira; ou estava fora do ICN, a trabalhar no sector privado.
Numa das alturas em que era dirigente, encarregaram-me de coordenar a revisão do regime jurídico da conservação da natureza, razão pela qual sou (juntamente com Pedro Gama, um jurista externo escolhido pelo então presidente e que eu não conhecia) o principal redactor da primeira versão do regime jurídico da conservação da natureza (claro que com um apoio alargado de colegas meus do ICNF, num processo muito aberto e discutido).
O resultado não deve ter sido mau, visto que uma lei com a abrangência desta, com mais de 16 anos, tem uma rectificação quase imediata (pequenos erros, como falar em áreas classificadas quando se pretendia falar de áreas protegidas num artigo, por exemplo, quase de certeza resultantes de alterações de última hora, feitas pelos gabinetes governamentais, à proposta que saiu dos serviços, como é natural), uma alteração sete anos depois (decorrente das alterações o regime de ordenamento do território que obrigavam à actualização do diploma), outra no ano seguinte à primeira (decorrente da criação do Fundo Ambiental) e a última, mais sete anos depois (uma alteração conceptual e de substância que, parece-me, é fraquinha).
Ou seja, o teste do tempo parece demonstrar que as soluções jurídicas encontradas não eram más e eram mais ou menos aplicáveis, apesar das muitas inovações que o diploma original continha em relação ao regime anterior.
Várias dessas inovações são letra morta, porque a administração pública portuguesa tem a característica de achar que a lei é facultativa, e dentro dessas inovações estava a criação do Cadastro Nacional dos Valores Naturais Classificados, uma ideia trazida por Pedro Gama.
Internamente o conceito do cadastro foi imediatamente liquidado, quer porque as pessoas relevantes o consideraram redundante com o sistema de informação do património natural (SIPNAT), quer porque toda a gente, dentro e fora da administração, considera razoavelmente irrelevante haver um arquivo da informação com valor legal (citando o preâmbulo "Resumidamente, o SIPNAT é constituído pelo inventário da biodiversidade e dos geossítios presentes no território nacional e nas águas sob jurisdição nacional, enquanto que o Cadastro Nacional dos Valores Naturais Classificados - instrumento mais operacional -, é um arquivo de informação sobre os valores naturais classificados ou considerados sob ameaça pela autoridade nacional").
Estou convencido de que a maior dificuldade de aplicação das normas referentes ao Cadastro se prendem com a dificuldade em interiorizar a diferença entre um sistema de informação (cujo valor se esgota no conhecimento que contém) e um sistema de arquivo que fixa a informação com implicações legais (por alguma razão o conceito foi trazido para a lei por um jurista), reforçando a segurança jurídica (por exemplo, em caso de dúvida, onde estão os limites legais de uma área protegida, ou como se define legalmente o estatuto de ameaça de uma espécie, questões com implicações em várias normas, ao contrário do que acontecia anteriormente?).
Uma coisa é fazer tecnicamente a monitorização de uma espécie ou habitat, cujo resultado integra o sistema de informação do património natural, outra coisa é atribuir um estatuto de ameaça a uma espécie, que tem implicações na gravidade das sanções aplicáveis a quem execute acções que prejudiquem a sua conservação, não sendo, portanto, uma questão meramente técnica.
Naturalmente, os técnicos de conservação detestam a possibilidade de "não especialistas", por exemplo, um agricultor, contestar o estatuto de ameaça de uma espécie, socializando uma discussão que os técnicos consideram ser científica e técnica e os agricultores consideram ter uma dimensão administrativa e legal que pode condicionar a sua actividade.
O exemplo que uso sempre é o do lobo, uma espécie em expansão em toda a Europa, incluindo em Espanha, mas que "a ciência" insiste em dizer que há um oásis em Portugal que faz com que as populações de lobo portuguesas (que não existem biologicamente, visto que as populações portuguesas são uma parte administrativamente definida das populações ibéricas) não se expandam como no resto da Europa, não respondendo à renaturalização que ocorre por abandono agrícola, com expansão das populações presa do lobo.
O artigo 29º do diploma original é claro no que se pretende e nos mecanismos para retirar ou integrar valores no cadastro, pelo que me dispenso de mais referências, o que me interessa é que o diploma é de 2008 e, para além da previsão de actualização a cada quatro anos, o artigo 52º (que se mantém integralmente em todas as versões posteriores, como aliás todas as normas referentes ao cadastro) determina que o primeiro cadastro seja eleborado em dois anos, isto é, esteja publicado em 2010.
Até hoje, em 2025 (mais de 14 anos depois do prazo legal), o que se pode dizer é que entrará em discussão pública por estes dias (Aviso n.º 4022/2025/2, de 11 de fevereiro, o que quer dizer que a discussão pública se inicia no dia 21 de Fevereiro), depois de há mais de três anos ter estado igualmente em discussão pública, sem que se conheça o resultado.
Não quero fazer comentários sobre o conteúdo do documento que esteve em discussão pública (desconheço o actual) e hoje não tenho o interesse que em tempos tive na discussão destes documentos estratégicos (com efeitos legais ou de gestão) por ter consciência de como são, frequentemente, impenetráveis à realidade, mas gostava que este processo desse algum resultado prático.
Almocei esta semana com um bom Amigo cá da minha terra. Um homem íntegro, jurista como eu, conquanto navegando as águas do PS. Como sempre digo, a "democracia" é um termo constante do dicionário e ser civilizado uma característica de algumas (poucas) pessoas. E assim, entretanto, ele levantou a questão da extrema urgência da reforma judicial.
Respondi-lhe mais ou menos deste jeito:
Que a III República, consolidada a liberdade de expressão e de voto, nunca foi dada a reformas, não obstante os seus provectos 50 anos; e muito mais agora, depois das invenções de composição parlamentar de António Costa. A agravar a situação, os partidos emergentes, as divisões à direita.
Mais apontei: o Chega e o seu discurso; a IL, posta num muito instável equilíbrio, em que não lhe sobra tempo senão para se desmarcar de uns e de outros; a ponderada aliança entre sociais-democratas e democratas-cristãos, destituída de força ante os demais presentes, que à esquerda intentam colá-la aos rapazes do Ventura; e as manigâncias do PS, o braço mercantil da Maçonaria, tão lucrativa do status quo vigente.
De tudo resultando a desmontagem do Chega, afinal um coito de malandros no espectro amplo que vai dos Direitos Civil e Comercial ao Criminal puro. O que é excelente... Até aos intestinos da IL, tratados em Congresso, passando pela bronca denominada Tuti-Fruti. A infeliz AR não dispõe de tempo para mais.
É claro, a Esquerda extremista, sempre unida, só não é problema porque nunca será solução viável. Afinal, Rui Rio teria as suas razões: entre sociais-democratas e socialistas moderados descobrir-se-ia a solução...
Acontece somente não haver nem sociais-democratas nem socialistas moderados. Apenas há interesses. E nisto - insisti - consiste a III República. - Reformas? - esqueça, meu Amigo.
Ele aquiesceu. E calou.
A conclusão: o anseio de uma IV República, limpa, higienizada, aberta à discussão do Regime. Talvez o trampolim para uma Monarquia em que Portugal saiba ser próximo das congéneres europeias. Bendizendo todos nós...
"Também denunciou um jovem funcionário à polícia por este ter assinado um email interno com a expressão "from the river to the sea" (uma frase popular das manifestações pró-Palestina, que clama pela libertação da população entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo, mas que tem sido interpretada pelo Governo alemão como apleoo ao fim do Estado de Israel".
Cara Ana Teixeira Pinto, crítica de arte que gasta uma página inteira do Público a protestar pelo que chama "Combater o anti-semitismo cultivando o fascismo", não é só o governo alemão que interpreta o slogan "Free Palestine from the river to the sea" como sendo uma reivindicação da destruição do Estado de Israel, são também os seus autores e muitas outras pessoas.
A wikipedia ajuda "In the 1960s, the Palestine Liberation Organization (PLO) used it to call for what they saw as a "decolonized" state encompassing the entirety of Mandatory Palestine.[6] By 1969, after several revisions, the PLO used the phrase to call for a single democratic state for Arabs and Jews, that would replace Israel and the occupied territories ... Many pro-Palestinian activists consider it "a call for peace and equality" after decades of military rule over Palestinians, while for many Jews it is seen as a call for the destruction of Israel.[7] Hamas used the phrase in its 2017 charter. Usage of the phrase by such Palestinian militant groups has led critics to say that it advocates for the dismantling of Israel, and the removal or extermination of its Jewish population.[8][7] Some countries have considered criminalizing its use as an antisemitic call for violence. ... Hamas, as part of its revised 2017 charter, rejected "any alternative to the full and complete liberation of Palestine, from the river to the sea", referring to all areas of former Mandatory Palestine and by extension, the end of Jewish sovereignty in the region.[3][37][38][39] Palestinian Islamic Jihad declared that "from the river to the sea – [Palestine] is an Arab Islamic land that [it] is legally forbidden from abandoning any inch of, and the Israeli presence in Palestine is a null existence, which is forbidden by law to recognize.[40] Islamists have used a version "Palestine is Islamic from the river to the sea".".
Sim, alguma direita israelita usa o mesmo slogan, exactamente no sentido oposto, isto é, de defesa de um Estado israelita from de the river to the sea, o que manifestamente é sonsice é pretender que a frase é uma mera frase inócua que defende a liberdade de toda a gente que vive entre o rio Jordão e o Mediterrâneo.
Eu também acho que qualquer pessoa deve poder usar esta expressão, no sentido que entender, mas isso é porque eu defendo a liberdade de expressão, seja qual for a expressão, não é, como pretende Ana Teixeira Pinto, porque a frase é uma frase inocente e fofinha.
Desde tenra idade que nutro especial gosto por jornais, revistas, jornalismo e pelo mundo editorial em geral. Foi por isso para mim uma boa surpresa a descoberta tardia de Jacinto Ferreira (1906 – 1995) e do Jornal “O Debate” que fundou e que se veio a tornar numa referência entre os muitos portugueses que não se conformavam com a cristalização da república que o Estado Novo ia promovendo depois dos anos aziagos da Primeira República. Nesse sentido, a Real Associação de Lisboa através da sua Chancela “Razões Reais”, associada à família do indómito monárquico, promoverá no próximo dia 14 de Fevereiro pelas 18:30 no Grémio Literário o lançamento da Antologia “Deus Pátria Rei” que contará com a apresentação do Prof. Manuel Braga da Cruz.
De facto, a resistência monárquica em Portugal teve, ao longo dos últimos mais de cem anos, muitos rostos que correm o risco de serem esquecidos pela História. O que queremos com esta antologia é prestar homenagem a um dos mais importantes protagonistas dessa luta, Jacinto Ferreira, que com o seu pensamento e escrita pautou toda uma geração de monárquicos.
Do muito que escreveu, chamou-nos a atenção este trecho tão realista, aos nossos dias uma verdade dura como punhos: «A doutrinação é a pedra angular de toda a actividade política, não só porque ela contém em si a garantia da expansão de princípios, como também porque só mediante ela é possível criar vontades decididas e convicções capazes de dar corpo aos princípios abraçados. É da adesão das inteligências mais do que das inclinações sentimentais, que há-de resultar a profunda transformação em geral desejada e considerada indispensável para a redenção de Portugal» (Fevereiro de 1956).
Foi imbuído nesse ideal que, com persistência e arrojo, Jacinto Ferreira por ocasião da Revisão Constitucional e da morte do Marechal Carmona em 1951, quando subitamente era recolocada na agenda a questão do regime, fundou o jornal “O Debate”, o mais relevante órgão de comunicação monárquico do século XX, que subsistiu com grande tiragem até 1974. Idealista e lutador, fiel ao ideário integralista, senhor de uma inusitada independência, o cientista e Professor Catedrático da Escola Superior de Medicina Veterinária jamais poupou forças na dedicação à Causa Monárquica, de que são testemunho as páginas deste livro, cujos textos surpreenderão todos aqueles que pensam que não havia debate e confrontação de ideias dentro do regime. Quantas vezes alvo de censura, “O Debate” promovia uma intensa disputa de ideias e opiniões sobre os mais variados temas políticos em agenda na época, realçando sempre com a bandeira realista e proclamando a lealdade à Casa de Bragança na pessoa do Senhor D. Duarte Nuno.
Nestes tempos de exacerbado individualismo, «pobre é quem não tem a quem servir», um empreendimento gratuito, uma utopia que dê sentido e ilumine mais fundo uma existência inevitavelmente árdua. Deus, Pátria e Rei foram esse sentido para Jacinto Ferreira, tornando as suas horas extra dedicadas a “O Debate” um contributo que se revelou fundamental para que possamos aos dias de hoje manter viva a nossa Causa Real. Neste livro, com prefácio de Manuel Braga da Cruz, em quase 400 páginas encontram-se alguns dos seus textos mais significativos, que a chancela Razões Reais publica com orgulho e cujo lançamento a todos se convida presenciar.
Publicado originalmente aqui
O título do post é o título de uma música do Grupo de Acção Cultural Vozes na Luta, do album Pois canté! (expressão que ainda ouvi em conversa comum, mas que duvido que hoje ainda seja usada por alguém), e que tem uns versos que me interessam "Senhores sou mulher de trabalho/ E falo com poucas maneiras/ Porque as maneiras/ São como a luva que calça o ladrão".
Apesar do GAC ser do melhor da música portuguesa, é possível que haja muita gente que o desconheça completamente (para mim é incompreensível como as rádios se esquecem de discos como o Pois canté!) e portanto não saibam que era um colectivo muito dinâmico, sempre com gente a entrar e sair (com alguns dos fundadores a sairem antes mesmo do seu primeiro disco), típico do Processo Revolucionário em Curso de 1974 e 1975, com um traço comum: sempre, sempre pela revolução e contra o sistema capitalista (outros versos para explicar melhor o ponto de vista "Senhores, sou mulher de trabalho/ Estou farta dessas brincadeiras/ São só maneiras/ De nos prenderem com outro cangaço".
Vem isto a propósito de uma conversa que tem como base a confusão de Elon Musk entre a Gaza do Médio Oriente e Gaza, em Moçambique, que se pode ver neste video.
As maneiras de todos os envolvidos, ou mais precisamente, a falta de maneiras, gera imediatamente anti-corpos de gente educada, quer tenha quer não tenha qualquer simpatia por Trump e a sua administração.
A pessoa através da qual cheguei a este vídeo, comentava, com razão, aliás, que se se visse "um comissário europeu nestes preparos, ao lado de Von der Leyen, logo diriam "A Europa morreu!"", só que este ponto de vista, estimável, parece esquecer que os preparos, ou as maneiras, são estas exactamente para deixar claro que o "sistema morreu" porque no poder está o anti-sistema.
Claro que dizer que a administração norte americana é anti sistema é uma contradição nos termos, evidentemente, Trump é tão da situação como Obama, mas a sua comunicação política é feita com o objectivo de negar esse facto e é por ser eficaz nessa negação que ele ganha eleições.
As maneiras, neste caso, sendo, para mim, deploráveis, servem o propósito de dizer que o sistema está a ser desmantelado.
E, já agora, a resposta de Musk à referência ao enorme disparate dele, confundindo Gaza com Gaza, serve exemplarmente os objectivos pretendidos: há uma asneira minha, deve ser corrigida, nós vamos fazer muitas asneiras o que queremos é corrigir rapidamente as asneiras, mas no essencial, estamos a ir no sentido certo.
O que este tipo de respostas representa de corte comunicacional com o "fumei mas não inalei" habitual do sistema está perfeitamente alinhado com o corte nas maneiras de se apresentar no espaço público.
"Há um malfeitor chamado Nethanyau que considera que matar dezenas de milhares de mulheres e crianças é um mal menor para exterminar quem assassinou israelitas. Justiça? Nada disso!Na mortandade não quer jornalistas, nem poupa escolas ou hospitais ou sequer ajuda humanitária. É a lei da tábua rasa. E basta ser palestiniano para ser criminoso.
Agora, milhares de prédios destruídos , mais de 50.000 mortos, crianças traumatizadas para a vida, não é que Gaza é inviável? Ups, que surpresa! A culpa, claro, só pode ser do Hamas, eleito pelos palestinianos de Gaza. Hamas é uma força política, não me refiro às forças armadas, nem defendo o que fizeram e ainda estou para perceber como foi possível.
Levar Nethanyau ao Tribunal Internacional e os raptores dos israelitas? Que nada! O melhor mesmo é acabar com os palestinianos. Leva-los de vez para fora da sua terra e fazer negócio imobiliário. Viva Grande Israel que de anexação em anexação atinge a vitória final. E enquanto prepara o resort para a Trump Tower em Gaza vai infernizando a Cisjordânia…
Resoluções da ONU? Acordo de Camp David? Tudo deitado para o lixo por Israel. Como pode a Palestina e os árabes em geral ter esperança?".
Depois de muita insistência minha, lá apareceu a argumentação, seguindo a cartilha habitual descrita por Jorge de Sena: "este heroísmo, este horror, foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha há mais de um século e que por violenta e injusta ofendeu o coração de um pintor chamado Goya, que tinha um coração muito grande, cheio de fúria e de amor".
O que me interessa assinalar sobre este assunto, pleno de gente de coração muito grande, cheio de fúria e de amor, que se ofende com qualquer coisa entre mil acontecida em Gaza, por violenta e injusta, é que o quotidiano dos dois milhões de reféns que o Hamas mantém em Gaza, não entram nessa argumentação.
A vida concreta destes dois milhões de reféns que o Hamas mantém e tenciona manter em Gaza não diz nada a estes corações muito grandes, cheios de fúria e amor.
A ideia que às mães de Gaza não se aplica o que Sting escreveu sobre as mães russas, no tempo da guerra fria, é uma ideia largamente expandida, por mais estúpida que seja, como é: "There is no monopoly on common sense/ On either side of the political fence/ We share the same biology, regardless of ideology/ Believe me when I say to you/ I hope the Russians love their children too".
O erro histórico das potências coloniais e da comunidade internacional confundindo os grupos detentores de armas com o seu povo levando, por isso, à entrega do poder absoluto a esses grupos, pensando que o devolviam aos povos colonizados, é um erro que temos dificuldade em corrigir, e continuamos a insistir nele, por exemplo, no Médio Oriente, onde a ONU tem mais resoluções contra o único país em que o poder muda sem ser pela força das armas que contra todos os outros em que o poder assenta no poder das armas, isto é, não é removível sem ser pela força.
E as vítimas, como sempre, são os mais pobres e frágeis, no caso, os dois milhões de reféns que o Hamas mantém em Gaza, a quem não reconhecemos a dignidade mínima para exigir que, os que quiserem, devem ter o direito de ir tratar da sua vida e dos seus filhos noutro lado qualquer.
Dois milhões esses que estão totalmente ausentes das preocupações de grande parte desses grandes corações cheios de fúria e amor, como se demonstra pela citação inicial.
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo, estava a multidão aglomerada em volta de Jesus, para ouvir a palavra de Deus. Ele encontrava-Se na margem do lago de Genesaré e viu dois barcos estacionados no lago. Os pescadores tinham deixado os barcos e estavam a lavar as redes. Jesus subiu para um barco, que era de Simão, e pediu-lhe que se afastasse um pouco da terra. Depois sentou-Se e do barco pôs-Se a ensinar a multidão. Quando acabou de falar, disse a Simão: «Faz-te ao largo e lançai as redes para a pesca». Respondeu-Lhe Simão: «Mestre, andámos na faina toda a noite e não apanhámos nada. Mas, já que o dizes, lançarei as redes». Eles assim fizeram e apanharam tão grande quantidade de peixes que as redes começavam a romper-se. Fizeram sinal aos companheiros que estavam no outro barco, para os virem ajudar; eles vieram e encheram ambos os barcos, de tal modo que quase se afundavam. Ao ver o sucedido, Simão Pedro lançou-se aos pés de Jesus e disse-Lhe: «Senhor, afasta-Te de mim, que sou um homem pecador». Na verdade, o temor tinha-se apoderado dele e de todos os seus companheiros, por causa da pesca realizada. Isto mesmo sucedeu a Tiago e a João, filhos de Zebedeu, que eram companheiros de Simão. Jesus disse a Simão: «Não temas. Daqui em diante serás pescador de homens». Tendo conduzido os barcos para terra, eles deixaram tudo e seguiram Jesus.
Palavra da salvação.
Rolão Preto viveu perigosamente o século XX. Foi homem de paradoxos: nos ficheiros da PIDE chamavam-no o "comunista branco" e o mesmo falava em fazer uma monarquia do "rei com os sovietes". Não há qualquer contradição no pensamento de Rolão Preto, porquanto dentro das possíveis antinomias existe congruência. A revolução era o mecanismo necessário para voltar à tradição, fazendo justiça à etimologia deturpada, afinal "revolutio" significa voltar ao ponto de partida: a monarquia. Discípulo de Sorel e do nacional-sindicalismo, da Politique d'Abord de Maurras, soube inovar dentro dos movimentos clássicos da contra-revolução.
Na biografia ficaram as andanças pelo Integralismo e pela Monarquia do Norte, perseguido na Primeira e na Segunda República (condecorado na Terceira); improvisando uns gestos fascistas com os Camisas Azuis e o nacional-sindicalismo nos anos 30 e, nos anos 50, ainda apoia o desventuroso Delgado (mais por estratégia oposicionista do que convicção, acredito). Foi quase um Dom Quixote rumando contra os moinhos de vento da História; homem de altos ideais e convicções, ainda que nem sempre perceptíveis, mas sempre combativo e procurando a originalidade.
Foi talvez o produto de um tempo de revolução que quis "viver perigosamente" e radicalmente, como denotam as palavras ao encerrar uma entrevista dada depois da revolução de 1974. Poucos hoje já seriam capazes de assumir com tanta frontalidade as ideias, de forma tão ousada e tão radical, era outro tempo certamente:
"Nós fomos os mais revoltados possíveis no nosso tempo. E todavia quando foi preciso contribuímos com o nosso esforço, sofremos, fomos para a cadeia. É preciso que os novos estejam dispostos a ir para a cadeia. É preciso que sofram e saibam sofrer, como as outras gerações sofreram."
Conclui:
"Em nome de uma coisa, chamada a comunidade portuguesa."
A propósito do meu post de ontem, acabei envolvido em discussões desagradáveis com pessoas que se acham moralmente superioras e campeões do humanismo, como é frequente sempre que se fala do Médio Oriente.
Acontece que a esmagadora maioria do humanismo militante a propósito do Médio Oriente consiste, na prática, em condenar milhões de pessoas a uma vida de inferno, dominada por grupos armados sanguinários, financiados por Estados promotores do terrorismo e que a ONU condena muito menos que a única democracia da região, Israel.
Para além de ser a única democracia da região, um quinto da sua população tem origem árabe, enquanto as comunidades judaicas da região, que eram muitas e muito distribuídas até ao fim do império otomano, desapareceram todas dos sítios onde tinham as suas raízes há séculos.
O resultado prático do humanismo da ONU foi transformar 600 mil refugiados em cinco milhões, o que seria o menos se houvesse qualquer horizonte de vida razoável para esses cinco milhões de pessoas, só que não é assim, a ONU e a comunidade internacional não oferecem a esses cinco milhões de pessoas qualquer horizonte de vida razoável, preferindo continuar a insistir numa miragem de retorno a mundos e sítios que já não existem (é irrelevante se esse processo histórico foi justo ou injusto, a realidade nem sempre é justa e a persistência em mitos sobre mundos perfeitos tem custado milhões de vidas, historicamente) e, com isso, transformando esses cinco milhões de pessoas em reféns de grupos armados totalitários.
Ora Trump veio dizer duas coisas: precisamos de um horizonte de sustentabilidade económica e, para isso, precisamos de permitir a estas pessoas refazerem as suas vidas noutro lado qualquer.
Trump não falou de deslocações forçadas, nem de limpeza étnica, mas como é costume nele, fez um discurso hiperbólico e fanfarrão, que se presta a muitas interpretações.
Se a ONU, e o seu secretário-geral, quisessem preservar um mínimo dos mínimos de credibilidade como árbitro imparcial, teria comentado a proposta realçando as suas dificuldades práticas de execução, que são muitas, e clarificando que quaisquer que fossem as opções, estaria sempre fora de causa qualquer deslocação forçada de populações (embora, à ONU, e ao seu secretário-geral, não pareça incomodar muito que dois milhões de pessoas, em Gaza, sejam reféns de um grupo armado totalitário, que a ONU se recusa a classificar como um grupo terrorista).
Maria João Guimarães, uma jornalista do Público que escreve sobre o médio oriente com o rigor e a insenção com que Joana Gorjão Henriques escreve sobre a polícia ou Rafaela Burd Relvas escreve sobre o mercado de habitação, tem uma peça, na quinta-feira, dia 6, em que cita (não sei com que rigor) um antigo diplomata israelita.
"a falta total de detalhes do plano: não há referência a questões legais: com base em que poder ou autoridade podem os Estados Unidos tomar o controlo de Gaza? Logística: como se recolocam 2 milhões de pessoas, a maioria das quais não quer sair? Política: quem irá gerir o processo? Financeira: quem irá financiar esta tarefa monumental? Regional: a maioria dos países árabes já rejeitou a ideia com veemência."
São questões relevantes e muito interessantes, mas são independentes da proposta de Trump, quaisquer que sejam as decisões que se tomem sobre Gaza, não sabemos com que base ou autoridade pode, seja quem for, tomar o controlo de Gaza (o que na prática significa a manutenção do status quo, a tomada de 2 milhões de reféns por parte de um grupo armado totalitário), não sabemos onde colocar os 2 milhões de habitantes de Gaza (visto que o status quo é a manutenção de dois milhões de pessoas num território sem qualquer viabilidade económica e social, a viver em condições miseráveis sob o terror de um poder ilegítimo e brutal), não sabemos quem irá gerir o processo, seja que processo for decidido, não sabemos quem irá financiar a reconstrução de Gaza (nem muito menos sabemos como refazer uma base económica sustentável nas condições actuais em que vivem aqueles 2 milhões de reféns do Hamas) e sabemos, pelo histórico, que os países árabes se opõem, desde há décadas, à integração de palestinianos nas suas sociedades.
Ou seja, as dificuldades não são da proposta de Trump, as dificuldades são da realidade.
O que é desumano não é admitir que é bem melhor para todos que o máximo possível de pessoas possam refazer a sua vida noutro lado qualquer (não sei onde vai o diplomata israelita buscar a informação de que a maioria dos palestinianos não quer sair de onde está, mas mesmo que seja verdade, continua a haver centenas de milhar de candidatos a ir refazer a sua vida noutro lado qualquer, e são esses que devem ser apoiados a fazê-lo, em vez de lhes cantar cânticos heróicos sobre a sua presença ancestral num mundo que já não existe), o que é desumano é a piadola do representante da Palestina na ONU, Riyad Mansour: "Para aqueles que querem enviar o povo palestiniano para "um lugar simpático", permitam que possam voltar às suas casas originais, onde é agora Israel", isto é, contrapondo uma coisa que sabe ser completamente irrealista (nem os cinco milhões de refugiados, sequer, cabem nas casas dos seiscentos mil refugiados originais, se se pretender manter este registo de stand-up comedy) e cujo resultado prático está à vista: cinco milhões de vítimas sem qualquer perspectiva de vida que não passe pelo ingresso em grupos armados como forma de garantir a sua, e da sua família, subsistência.
Se tudo o resto falhasse, se não funcionasse nada do que é proposto seja por quem for, o facto é que se um milhão de palestinianos tivesse a oportunidade de sair daquele inferno para tentar ter uma vida normal noutro lado qualquer, se metade dessas tentativas falhassem, isso significaria melhorar a vida de meio milhão de pessoas.
Isso sim, é humanismo, tudo o resto é exibicionismo moral.
Trump propôs que se olhasse para o futuro económico da faixa de Gaza o que, na sua opinião, implica dar aos palestinianos a oportunidade de fazer a sua vida noutro lado qualquer do mundo.
Pode-se discutir a praticalidade desta ideia, partindo da sua mais que óbvia dificuldade: a existência de sítios para onde as pessoas que queiram sair de Gaza possam ir.
Convenhamos que a praticalidade desta ideia não é menor que a praticalidade das ideias alternativas em que a comunidade internacional tem gasto milhões, há décadas, sem resultados concretos que permitam a cada um dos palestinianos viver a sua vida em paz e sossego.
O que está em causa não é a deportação forçada de pessoas, o que está em causa é dar oportunidade para que muitos palestinianos possam escolher outra vida, noutro local (li algures que, antes da guerra, 45% dos habitantes de Gaza gostariam de emigrar, se pudessem, mas não verifiquei esta informação, se a uso é porque me parece intuitiva a ideia de que muitos pais preferem ter filhos vivos a honrarem a memória de heróis).
Para ser ter uma ideia, os palestinianos em Gaza serão cerca de dois milhões e qualquer coisa, e os palestinianos em Israel são cerca de um milhão e qualquer coisa, ou seja, 50% da população de Gaza, demonstrando que é possível, mesmo num território minúsculo como o de Israel, integrar (com problemas, sim, mas integrar) milhares de palestinianos.
Se aos palestinianos de Gaza for dada a liberdade de emigrar, não para serem postos em campos de refugiados, mas para viverem vidas normais onde quiserem (incluindo Gaza, no caso dos que querem ficar, que serão muitos, com certeza), é bem possível que a se abram, em Gaza, oportunidades de desenvolvimento que, por sua vez, abram oportunidades para a diminuição das tensões.
Ao contrário do que se vai lendo por aí, a proposta de Trump (esqueçamos os arrebiques com que Trump gosta de enfeitar o que diz) é uma proposta decente e razoável, embora com imensas dificuldades práticas (mesmo tendo em atenção que Canadá e Austrália já manifestaram disponibilidade para acolher palestinianos nos seus países).
Se alguém tiver dúvidas, abram inscrições para emigração.
Ou perguntem às mães de Gaza.
Não li nenhuma das peças processuais sobre o caso Odair Moniz, portanto não sei exactamente o que está descrito na acusação.
Este post não é, consequentemente, sobre a substância do caso, mas sobre os vampiros que caem sobre uma tragédia para dela retirar dividendos, isto é, para fazer avançar as suas agendas sociais (sejam elas partidárias ou não).
Do que li, parece-me evidente (volto a dizer que não tenho acesso a informação primária) que há uma tragédia para todos os directamente envolvidos.
Em primeiro lugar para Odair Moniz e a sua família, evidentemente, porque a morte é sem remissão, mas também para o polícia que faz os disparos e que tem a sua vida profissional profundamente afectada e carregará para o resto da vida o peso de uma morte pela qual é responsável e que, de acordo com o que li, teria sido evitável.
Parece-me claro que há uma situação perigosa que se descontrola, nem Odair, nem o polícia queriam, evidentemente, o resultado que acabou por acontecer, e é normal que a justiça procure atribuir responsabilidades e a sociedade discuta como se podem reduzir os riscos de situações deste tipo se descontrolarem.
O que não entendo, não entendo mesmo, e me faz não ter o menor respeito pela quantidade de agentes políticos e sociais que cavalgaram esta situação para fazer progredir as suas agendas, sejam elas de limitação da capacidade da polícia (ou do seu reforço), de anti-racismo, anticapitalistas ou de mera sinalização de virtude.
De entre os muitos que usaram, e usam, esta tragédia para fazer avançar as suas agendas, escolho o exemplo de Joana Gorjão Henriques, uma activista a quem o Público entrega espaço para contrabandear propaganda anti-racista disfarçada de jornalismo.
O Observador descreve (não sei com que rigor, não li a acusação, mas parece-me que com alguma plausibilidade), a situação da seguinte forma:
"Já com os dois PSP fora do carro, os agentes rodearam Odair com a intenção de algemá-lo, mas tiveram resistência. “Os dois agentes da PSP tentaram imobilizar Odaír Moniz e o arguido empurrou-o”. É então que acontecem as primeiras bastonadas. Na sequência da tentativa falhada de imobilizar o fugitivo, o agente que acompanhava o PSP constituído arguido, “com recurso a um bastão extensível”, desferiu um golpe nas pernas de Odair. O golpe de bastão seria repetido pelo agente que disparou depois, ao que o fugitivo respondeu com um pontapé nas costas.
Foi nesse momento, já depois de Odair se ter afastado, que o polícia fez dois disparos, para o ar. Os tiros de aviso não travaram o fugitivo, que acabou por aproximar-se do agente que ainda tinha a pistola na mão. Os dois envolveram-se num confronto e, depois de ser esmurrado na cabeça por Odair, o agente atingiu, pela primeira vez, o cabo-verdiano “na zona anterior esquerda do tórax”, a uma distância entre “20 e 50 centímetros”.
Tendo Odair permanecido de pé, o agente, a uma distância entre “75 centímetros e 1 metro”, fez um novo disparo que atingiria o cabo-verdiano “na zona genital e na perna direita”. O segundo tiro provocou a queda de Odair, que ainda viria a ser atingido, com um bastão, pelo agente que acompanhava o autor dos disparos".
Mesmo dando de barato alguma estranheza na forma como alguns pormenores são descritos, parece claro que há uma tentativa de detenção, Odair resiste violentamente, agride os polícias, e no calor do confronto, há os disparos mortais.
Vejamos agora como a activista Joana Gorjão Henriques descreve a mesma situação, a partir dos mesmos documentos, no que o Público acha que é informação de referência:
"Nestes 43 segundos, de acordo com o que é descrito na acusação do Ministério Público, Odair Moniz foi empurrado duas vezes, levou duas bastonadas, foi agarrado para ser manietado duas vezes e foi alvo de dois disparos; por sua vez, enquanto tentava libertar-se de ser manietado, deu um pontapé e um murro ao polícia, agora arguido".
De acordo com Joana Gorjão Henriques, os 43 segundos que refere é o tempo que vai de Odair ter começado a oferecer resistência violente (fugir da polícia e não acatar ordens não são formas de resistência que podem envolver violência e risco, parece sugerir Joana Gorjão Henriques) até ser baleado e, pela sua descrição, o que se passou foi que dois polícias andaram a empurrar e bater num senhor que, ao tentar libertar-se, deu um pontapé e um murro num dos polícias, tendo havido dois tiros, um dos quais mortal, sabe-se lá porquê.
O que eu queria dizer era mesmo só isto: não tenho o menor respeito, mas o menor respeito, por quem usa tragédias para ter ganhos de causa no que defende, não tendo o menor problema em ajeitar os factos para que sirvam os seus preconceitos.
Nenhum respeito.
Há uns dias (a peça jornalística está morta, mas as peças jornalísticas, ao contrário das pessoas, ressuscitam facilmente), o Observador (mas podia ser outra secção de política de qualquer rádio, TV, disco e cassete pirata) deu destaque a uma coisa feita por duas pessoas com carteira de jornalista que se intitulava "Quezílias, exonerações e uma inusitada mudança de gabinete. Ministra da Cultura provoca embaraço no Governo".
Não faço a menor ideia se Dalila Rodrigues é quezilenta, se as exonerações são razoáveis e, muito menos, se é uma boa ministra da cultura (eu nem sei bem que critérios usar para essas classificações, a não ser a minha percepção das coisas, é por isso que os governos se escolhem a partir das percepções dos eleitores e não através de empresas de recrutamente de recursos humanos), nem estou muito interessado nessa discussão, quero mesmo discutir se a dita peça jornalística é jornalismo ou conversa de comadres.
O lead da notícia é o seguinte: "Dalila Rodrigues saiu do Campus XXI, sede do Governo, para regressar ao Palácio da Ajuda. Não gostava do espaço e precisava de "respirar". Recebeu ordens para voltar. Perfil conflituoso preocupa.".
Ou seja, o Observador, da quantidade de "diz que disse" de que é feita a notícia, escolheu destacar a saída de Dalila Rodrigues do Campus XXI, que descreve, no lead, como um facto.
A peça jornalística, no entanto, não confirma o lead.
"um episódio com contornos algo bizarros ia deixando António Leitão Amaro, ministro da Presidência, de cabelos em pé ... Dalila Rodrigues e demais equipa mudaram-se de armas e bagagens para o Campus XXI e por lá ficaram uns tempos — até que a própria ministra mudou de ideias. Numa decisão que terá sido unilateral, a governante reuniu a equipa e decidiu regressar a um Palácio da Ajuda já despido de mobília, de computadores e de serviços de apoio, e sem condições objetivas para receber o Ministério. Decisão que causou enorme estranheza junto de alguns elementos do Governo e do partido".
A mim, o que me causa estranheza é uma situação destas ter sido impossível de confirmar pelos jornalistas.
Não há secretárias, não há pessoas que contactam com o ministério da cultura, não há funcionários que trabalham no palácio da Ajuda, não há motoristas, não há membros do gabinete, não há assistentes operacionais, não há jornalistas e assessores de imprensa, não há vizinhos, não há empresas de mudanças, não há seguranças, quer do edifício da João XXI, quer do palácio da Ajuda, nada, nem uma pessoa que confirme que do dia tal ao dia tal, a cúpula do Ministério da Cultura se mudou, de armas e bagagens, do edifício da João XXI para o palácio da Ajuda?
Para este jornalismo isso é uma coisa irrelevante: "Numa troca de emails com o Ministério da Cultura, o Observador perguntou três coisas muito concretas: é verdade que a ministra saiu, em algum momento, do Campus XXI para se reinstalar no Palácio da Ajuda?; quem é que avisou dessa decisão?; e regressou do Palácio da Ajuda porquê? O Ministério da Cultura preferiu não responder a essas três questões e enviou uma nota onde diz, genericamente, que o Ministério da Cultura “está sediado e trabalha normalmente a partir do Campus XXI”".
Está feito, os jornalistas confiam em fontes anónimas que lhe sopraram a história, fazem umas perguntas, o ministério responde o que entende, mas o jornalistas fazem notar que não negaram a história, logo, por omissão, a história está confirmada, mesmo que tendo toda a cúpula de um ministério mudado de um sítio para outro (onde já não havia qualquer infraestrutura de apoio, desde computadores e rede informática a secretárias e cadeiras), os jornalistas não encontrem uma única fonte identificada que a confirme.
Em toda a peça só há fontes anónimas (não, não é numa matéria em que identificar a fonte represente qualquer risco para a fonte) e nada, rigorosamente nada que confirme os adjectivos e opiniões de que os jornalistas se vão aliviando, quer em relação ao caso que o lead destaca, quer em relação ao resto.
Se isto é jornalismo, eu sou a Brigitte Bardot (nos seus tempos áureos).
Para uma visita rápida às entranhas da administração pública, pode-se, por exemplo, ler este artigo de Tiago Rebelo de Andrade.
Infelizmente termina como é habitual: "Se quisermos mudar este cenário, é fundamental promover uma reforma profunda no sistema de licenciamento em Portugal".
No caso é o licenciamento de construções, mas pode ser de qualquer coisa, acabamos quase sempre a concluir que temos de fazer reformas profundas de processos, sem mexer no essencial, a responsabilização dentro da administração pública.
O drama é que é praticamente impossível mexer nisso.
Tomemos o exemplo de uma notícia da semana passada, e que penso que virá na sequência de afirmações do governo, da semana anterior, sobre a dificuldade em recrutar dirigentes na administração pública (Leitão Amaro na Assembleia da República: "“Olhem para os concursos da Cresap e vejam a quantidade crescente que termina com a seguinte conclusão: a Cresap não conseguiu identificar o número mínimo de candidatos”).
A notícia dá origem à manchete do Público desse dia "Concursos no Estado repetidos por falta de candidatos atingem o máximo".
Dentro da notícia aparece o presidente da CRESAP a "alertar para a "dificuldade em atrair candidatos com mérito para o exercício das funções de dirigente de topo".
Só que esta afirmação é, no essencial, falsa, para ela ser verdadeira, ter-se-ia de verificar um imenso tempo de vacatura de lugares de dirigentes, demonstrando dificuldade em atrair pessoas para o exercício dessas funções, o que se verifica não é isso, o que se verifica é que não há candidatos aos concursos, que é matéria muito diferente: há muita gente que não está para se sujeitar às palhaçadas a que a CRESAP chama concursos.
Há algum tempo concorri para um lugar de chefe de departamento, nesse nível não há intervenção da CRESAP, o concurso seguiu o seu curso (longo curso, deve ter demorado mais de um ano) e tinha candidatos. É certo que parte dos condidatos é gente sem juízo que se candidata a tudo, mas havia candidatos suficientes para, tendo eu ganho o concurso mas por razões pessoais declinado a possibilidade de ocupar o lugar, o lugar foi ocupado pela pessoa que ficou em segundo no concurso, como é normal.
Mais tarde, concorri a dois concursos que, por serem de nível mais elevado, envolviam a CRESAP (eu tenho esta mania de concorrer a concursos quando são lugares para os quais tenho qualificações mais que suficientes).
Sobre outras vezes em que me relacionei com a CRESAP tenho escrito bastas vezes, como aqui, e aqui (neste caso vale mesmo a pena ler como era a mecânica da coisa até os tribunais obrigarem João Bilhim a cumprir a lei que se recusava a cumprir, apesar das intervenções da comissão de acesso aos documentos administrativos e da provedoria de justiça, que ignorava olimpicamente), ou aqui.
Nestas duas últimas vezes em que participei nos concursos, o resultado é ter sido classificado na "short list" como agora se diz.
No primeiro caso, o ministro, dois dias antes de deixar de ter a faculdade de nomear pessoas (graças à inovação constitucional de Marcelo Rebelo de Sousa a norma que impede governos em fim de vida de fazer nomeações foi completamente esvaziada), nomeou a pessoa que estava no cargo há quatro ou cinco anos em substuição, que era o único curriculum relevante na área de actuação do organismo em causa, no segundo caso, parece (digo parece porque os concorrentes nem são informados dos resultados dos concursos) que não havia três pessoas a tal "short list", o que implica nova abertura do concurso, evidentemente, com o mesmo resultado, de maneira que os membros do governo passam a ser livres de nomear outra pessoa qualquer que não concorreu (não estou a caricaturar, as regras são mesmo assim), e até hoje não faço ideia se nomeou ou não.
Encontrar uma pessoa para nomear é fácil, encontrar pessoas que estejam disponíveis a caucionar este enxovalho candidatando-se é que é mais complicado.
Dir-se-á que então é preciso reformar a administração.
Mas não é fácil, já que os responsáveis políticos nunca trabalharam na administração pública (podem ser professores universitários no Estado, ou ter andado por gabinetes ministeriais ou empresas públicas, mas nada disso ensina o que quer que seja sobre o que é a administração pública central), e contratam consultores para desenhar modelos de recursos humanos que nunca trabalharam na administração pública, razão pela qual pensam que a informação de gestão produzida tem o mínimo de fiabilidade (não é assim, como Fernando Alexandre descobriu por causa do número de alunos sem aulas).
Para melhorar o desempenho da administração pública, admitindo que grande parte dos dirigentes políticos até gostariam de ser capazes de o fazer (felizmente, nem todos têm a vocação para a degradação das instituições que define o legado político de António Costa), o que sobra, então?
O apoio dos dirigentes da administração pública, isto é, dos dirigentes que resultam destes processos de selecção manhosos, em que a principal qualidade dos que sobrevivem neste contexto é a capacidade de impedir que qualquer problema de gestão se transforme num problema político com repercussão pública, isto é, a capacidade para não fazer nada hoje, prometendo sistematicamente melhorias ... para amanhã, sem que ninguém se preocupe com a avaliação do que se fez ontem.
E é por isto que não vejo como sair destas areias movediças em que as relações dentro de cada unidade orgânica da administração não são as normais relações funcionais que permitem atingir resultados definidos, mas sim relações transacionais, hoje eu não levanto ondas que te possam ameaçar porque conto que amanhã não levantes ondas, quando isso me ameaçar.
E, parece-me, que é isto que tem permitido que, governo após governo, independentemente da vontade política, a administração pública desça, tranquilamente, uma rampa deslizante que só a sua falência deverá estancar.
"Nunca choraremos bastante nem com pranto
Assaz amargo e forte
Aquele que fundou glória e grandeza
E recebeu em paga insulto e morte."
(Sophia de Mello Breyner Andresen)
Não sendo este um poema directamente ligado ao regicídio (aliás dedicado ao Infante D. Pedro, o das Sete Partidas, da Casa de Avis), não deixa de se coadunar com a memória histórica assinalada a cada dia 1 de Fevereiro. Aqui, o sujeito poético seria o Infante D. Pedro, como poderia ser o rei D. Carlos. Seria a morte vil e a difamação do Infante das Sete Partidas, como se perpetuaria na morte e difamação do rei D. Carlos.
As guerras civis nem sempre são visíveis, quando os inimigos se escondem na penumbra; e nem sempre são exércitos que se defrontam, mas ideias que se deslocam à velocidade de balas e, depois, se materializam sim no homicídio subsequente. Um poema que bem sintetiza o martírio de um monarca, a morte de um dos reis mais bem preparados da Europa, que recebeu pela sua ousadia e coragem "insulto e morte".
Pagámos caro os erros históricos num século XX inclemente. Como alguém dizia, podem matar o rei, mas não sabemos o que morre com ele.
Mas outro paradoxo fica presente. De acordo com a nota da autora o poema foi escrito na noite de 17-12-1961, "interrompido pela notícia da entrada dos soldados indianos em Goa". Assim se entrelaçam as desgraças e mistérios da história nas linhas breves da poesia. O fim do Portugal histórico que se assinalava. Como outro poeta diria "malhas que o Império tece".
O assassinato do Rei Dom Carlos e do Príncipe Real Dom Luiz Filipe em 1908 foi um dos acontecimentos mais perturbadores e fracturantes na História de Portugal, cujas repercussões nos chegam até hoje e nos exigem a persistência de uma condigna homenagem anual pelas almas dos dois augustos mártires.
Participe na Missa de Sufrágio, junte-se à Família Real Portuguesa, logo ao final da tarde na Igreja de São Vicente de Fora.
“Tenho Alojamento Local, mas não vou ser eu que vou resolver o problema de habitação desta cidade. No dia em que a Câmara Municipal de Lisboa decida, eu deixo de ter. Mas não é cada um que, individualmente, tem de resolver um problema colectivo”. Esta declaração não é de Ricardo Robles, é de um ex-assessor do BE e de José Sá Fernandes na CML, detentor de duas unidades de Alojamento Local e proprietário de uma livraria onde promoveu “recolha de assinaturas” para o defunto referendo com vista à proibição do Alojamento Local “em todos os apartamentos privados destinados à habitação na cidade de Lisboa”.
Pois eu acho que o caminho para a resolução de problemas colectivos deveria começar sempre através do exemplo e mudança de atitude e coerência de cada indivíduo, principalmente quando assume posições publicas sobre o assunto. Vejamos: se defendermos publicamente que o automóvel é um nefasto causador de poluição, teremos de esperar sentados ao volante nos engarrafamentos da cidade por uma lei que nos proíba a circulação? Se tivermos uma posição pública contra as touradas, fará sentido comercializarmos touros para a faena? Ou ainda, se formos activistas de esquerda pelos direitos das mulheres faz sentido fazer uso das leis capitalistas para despedir duas trabalhadoras, mães recentes em período de amamentação?
Este é mais um caso exemplar da tão propalada ética republicana. Do excesso de confiança na lei e na mudança dos comportamentos pela via ortopédica. Ou uma profunda desconfiança pelo livre-arbítrio e liberdade individual. Uma velha e conhecida tentação dos progressistas com clara genealogia tirânica.
As sociedades ocidentais foram sujeitas à mais extraordinária de todas as experiências. As necessidades de mão-de-obra barata são reais. Mas tentou-se satisfazê-las abolindo as fronteiras. Nações antigas viram-se sob a ameaça de serem reduzidas a uma espécie de aeroportos internacionais, por onde as pessoas passassem sem nada mais terem em comum do que o acatamento de certas regras. Mas o fundamento das democracias liberais ou do Estado social não é simplesmente a obediência à lei, mas a comunhão de valores a que chamamos “nação”. As nações não são dados naturais: são o resultado da história, de séculos de conflito e compromisso. Na sua origem, não está qualquer homogeneidade, mas uma pluralidade que, sem desaparecer, chegou a um sentimento de solidariedade e destino comum que faz pessoas muito diferentes identificarem-se entre si. É a nação que explica que possamos ser diversos sem cairmos sempre em guerras civis. É um património que subjaz a quase tudo o que é precioso no Ocidente: a liberdade, a igualdade, a coesão social, o pluralismo. É a isso que chamamos “segurança”, que não é apenas a contenção da criminalidade, mas o sentimento de estarmos em casa.
Nada disto tem a ver com a cor da pele, dos olhos ou dos cabelos ou com origens geográficas, nem com todas as religiões ou ideologias. É uma questão de valores comuns. O problema das migrações descontroladas não é só a chegada de pessoas que não partilham tais valores, mas a proposta woke, que pareceu dominar os regimes ocidentais, de que não deveríamos pedir nem esperar adesão ou sequer respeito por esses valores. Foi o projecto woke, inspirado pelo ódio da extrema-esquerda ao Ocidente, que acima de tudo criou insegurança. O resto são tremendas dificuldades logísticas, que agravaram a falta de habitação e o colapso dos serviços públicos. O caos migratório não é compatível com qualquer integração. Através da imigração nestas condições, aquilo que a oligarquia fez foi reconstituir a massa de trabalhadores pobres e pouco qualificados que antigamente dava muito jeito à burguesia para arranjar criadas e moços de fretes. Em Lisboa, segundo os jornais, haverá em breve novos bairros de barracas para substituir os que foram eliminados há vinte anos. É isto o “progresso”?
Ler Rui Ramos no Observador na integra aqui
"O mercado imobiliário consiste numa soma de monopólios naturais espacialmente dispersos, incapazes de serem submetidos ao jogo da livre concorrência".
Não, o que escrevi acima não está numa obscura papeleta para teóricos de conspiração, está no "Documento Técnico DGOTDU 5/2011/ Análise das relações da política de solos com o sistema económico/ Estudo de enquadramento para a preparação da Nova Lei do Solo/ Pedro Bingre do Amaral/ 2011.
Não, não foi "a momentary lapse of reason", o documento é de 2011 e foi citado recentemente, pelo autor, como sintetizando bem o seu pensamento agora, em Janeiro de 2025.
É da mesma fonte esta síntese admirável: "Dadas todas estas especificidades, pode dizer-se que o mercado imobiliário é intrinsecamente iliberalizável, se por liberalização entendermos um processo de desregulamentação e redução da intervenção do Estado, de modo a facilitar a concorrência perfeita e os equilíbrios que esta última produz. Com efeito, a desregulamentação e redução da intervenção do Estado no imobiliário e, concomitantemente, no ordenamento do território, tende a resultar em fortes desequilíbrios entre a oferta e a procura devido a processos especulativos, a aniquilar a concorrência perfeita nos sectores afins da construção e agricultura, e a onerar o colectivo com as externalidades ambientais resultantes de uma ocupação do solo descoordenada".
A tranquilidade com que são usadas afirmações completamente delirantes, como a primeira citada, para chegar a conclusões como esta, através de um processo argumentativo tipicamente escolástico, coloca o ordenamento do território num plano metafísico que renega a definição central de arquitectura paisagista enunciada por Caldeira Cabral: a arte de organizar o espaço exterior em relação ao homem.
A realidade concreta e o homem que nela habita passam a questões secundárias: se através de um processo mental de definição do que é um mercado perfeito (uma abstracção platónica que só existe nos livros de economia) é possível demonstrar que o mercado do solo não pode cumprir os requisitos de um mercado perfeito, então apenas o Estado garante a optimização social do uso do solo e apenas ao Estado deve estar atribuída a faculdade de criar valor urbano a partir de um solo (a progressiva alteração do valor relativo da capacidade produtiva de um solo e do seu valor enquanto espaço urbano coincide com o aumento exponencial do poder do Estado que se verificou desde o iluminismo).
Este novelo ideológico implícito tem sido a base de grande parte dos populistas de Estado que têm vindo a terreiro criticar uma alteração da lei semelhante à que ocorreu há um ano e que, na altura, não motivou mais que tímidos protestos, porque o seu promotor era um governo do bem (isto é, de estatistas) e não o governo dos interesses (isto é, mais confiante nas pessoa e na sua liberdade).
Que o mercado fundiário seja uma realidade, resolve-se facilmente com tiradas não fundamentadas em lado nenhum, mas de excelente efeito retórico: "A responsabilidade pelo caos edificado nas cidades e o abandono nos campos podem, com alguma plausibilidade, ser atribuídos à orientação da sua Política de Solos, agravada sucessivamente por uma série de actos legislativos que de modo cumulativo vêm acentuando, desde 1965, tal pendor. Naquele ano, com a aprovação do Decreto-Lei n.º 46 673 (Regime Jurídico dos Loteamentos Urbanos), a prerrogativa dos direitos de urbanização foi entregue aos particulares, ipso facto privatizando as mais-valias geradas pelos actos administrativos de planeamento territorial, legislando-se nesta matéria em exacto contrapelo ao progresso doutrinal alcançado nos restantes países ocidentais, quaisquer que fossem as suas ideologias governativas; a legislação manteve até hoje esse espírito, pesem embora os diversos actos legiferadores no sentido de produzir novas versões da mesma lei. Com a privatização dos loteamentos urbanos não se produziu qualquer liberalização do mercado de solos urbanizáveis, mas tão-somente a instituição de oligopólios fundiários semelhantes àqueles prolixamente criticados pelos economistas clássicos do século XIX, dos quais destacaríamos o economista clássico luso-britânico David Ricardo. O Decreto-Lei n.º 794/76 (Política de Solos) revelou-se, nas três décadas que se lhe seguiram, largamente inconsequente. O Código de Expropriações (D.L. n.º 168/99) e a figura das Perequações Urbanísticas (D.L. n.º 555/99) mais não fizeram do que legitimar com todas as formalidades jurídicas e políticas um sistema político-económico no qual todo o incremento do valor do solo causado pela actuação da administração pública reverteria a favor dos particulares. Considerando-se que Portugal desde 1970 viveu pelo menos quatro decénios de expansão urbana — mais de 60% dos edifícios portugueses têm menos de 40 anos — e que os solos urbanizáveis praticamente não cessaram de valorizar-se entre 1965 e 2005, pode-se compreender melhor o protagonismo dos promotores de loteamentos privados na gestão do território nacional de há 45 anos a esta parte. De caminho, também se compreende melhor o destino último da melhor parte dos 168 mil milhões de euros que hoje os portugueses assumem em dívida imobiliária: foram encaixados no mercado de solo".
Nem a omnipresente figura do pato-bravo, que mata qualquer ligação entre a suposta formação de oligopólios e a realidade, nem o facto do abandono rural ser um fenómeno global, nem o facto da valorização constante do solo indiciar escassez constante, nem o facto das condições de habitabilidade em Portugal terem sido mais que deficitárias durante décadas, nem a existência de extensos bairros clandestinos, dos quais, muitos de barracas, que evidentemente não resultam das deficiências da lei referidas, nada, rigorosamente nada da realidade, consegue derrubar o muro escolasticamente construído para ligar a razão e a fé inquebrantável no Estado como guardião do bem comum.
E é o produto ideológico deste longo labor escolástico que domina na academia que se dedica ao ordenamento do território, que domina nas redacções dos jornais, que domina dos eleitores dos partidos estatistas (que, em Portugal, são praticamente todos, com a excepção parcial da Iniciativa Liberal e diferenças de grau nos outros que não são irrelevantes) e que tem dominado a discussão sobre uma mais que tímida alteração procedimental na forma como o Estado distribui os resultados da escassez artificial de solo urbano que continua a criar com limitações dos perímetros e limitações da construção em altura.
Ninguém compra solo, camaradas, o que se compra é aquilo que ele pode produzir ou o espaço que ele permite usar.
No primeiro caso, o solo não é uma quantidade fixa porque a sua capacidade produtiva pode ser alterada (nem a evidência da revolução do milho, em que milhares de hectares de solo de boa qualidade foi produzido em poucas décadas, por uma sociedade não industrial e sem recurso a energias fósseis, consegue destruir o mito de que o solo não pode ser produzido), seja mudando as técnicas, seja melhorando os processos de fertilização, seja usando melhor material genético, seja trazendo água, etc., etc., etc..
No segundo caso, o solo não é uma quantidade fixa porque se pode construir para cima, para baixo (perguntem ao Hamas como se faz, se houver dúvidas), ou pode-se alterar a mobilidade, tornando a localização de um terreno útil para os objectivos definidos, quando antes não era.
A ideia de um jogo de soma nula e de uma quantidade fixa de solo é uma ideia errada, tão errada como a perspectiva marxista de que o lucro do patrão era sempre roubo da mais-valia do trabalhador, no pressuposto de que a produção era sempre um jogo de soma nula em que apenas se poderia alterar a posição relativa dos detentores dos diferentes factores de produção na sua apropriação.
Infelizmente, ainda é com base nesse erro que se olha dominantemente para o ordenamento do território e, mais grave, é com base nesse erro que se continua a tentar regular administrativamente a actividade urbana, isto é, satisfação da necessidade social de abrigo que existe desde sempre.
A contestação à alteração do regime dos instrumentos de gestão territorial é um caso de estudo muito interessante sobre o comportamento de rebanho em pessoas educadas e com elevado nível de especialização técnica.
Comecemos por explicar o que está em causa: no essencial, uma alteração de procedimentos, isto é, onde era preciso um longo calvário de cinco a dez anos para alterar um Plano Director Municipal, a alteração da lei vem dizer que, não estando em causa os terrenos mais férteis, nem terrenos com elevados riscos ambientais, essa alteração passa a poder ser feitas pelas Assembleias Municipais.
No essencial, é isto que diz a lei, pouco mais.
Mas, estranhamente, desde o Conselho Nacional para o Desenvolvimento Sustentável (um conjunto de senadores ambientais do regime, alguns dos quais meus amigos pessoais próximos e que prezo), até à Ordem dos Arquitectos e a Associação Portuguesa dos Arquitectos Paisagistas, passando por muita outra gente, contesta violentamente a alteração da lei com base em pressupostos manifestamente falsos.
O que se passa é que há um sentimento generalizado de defesa de uma ideia de contenção urbana, que se considera uma ideia sagrada e, como tal, a ser defendida seja de que forma for.
Por isso, por exemplo, há gente qualificadíssima a difundir este artigo, com o título "Como transformar um terreno rústico em urbano", como se o artigo resultasse de alguma novidade prevista na lei, quando na verdade não passa de um artigo indigente, mal informado, que foi feito com este único objectivo, o de atrair atenções para aumentar o tráfego do site que o publica.
Mais interessante é que quase todos os dias o Diário da República tem coisas como as que vou citar e que resultam da legislação já existente.
Por exemplo, o "Despacho n.º 1306/2025, de 29 de janeiro", sim, é de hoje, como disse acima, quase todos os dias há coisas destas, este é um mero exemplo de hoje, diz que "A Ministra do Ambiente e Energia, o Secretário de Estado do Turismo, ao abrigo da parte x do Despacho n.º 12082/2024, de 14 de outubro, do Ministro da Economia, e o Secretário de Estado das Florestas, ao abrigo do disposto na alínea l) do n.º 4.3 do Despacho n.º 6739/2024, de 17 de junho, do Ministro da Agricultura e Pescas, e nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 2.º, no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 8.º, todos do Decreto-Lei n.º 169/2001, de 25 de maio, na sua redação atual, determinam o seguinte: 1 - Declarar de imprescindível utilidade pública a construção de um edifício destinado a armazém e indústria tipo 3, localizado na União das Freguesias de Abrantes e Alferrarede, no concelho de Abrantes".
No caso é para abater sobreiros que estão numa zona industrial para uma empresa que precisa de expandir a sua actividade, mas não pode, porque há sobreiros na zona industrial, mas afinal pode porque há um conjunto de ministros que declaram a imprescindível utilidade pública e, dessa forma, revogam discricionariamente a proibição de abate de sobreiros, mesmo que estejam dentro de uma zona industrial prevista como tal num Plano Director Municipal.
Mas agora olhemos para um caso mais curioso, porque mais directamente relacionado com a alteração da lei que agora é contestada por tanta gente, o "Aviso n.º 2788-B/2025/2, de 29 de janeiro" (sim, também de hoje, não andei a pescar decisões excepcionais, é o pão nosso de cada dia no Diário da República), do Município da Santa Maria da Feira que dá "Início de procedimento simplificado de reclassificação dos solos ― proposta de reclassificação do solo rústico para solo urbano com a categoria de espaço de atividades económicas".
É o primeiro resultado do facto desta alteração da lei ter entrado em vigor ontem? Não, é a mera aplicação de uma alteração da lei semelhante à que agora é contestada (mas que foi fracamente contestada quando era primeiro ministro o melhor político da sua geração, António Costa), como o própio aviso, naturalmente, refere: " de acordo com o disposto no artigo 72.º-A do Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio (RJIGT), com redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 10/2024, de 8 de janeiro".
Do que se trata, afinal?
"O procedimento simplificado de reclassificação de solo, enquadra-se na alínea a) do n.º 1 do artigo 72.º-A, que tem por objetivo a reclassificação como solo urbano na categoria de espaço de atividades económicas, de modo permitir o enquadramento para a implantação de uma unidade industrial, a incidir sobre uma área de 8,17 ha, contígua ao espaço de atividades económicas designado por LusoPark e próxima do Europarque, classificada e qualificada no Plano Diretor Municipal de Santa Maria da Feira como Solo Rural - Espaço Florestal de Produção, localizada na zona sudoeste do concelho, na freguesia de São João de Ver e da União de Freguesias de Santa Maria da Feira, Travanca, Sanfins e Espargo". (tem dez dias de discussão pública, ide todos a correr contestar esta coisa gravíssima de passar um monte de eucaliptos e pinheiros sem grande interesse numa fábrica onde se cria riqueza).
Olha, olha, afinal, para além do procedimento normal (kafkiano e normal, em Portugal, são frequentemente coisas compatíveis) de alteração de planos em que se transforma solo rústico em urbano, ainda há um monte de procedimentos excepcionais, relacionados ou não com o imprescindível interesse público (já foram olhar com atenção para o processo de licenciamento do IKEA de Loures?), para que a sociedade possa seguir a sua vida, desde que, bem entendido, conheça ou contrate quem conheça, não apenas os meandros da lei, mas sobretudo os meandros dos que decidem qual é a justa interpretação de leis sagradas, cuja alteração provocará, pelo menos, o fim do mundo (quiçá do Universo).
E se fossem dar uma voltinha pelo mundo real, os que não sabem que é assim, ou por um curso de ética, os que sabem perfeitamente que é assim mas que preferem seguir o rebanho, para não ser ostracizados?
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Da dor-de-corno e das suas insondáveis ramificaçõe...
Acho que também já fiz isso
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Desmantelar institutos e demais tralha estatal.
Portugal precisa de um DOGE