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Mártires da Pátria

por Daniel Santos Sousa, em 01.02.24

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"Mas o pior crime que a República cometeu foi o de abalar pelo esquecimento a fidelidade monárquica. E a Coroa não pode nem deve ser um sinal de divisão, ou uma sigla de partidos. Mas sim o cristal em que todos os portugueses possam encontrar a sua imagem. O cristal é frágil. E não sei até que ponto, quando se quebra pode readquirir o seu brilho e a sua transparência. Não irei àquela cerimónia fúnebre que todos os anos se repete na Praça do Município. E se fosse, iria de gravata preta, porque acto tão triste, ali, só pode ser para que não esqueça a memória de um rei e de um príncipe vilmente assassinados."

 

(Francisco Sousa Tavares, Outubro de 1991, crónica reunida no livro "Uma Voz na Revolução, testemunhos e causas de Francisco Sousa Tavares"). 

 

Recordar Couto Viana (1923-2010)

por Daniel Santos Sousa, em 25.01.24

 

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Ontem passaram 101 anos do nascimento de Couto Viana (1923-2010). Foi poeta de sensibilidade apurada, um erudito que jamais perdeu o lirismo e, acima de tudo, um patriota, como outro poeta injustamente esquecido, Rodrigo Emílio. Certamente estes poetas não preenchem o cânone do regime: monárquicos e nacionalistas, bardos do Portugal antigo, acabaram riscados do mapa. A injustiça vinga na terra que renega os seus filhos. Poetas à direita não faltaram, pese a contradição do mitológico predomínio intelectual das esquerdas. Se se pensar em António Sardinha, Alberto d'Oliveira, Guilherme de Faria, Afonso Lopes Vieira, Fernanda de Castro, Rodrigo Emílio, Couto Viana, existe uma cultura de direita remetida para o esquecimento. 

Na arte poética, Couto Viana foi singular e original. Sem necessidade de entrar em escolas ou clubes cultivou uma voz própria. Nos velhos tempos das tertúlias literárias, quando os cafés serviam de ponto de encontro à discussão intelectual, Couto Viana pôde cultivar amizades, mais tarde fundamentais na formação da revista "Távola Redonda", conjuntamente com David Mourão-Ferreira e Luiz de Macedo. Os trilhos da poesia sondam quase sempre os mesmos mistérios do amor, da morte, da perda, a originalidade está no desafio em alcançar o domínio da língua para fazer da palavra uma arte. 

Quando o neo-realismo ditava a regra estética, Couto Viana não abdica da originalidade, nem deixou de ser um espírito livre. Num meio intelectual dominado pela esquerda jamais se deixou seduzir pelos "amanhãs que cantam". Manteve-se firme enquanto via a pátria secular recolher-se ao rectângulo. Assim cantou essa mutilação de forma absoluta e comovente. Ao país apontou a forma que assumia, a de um caixão: "Agora, o meu país é pó, é cinza, é nada./ Reduziram-no assim para caber na mão/ Fechada." Afinal, como Maurras e António Sardinha, a poesia conduzia-o à política. Na esteira dos princípios, à "Politique d'abord" podia contrapôr (na feliz expressão de Rodrigo Emílio) a  "Poesie d'abord", sintetizando o compromisso com os valores perenes, as verdades vencidas (diria Alfredo Pimenta). 

Poeta trágico, com a imagem de Camões reflectiu sobre esse mesmo desígnio: "Nunca digas não mais, mesmo que a ferida/ te pareçs mortal./ Mesmo que a gente surda e endurecida/ Se chame Portugal". Se Bocage se compara ao poeta nos feitos e não no talento, Couto Viana assume o vate como halo para interpretar o destino final de Portugal. Não seria apenas Camões,  mas o próprio Couto Viana. Quanto também Jorge de Sena  sondara uma mesma decepção em "Camões dirige-se aos seus contemporâneos" (são discursos com singularidades próprias que identificam a mesma angústia face,  não apenas aos contemporâneos, como face aos conterrâneos, dos quais se auto-exilam). 

Assim, desencantado,  num poema final desafia o destino e a história "É preciso ficar aqui entre os destroços".  De pé sobre as ruínas, um último soldado, ou último combatente. Assim ficou, assim ficámos...

O último soldado da velha guarda

por Daniel Santos Sousa, em 24.01.24

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Passa mais um ano em que se assinala a morte de Sir Winston Churchill. Descendente doutro Churchill notório, Lord John Churchill, primeiro duque de Marlborough, herói das guerras contra Luís XIV. Procurou as referências na genealogia, embora nem sempre com o sucesso desejado, num percurso político sinuoso, mas no final glorificante. A biografia que escreveu do ilustre antepassado não escondia o paradoxo aliciante de encarnar a missão salvífica do reino. Churchill teve o momento ideal quando defrontou Hitler, apagando um curriculum de fracassos e eliminando as fragilidades políticas que outrora o dirimiram.

Foi em tudo um aristocrata: político, escritor, historiador, soldado. Pois, aos filhos da boa fortuna, para quem a sorte já nasce determinada, a posição mais não é do que a sujeição natural a um destino. Assim cumpriu o papel esperado, mas não garantido, porquanto nem sempre a sorte favorece os audazes, mas os esclarecidos.

Enquanto a Europa via ascender figuras sinistras vindas das sombras das sociedades, os pequenos tiranetes e os aspirantes a Césares, o Reino Unido ainda produzia um escol privilegiado. Era a hierarquia e o sangue quem determinavam o sucesso. Ao espírito meritocrático das classes-médias repugna o privilégio do nascimento, mas contrariando os corolários revolucionários foi também a preparação desde o berço quem determinou a sorte dos impérios. Seria dizer pouco: o mérito existe dentro da hierarquia que sabe também dinamizar-se. Sem ter sido arrasada pelas revoluções jacobinas e comunistas e não conhecendo a destruição das instituições de forma tão violenta, como aconteceu nos últimos duzentos anos no continente europeu, o Reino Unido criava anticorpos às ditaduras e totalitarismos reinantes.

Churchill pode ter tido falhas, mas pertencia àquela geração moldada no sentido da honra e do dever que é a divisa da aristocracia. A fidelidade ao trono nunca foi posta em causa, quando noutras paragens, por muito menos, generais ambiciosos e políticos sem escrúpulos se tornaram os algozes dos seus soberanos. Para a Europa seria quase um homem do Antigo Regime - o marco historiográfico que o reino de Inglaterra dispensa porque a continuidade é segura e milenar. Ali o "Antigo Regime" corrigiu-se e desenvolveu-se (usando a feliz expressão de Renan), criticamente empossando a burguesia comercial e a aristocracia do dinheiro, arrasando a presença do catolicismo, sacrificando irlandeses e escoceses (para quem a dita Revolução Gloriosa não foi assim tão gloriosa), desenvolvendo o capitalismo nefasto e comercialista... são as contrariedades do sistema crescido dos compromissos prováveis e das circunstâncias inauditas.

Churchill foi o produto desse mundo e talvez um último vestígio da "velha guarda", moldado no espírito vitoriano do culto do Império. Educado no sentido do dever, ensinado a desempenhar o alto desígnio do sangue e a expectativa de corresponder à exigência do status. Foi um homem do seu tempo, com todas as qualidades e defeitos que pudessem ser reunidas num espírito indomável.

A última cruzada

por Daniel Santos Sousa, em 19.01.24

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Passa mais um ano em que se assinala a efémera e idealista Monarquia do Norte, talvez o último e derradeiro impulso de mobilizar forças sob o estandarte dos Reis de Portugal, congraçando fileiras contra a República. Para uns um movimento trágico e romântico, para outros uma determinação de força, ou ainda uma profissão de fé, que atrás de si levantou povo e soldadesca contra aquele regime poluto e amargurado nas crises internas, desfasado do "país real", inimigo de todas as tradições.

Lembrando a máxima de C. Wright Mills, que "cada revolução tem a sua contra-revolução", assim decorreu com os exército de Kolchak, os "Brancos", contra os sovietes "Vermelhos", na Rússia; ou as guerras civis na Península Ibérica no século XIX, em nome da legitimidade e da tradição; ou os mártires dos campos da Vendeia e da Bretanha, contra os jacobinos de Paris, numa sinecura de tragédias que não deixaram de antever a característica insofismável da revolução, a grande "hidra", verdadeira gangrena das pátrias.

O movimento não deixou de encontrar paradoxos no que parecia uma vingança da própria história. Ali conciliava monárquicos constitucionais e miguelistas, agora irmanados contra um mesmo inimigo. Aliás, constatação assinalada pela pena de Francisco Menezes de Villas-Boas quando descreve que "eram eles agora, as feras acossadas d’aquelas montarias sangrentas, em que haviam actuado como batedores, aquando da retirada do exército de D. Miguel".

Mas mais do que uma "Monarquia do Norte", Couceiro apelava à "Monarquia Nova": a restauração de Portugal não se bastaria com a mera reposição da Carta ou o retorno ao velho caciquismo. Era a Monarquia na sua organicidade pura, inspirada pelos valores católicos, que conjugasse o melhor da tradição e restaurasse a Realeza nos seus princípios. Ali não era a força bélica, apenas, mas a força de uma doutrina.

Comprometido, no final, pela traição e pelo abandono, permaneceu inerme mas irredutível. Amargurando pela distância física e espiritual do rei, grandemente pela ambiguidade e incerteza na atitude de D.Manuel II, que um jornalista republicano, Pinheiro Chagas, também notara quando escreveu que Portugal é um país de paradoxos "tem um rei republicano no exílio e um Presidente monárquico no poder" (referindo-se ao então Presidente de República, o Almirante Canto e Castro, desventuroso nas alianças e inesperado na ocupação do cargo de representante máximo da República quando servira outrora a monarquia).

Dos textos deixados por Paiva Couceiro podemos ter uma súmula do seu ideário, que vertem o argumento loquaz do homem de combate. Desde "A Democracia Nacional (1917)", à "Carta Aberta aos meus Amigos e Companheiros (1924)", procurando alertar a saciedade face à maleita republicana, não deixando de sublinhar que a "Pátria, que a Monarchia fizera, ia a Republica desfaze-la". Sublimemente sintetizou a crise, porquanto alegava que a república mais não era do que a consequência (diria, lógica) da evolução do "constitucionalismo e do liberalismo revolucionário".

Saberia certamente, como militar, que não bastavam as palavras, era necessária a acção; ao mesmo tempo reconhecia, como homem de pensamento, que tão pouco a solução residiria na violência, aliás licença à anarquia e à desordem. Conciliava afinal o carácter dos príncipes e a coragem dos guerreiros.

Em toda a sua vida soube bater-se pelas verdades eternas que fizeram Portugal: Deus, Pátria e Rei.

Reflexão para tempos eleitorais

por Daniel Santos Sousa, em 16.01.24

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Madariaga e Kuehnelt-Leddihn lembraram que a nossa civilização repousa sobre a morte de dois homens: um filósofo e o filho de Deus, ambos vítimas da vontade popular. A morte de Sócrates às mãos da democracia ateniense e a morte de Cristo decidida pela maioria. Não é por acaso que a 'anakyklosis' de Polibio inspirada em Platão demonstre como a democracia pode degenerar na demagogia. Do mesmo modo que a monarquia degenera na tirania e a aristocracia na oligarquia. Como um espectro a decadência assombra os regimes, nunca perdoando aos homens o "orgulho da razão" que deificada eritis sicut Dei despreza a sublimidade e a virtude.

A questão da decadência foi analisada por Platão porque "se, porém, for semeada, ganhar raízes e crescer um terreno não propício, o resultado será precisamente o contrário (não virtuoso), a menos que algum deus venha em seu socorro“". Heidegger concluiria na linha de Hoelderlin, sentenciando a era que aboliu toda a transcendência e abandonou o homem à modorra da sua liberdade, o "obscurecimento do mundo" deixou "o exílio dos deuses, a destruição da terra, a gregarização do homem, a preponderância da mediocridade”.

Podemos preservar a alta cultura?

por Daniel Santos Sousa, em 04.01.24

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O livro "A Cultura Moderna" (título original "Modern Culture") de Sir Roger Scruton foi publicado pelas Edições 70 em 2020. Li e comentei o livro na altura e agora reproduzo aqui a mesma análise uma vez que o livro traduz ideias sempre actuais.

O livro "A Cultura Moderna" não constituiu uma surpresa nas premissas fundamentais do pensamento do autor que já conhecia de outros escritos. Mas é sempre refrescante revisitar os caminhos que forjaram a identidade ocidental e a ruptura que o iluminismo proporcionou na diluição dos fundamentos que suportavam as autoridades tradicionais como conditio sine qua non à redefinição dos elementos constitutivos da "alta cultura".

A crítica ao racionalismo moderno-iluminista não acresce muito mais ao que os autores do século XIX propuseram na ruptura com essa mesma alienação, nem o que já foi repassado pelos profetas do "declínio do ocidente", mas com Scruton a leitura renova-se e transborda luminescente.

Distinguir a cultura popular da alta cultura pareceria um exercício natural que se perdeu na vulgarização "pop". As afinidades naturais e as lealdades tradicionais foram sendo demolidas na inevitabilidade de entregar o homem ao peso da sua própria liberdade. O iluminismo foi inconsequente e a modernidade bebeu o seu cálice venéreo como corolário a toda a concretização intelectual. O primeiro modernismo, com Eliot e Pound, e, antes deles, Baudelaire, tentaram reverter o declínio. Eliot, em particular, entrou numa busca espiritual que o reconduziu ao trilho perdido pelos modernos. O modernismo procurou ser inicialmente uma busca pelos fundamentos espirituais e tradicionais, porque nenhuma cultura é uma soma abstracta e individualista, mas a concretização de uma civilização que no seu âmago transporta a experiência dos séculos. Nada é novo debaixo do sol e apenas podemos inovar assumindo-nos como herdeiros de uma tradição. O primeiro modernismo procurou recuperar a essência que as gerações seguintes perderam. Na senda dos novos tempos as revoluções sociais germinaram na devastação dos últimos recursos de que dispunha a cultura para beber da tradição o seu mistério mais profundo. O que restou para a pós-modernidade foi a cinza do que julgámos outrora como verdade.

Os elementos que concretizavam a alta cultura foram-se desgastando e o entendimento que tínhamos da arte desvaneceu-se com ela, porque sustentavam-se em certezas perdidas. Se a religião foi o sustentáculo dos antepassados, não o seria mais do homem contemporâneo desenraizado de qualquer tradição. A cultura massificou-se, na glorificação da banalidade. Entretecida nessa superficialidade gravita em torno do seu próprio eixo, como uma roda circundando um grande nada. Move-se sem outro sentido que não o de girar perpetuamente em torno de si mesma, sem conseguir alcançar um significado à sua gravidade. A baixa cultura generaliza-se e corrompe-se a ela mesma. O percurso que assinala o declínio da alta cultura foi sinuoso e separa momentos históricos de rebelião que se pretendem sempre superar ineliminavelmente na esfera da sua própria concretização.

Os pós-modernismos e o tribalismo que os novos "intelectuais" pretendem impor na desconstrução da identidade ocidental é uma nova barbárie que só a dedicação ao estudo da cultura clássica, das grandes obras, tal como o pensamento crítico dessas mesmas obras, e não o obscurecimento, a censura e a autoflagelação, podem salvar face à imposição do "politicamente correcto".

O que será a alta cultura hoje e como a podemos reconhecer e mais: como a podemos salvar e preservar da nova barbárie?

Carlos Magno, o Pai da Europa

por Daniel Santos Sousa, em 25.12.23

 

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25 de Dezembro Carlos Magno é coroado Imperador. Neste quadro de Durer o imperador Carolingio aparece na orla da velhice, o traço sintetiza o carácter determinado do guerreiro movido pela fé (inabalável e indestrutível). O olhar visionário e vigilante, seguro como um Himalaia, recupera muito do sentido providencial que encarnou.

A coroa é encimada pela cruz, lembrança do Redentor e também redenção dos povos da cristandade. O Pai da Europa que, na senda da mais alta fé, encontrou a unidade onde outrora existiu o caos. O Corpo Místico de Cristo erigiu-se ainda mais alto, afinal, alma profunda que o homem, até à catástrofe revolucionária, não deixou de entender.

Neste tempo de declínio, quando a Europa novamente precisa reencontrar, ou reinventar, o seu caminho no mundo, lembremos Carlos Magno, "quintessência do espírito da Igreja dada ao laicato", como lembrou Plinio Correia de Oliveira, na interpretação concomitante com a providencialidade daquele magnânimo imperador.

Mesmo mais de 1200 anos depois da sua morte o seu espirito continuará a ser a luz determinante no nosso caminho enquanto civilização.

Imaculada Conceição, Padroeira e Rainha de Portugal,

por Daniel Santos Sousa, em 08.12.23

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Nas cortes celebradas em Lisboa no ano de 1646 declarou o rei D. João IV que tomava a Virgem Nossa Senhora da Conceição por padroeira do Reino de Portugal, prometendo-lhe em seu nome, e dos seus sucessores, o tributo anual de cinquenta cruzados de ouro. D. João IV assumiu ainda coroar a Imagem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa como Rainha de Portugal. Ordenou o mesmo soberano que os estudantes na Universidade de Coimbra, antes de tomarem algum grau, jurassem defender a Imaculada Conceição da Mãe de Deus.

“Seja assi, Senhora, seja assi; e eu vos prometo, em nome de todo este Reyno, que elle agradecido levante um tropheo a Vossa Immaculada Conceição, que vencendo os seculos, seja eterno monumento da Restauração de Portugal, Fiat, fiat." (Frei João de S. Bernardino, 8 de Dezembro de 1640)

Imagem: Alegoria da aclamação de Nossa Senhora da Conceição como Rainha e Padroeira de Portugal (Museu de Arte do Rio)

Memória do Kaiser Franz Joseph

por Daniel Santos Sousa, em 21.11.23

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Uma memória do Kaiser Franz Joseph, contada por Kuehnelt-Leddihn, no seu livro "Liberty or Equality".

No dia em que o Presidente dos USA, Theodore Roosevelt, visitou Viena e foi recebido pelo Kaiser, a determinado momento pergunta qual o papel do monarca nos dias de hoje, ao que o austero e majestático imperador respondeu: "Proteger o meu povo dos seus governos."

Hoje passam 107 desde o seu desaparecimento, daquele que se intitulou o "último monarca da velha guarda".

Recordar Otto von Habsburg

por Daniel Santos Sousa, em 20.11.23

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20 de Novembro de 1912 nasce o último príncipe herdeiro do Império Austro-húngaro, Otto von Habsburg. Exilado, mas nunca esquecido do povo, afastado do trono, mas nunca desistindo da luta. O arquiduque da Áustria foi sempre respeitado e admirado, até pelos mais críticos. Foi o "Príncipe-cidadão", pela postura cívica colocada ao serviço do bem comum, mas também um verdadeiro príncipe da renascença", cujo espírito aristocrático foi sempre maior do que que as comendas e títulos herdados. Sobretudo, um patriota que nunca deixou de ser europeu (no sentido antigo e cultural).

Tonou-se um símbolo e uma referência, não apenas pela monarquia, mas pela liberdade, pela civilização, pela identidade e história europeia, pela fé e pela cultura. O longo exilio não impediu o arquiduque de continuar a lutar pelos valores primordiais da civilização europeia, sentido que configurou na construção de uma Europa unida, nos antípodas do que se veio a tornar a dita União.

Foi talvez o último elo de ligação à velha Europa e ao esplendor de um mundo desaparecido, aliás como anos mais tarde recordou:

"A minha avó materna tinha educado a minha mãe e os irmãos e irmãs segundo métodos quase espartanos, e essa tradição manteve-se em nossa casa. As recordações que me foram transmitidas não eram de brincadeiras nos palácios nem de festas brilhantes para jovens ociosos (...) a minha mãe e a minha avó do que falavam era de trabalho, trabalho e mais trabalho. Os estudos eram muito severos e, além disso, as crianças da família real tinham de coser, remendar e arranjar a sua própria roupa, incluindo as meias, e fazer o mesmo à das pessoas idosas ou doentes da aldeia onde viviam. (...)".  (Otto von Habsburg, "Mémoires d'Europe, Entretiens avec Jean-Paul Picaper", 1994.)

 

Metternich e a ordem europeia

por Daniel Santos Sousa, em 29.10.23

 

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Metternich é ainda fruto de discussão, Pieter Viereck já o tinha como modelo nos idos anos 60, constatando a máxima cunhada pelo ministro de "socialiste conservateur" (assim escreveu em carta a Guizot) como consentâneo dos paradoxos do poder que procurava a harmonia social e o cosmopolitismo aristocrático dentro de uma estrutura monárquica e tradicional, que mantivesse a ordem e impedisse o nacionalismo revolucionário das classes-médias.

Se criticou os revolucionários franceses, também atacou os adversários a que designou de "jacobinos brancos". Entre convulsões revolucionárias e contra-revoluções, procurou um equilíbrio europeu sustentado na ordem e na tradição, mas é muito mais do que o arquétipo do reaccionarismo. No fundo, era o pragmatismo Burkeano e a realpolitik mais tarde cunhada por Bismarck.

Nem tão pouco encontra paradeiro na actual União Europeia, mais descendente de Napoleão do que do Sacro Império ou da Confederação do Reno que Metternich via como "ordens federais defensivas", no valor às particularidades e idiossincrasias do continente e sobretudo às naturezas singulares dos regimes constitucionais, nos antípodas do que se tornou a Europa nos últimos cem anos. Uma figura incontornável para quem quer estudar diplomacia.

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O último Imperador austro-húngaro permanece enquanto símbolo remanescente da ordem tradicional na Europa, aquela ainda resistente à revolução francesa e sucumbida com a grande guerra, "o suicídio da Europa civilizada", como lapidarmente referira o Santo Padre Bento XV, apóstolo da paz, a quem o Imperador Carlos dedicava especial atenção. Como rei católico servia lealmente o juramento e sentia o pesado peso da coroa de Santo Estêvão como missão apostólica para com o império ameaçado. A monarquia é um dever sagrado destinado a prover a salvaguarda do povo. Essa vocação podia ser comprovada nas atitudes para com os mais humildes, no amor ao próximo e no sacrifício para com os desfavorecidos, a missão de Cristo era no Imperador o corolário de todas as virtudes. Aliás era casado com a Princesa Zita de Bourbon, neta do nosso rei D.Miguel por via materna (a mãe era a Infanta D. Maria Antónia de Bragança).

Na dianteira dos acontecimentos, tudo fez para impedir que a grande hecatombe se prologasse, chegando a desenvolver conversações com o rei dos belgas (Alberto I) para alcançar uma proposta de paz com os aliados. Sabia que a salvaguarda da civilização europeia dependia da resistência do império, o delicado equilíbrio criado por Matternich aquando do Congresso de Viena e mantida por Bismarck, estava prestes a desabar, levando consigo a Áustria-Hungria e fazendo sucumbir os velhos tronos.

Dentro do seu pragmatismo concebia uma confederação de estados para acalmar os ânimos nacionalistas entre os povos do império. A visão do imperador Carlos era motivada pelas doutrinas sociais da Igreja. Influenciado por Leão XIII foi um monarca reformista que no império criou o primeiro ministério para assuntos sociais. Ardoroso pacifista e reconciliado aos prisioneiros políticos deu-lhes amnistia. O mesmo confessou: «Todo o meu empenho é sempre, em todas as coisas, conhecer o mais claramente possível e seguir a vontade de Deus, e isto da forma perfeita».

Não apenas devoto ao povo, mas também à família, inculcando nos filhos o mesmo sentido de responsabilidade, enfatizando neles a formação cristã e o amor ao próximo. Fundamentos tão necessários para reflectir, num tempo dominado pelo materialismo liberal, pela decadência na moral, pela dissolução dos vínculos antigos e na ameaça à antiga instituição da família.

O resultado final, logo com o desfecho da guerra, foi o afastamento do imperador. Acabou exilado. Da Suíça, partiu para Espanha e depois acabou em Portugal, na Madeira. Mas nunca desanimado, ao monarca bem podia aplicar as belas palavras do Salmo “O Senhor é o meu pastor, nada me faltará”, enquadrando tão bem o espírito coerente e integro daquele devoto, nada lhe faltou, mesmo nas alturas de maior miséria, mesmo nos momentos mais tenebrosos. Tal como o Apóstolo das Gentes, depois de uma vida grandiosa de luta e entusiasmo, bem poderia proferir: "Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Resta-me agora receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia, e não somente a mim, mas a todos aqueles que aguardam com amor a sua aparição.”

O outro Napoleão

por Daniel Santos Sousa, em 13.10.23

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Dos filmes de Napoleão este é o mais intrigante. Dirigido por Antoines de Caunes, o filme recria os últimos anos de vida do Imperador, exilado (ou prisioneiro) em Santa Helena. Ao longo do drama subsiste o mistério, o paradoxo, o inaudito, onde os factos se tornam pressupostos para a dúvida mais do que para construir certezas: terá Napoleão morrido realmente em Santa Helena, ou terá o seu corpo sido trocado com o do fiel criado Cipriani?

Ao género dos mitos históricos como o Homem da Máscara de Ferro, por exemplo, as teorias da conspiração alimentam a imaginação. Conseguiu-se assim um misto de drama histórico e policial, procurando reconstituir as pistas que levam à morte do Imperador e à sua possível fuga da ilha, vivendo os derradeiros anos como um fazendeiro nos Estados Unidos. Porém, com o desfecho inteligente e a grande habilidade de deixar o público na apreensão. A única figura procurada não é Napoleão, mas um vago fantasma, uma memória distante. Mais do que a fantasia e as possíveis teorias o filme ganha pela prestação dos actores. Com a especial atenção ao Napoleão encarnado por Philippe Torreton, que longe está da grandiloquência dramática, ou do heroísmo exacerbado dos protagonistas de Hollywood, mas mais uma imagem de compaixão e humanidade por detrás da figura histórica.

Psicologia das Multidões

por Daniel Santos Sousa, em 12.10.23

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A histeria de massas perpassa a latitude da história, não conhece fronteiras ao status nem limitações à época. Dos miasmas ideológicos à colectividade febril, tudo é instado à desordem. A histeria envenena os regimes, o sintoma identificado pelos antigos, de Aristóteles ao ciclo político de Políbio, de que a democracia degenera na demagogia, depois tema repassado desde o Direito Natural aos modernos que testemunhavam as crises revolucionárias.

Le Bon não terá identificado nada de novo, mas soube arrancar boas ilações de um tempo que antecipava o que de pior o século XX havia de produzir. O livro aqui apresentado é exactamente esse celebérrimo titulo: "A Psicologia das Multidões" - publicado em 1895 promoveu a fama do autor.

O simplismo nas ideias, a falta de pensamento crítico, o vago como doutrina, o superficial como dogma, a incoerência de posições, tudo afecta os homens independentemente da posição, idade e experiência, até os mais doutos são subitamente encarcerados nessa modorra. Pode esta epidemia alimentar campanhas eleitorais, como pode incendiar ódios contra quem professa um credo diferente, criando o inimigo e enfeitiçando as massas com um fantasma para prover à destruição do outro.

Le Bon legou assim um pequeno grande tratado sobre a nossa condição e merece servir como reflexão aos tempos de crise do ocidente.

" A multidão é sempre dominada pelo inconsciente."

"Como a multidão só se deixa impressionar por sentimentos excessivos, o orador que a quiser seduzir terá de usar e abusar das afirmações violentas."

"As multidões apenas conhecem os sentimentos simples e extremos, e, nesse sentido, aceitam ou recusam em bloco as opiniões, as ideias e as crenças que lhes são sugeridas, considerando-as verdades absolutas ou erros igualmente absolutos."

"Nunca faltam condutores aos povos, mas nem todos possuem a fortaleza de convicções que faz deles apóstolos. Na maior parte dos casos, são hábeis oradores movidos pelos seus interesses pessoais e com um poder de persuasão assente na lisonja dos instintos mais baixos."

"Graças ao despotismo que exercem, estes novos senhores
obtêm das multidões uma docilidade muito mais completa do que a que qualquer governo conseguiria."

(Psicologia das Multidões, Gustave Le Bon, edições Pensadores Delraux)

A Portugueza e os seus mitos

por Daniel Santos Sousa, em 06.10.23

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Na Biblioteca Nacional Digital é possível ter acesso à versão original de "A Portugueza" (1890), não deixa de fascinar ao admirar a capa da partitura onde sobressaem as cores nacionais azul e branca. Contudo, em torno da canção, depois hino nacional, prevalecem algumas dúvidas e certos mitos que aqui vou procurar explicar.

1. Hino miguelista?

Consta-se que tenha sido dedicada a D.Miguel II, então exilado na Áustria, embora não haja qualquer edição de "A Portugueza" que o comprove. Mas a suposta dedicatória a D.Miguel II pode ter uma explicação (até prova em contrário): D. Miguel II veio a Portugal incógnito, afrontando a lei da proscrição e embora a viagem fosse conhecida das autoridades e do próprio rei D. Carlos ninguém o incomodou. Ter-se-á encontrado com Alfredo Keil que por essa altura terá composto um outro hino dedicado (?) e com quem terá mantido correspondência posteriormente.

É curiosa esta ideia, que suscita tantas dúvidas, porque, de facto, Keil foi amigo do príncipe exilado, mas nunca ninguém encontrou provas de tal dedicatória. O que se supõe é que Keil tenha enviado a D. Miguel II um exemplar da “Marcha” com dedicatória, mas isto não quer dizer, no entanto, que a obra lhe fosse dedicada. Leia-se o livro de Maria Emilia Vasconcelos - em Cad. Vianenses, Viana do Castelo, 12, 1982 p 269-293 e13, 1989, p.113-137, intitulado “Miguelismo no Alto-Minho", Conta-se que, a certa altura, D. Miguel II veio a Portugal, incógnito, afrontando a lei da proscrição, e embora a viagem fosse conhecida das autoridades e do próprio rei D. Carlos ninguém o incomodou. D. Miguel II ter-se-á encontrado com Alfredo Keil que por essa altura terá composto um outro hino. Sabe-se também que o príncipe terá mantido correspondência com o compositor.

2. Influenciado pelo fado e pela Marselhesa?

Há dúvidas quanto às influências de Keil nas composição do hino, se foi influenciado pelo fado, pela Marselhesa e pelo hino da Maria da Fonte. Relativamente à influência do fado tenho dúvidas, mas José Osório de Oliveira, em "Psicologia de Portugal e outros ensaios" (1934) garante que Keil "soube, de facto, aproveitar a cadência do fado sem deixar de fazer um hino heróico." Quanto à Marselhesa, facilmente podemos constatar num paralelismo entre os versos “pela pátria lutar” e “contra os canhões” com o “aux armes citoyens” do hino francês. A influência francesa não era estranha à boa sociedade da época e contribuiu para alcançar uma tonalidade musical grandiloquente.

3. Contra os "bretões"?

Outro mito que corre de boca em boca relaciona-se com uma suposta alteração da letra da canção, onde se lê "contra os canhões marchar, marchar", na letra primitiva seria: "contra os bretões marchar marchar", o mesmo pode ser encontrado na Wikipédia. Lendo Jaime Nogueira Pinto, o livro "Nobre Povo - os anos da República" novamente a mesma declaração é feita. Todavia, em nenhuma das edições anteriores a 1910 surge tal referência, nem mesmo nos jornais da época (pelo menos é o que dizem aqueles que têm investigado o assunto). O historiador Rui Ramos nega terminantemente que os versos "contra os bretões marchar, marchar" constassem na edição original e apenas admite que, talvez, possa ter acontecido em alguma sessão privada e esporádica da qual ele não tem notícia alguma.

A edição disponibilizada pela BND é das mais antigas (creio que será mesmo a primeira) e na letra lê-se: "contra os canhões"...

Talvez a ideia da canção apelando à guerra com a Inglaterra tenha vingado no contexto conhecido em que "A Portugueza" foi composta, não será despiciente indagar que o próprio povo, cantando a marcha patriótica nas ruas, substituísse a palavra "canhões" por "bretões", afinal, este foi um período de exaltações políticas, imediatamente atiçadas pelo ultimato britânico, seguido do 31 de Janeiro (a primeira tentativa para proclamar a república), a época em que Guerra Junqueiro escreve "Finis Patriae", carregado de simbologias antevendo o fim da pátria, também a época em que é criada a efémera "Liga Patriótica do Norte".

4. Hino patriótico e monárquico?

O hino patriótico rapidamente ficou conhecido, mesmo o rei D.Carlos chegou a ouvi-lo, salvo erro na Praça do Campo Pequeno, e conta-se também que a rainha Dona Amélia terá ensinado a canção aos príncipes D. Manuel e D. Luís Filipe.

O certo é que, à época (ainda em 1890) foram impressos e distribuídos em Lisboa e na província vários milhares de exemplares da partitura, permitindo a sua grande difusão. A música tornou-se conhecida desde as agremiações populares, aos teatros, incluindo o S. Carlos, até aos salões das elites, às camadas estudantis e intelectuais republicanas.

Mais tarde os republicanos apropriaram-se da música, como é sabido, e em 1911 é escolhida para hino nacional, sem que o autor da melodia, Alfredo Keil, tivesse feito alguma coisa por isso. Não há nenhum indício de republicanismo em Keil, e muito menos em Henrique Lopes de Mendonça, o autor da letra. Homem de grande sensibilidade, Keil foi também um exímio pintor, aliás, um dos seus principais compradores era o rei D. Luís (mantinha uma relação próxima à casa de Bragança).

A composição da marcha patriótica derivou de um impulso, de um sentimento explosivo provocado pelo ultimato britânico, tudo o mais foram as circunstâncias que o ditaram, algo que nem o próprio autor da melodia podia adivinhar ou programar. O sentimento patriótico de Keil e Mendonça virou republicano? Seria redutor dizê-lo. Antes criaram um hino para que esta nação antiga não se esqueça do seu passado valoroso, de grandeza e coragem, e que tenha forças para conquistar o futuro.

Celebrar a desordem

por Daniel Santos Sousa, em 05.10.23

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Mais um 5/10, mais uma recordação trágica.

Não foi fenómeno único da "república", Pombal fê-lo, o liberalismo com o saque às ordens religiosas também, o "Mata-Frades" foi disso exemplo, mas em 1910 ainda persistir com estes ódios demonstra a demência daquela gente, desde tosquiar os padres para lhes medir os crânios e provar que a vocação religiosa era um desvio genético, às perseguições arbitrárias, aos assassinatos políticos (a “noite sangrenta” de 1921 demonstrou o pior daquele regime).

Logo a 5 de Outubro é assassinado o Padre Barros-Gomes (humanista, homem de cultura e de ciência que deixou importantes contributos a nível da botânica) e o assassinato político não cessou, nem o caos deixou de reinar ao longo de 16 anos.

Apenas comparado com a "anarquia" de 1834, viveu-se depois de 1910 um recuo nos direitos e liberdades. Recuou-se de um estado que garantia a lei e o direito para um estado que institucionalizou a desordem, que governou com partido único durante anos e que restringiu o direito de voto. Evoluindo a partir do pior sectarismo burguês o regime apenas prosseguiu os vícios do anterior constitucionalismo. Às classes operárias iludiu-as com o charme da revolução e depois ofereceu-lhes a repressão. Não admira que o primeiro partido socialista mantivesse com o partido republicano, desde as origens, uma animosidade extrema.

O que veio em 1910 nada tem que se recorde de bom. Comemorem o que quiserem.

José Hermano Saraiva, o grande educador

por Daniel Santos Sousa, em 03.10.23

 

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Assinala-se hoje o nascimento do Professor José Hermano Saraiva, o grande educador, que aliava a profunda erudição à notável capacidade comunicativa.

Foi o homem que mais fez por divulgar a história de Portugal e, ainda que outros procurem imitar o traço, não alcançam o génio. Ali descobríamos o à-vontade familiar, um gesto característico, uma erudição capaz de descer do alto pedestal da academia para o povo.

Era um comunicador nato, num país pouco dado à eloquência do discurso. Onde raros, com excepção, logram brilhar a palavra, Hermano Saraiva conseguia encantar e iluminar. Mas convocava outras raras características, como a capacidade de improvisar e rasgar traços harmoniosos na formalidade das ciências, dispensando papel e auxiliares para discorrer nas ideias. Tinha esse dom particular e poucos conseguiam captar tanto a atenção do público.

Incansável, percorreu não só Portugal como todo o espaço lusiada - a grande Portugalidade - e novamente deu vida às memórias dos nossos antepassados. Poucos terão feito tanto.

Longe vai o tempo em que não se confundia o orgulho pátrio com o preconceito ideológico, em que falar de história era percorrer com entusiasmo os feitos e valores transmitidos, e em que lembrar o passado era uma narrativa empolgante. Hoje restam os difamadores programados pela ideologia, o rancor ao passado e a tentativa de higienizar a memória colectiva através do "politicamente correcto".

Muita falta nos faz o Professor Saraiva.

"Hoje há uma grande tendência para substituir a História pelo Catecismo. Dizem-se umas coisas gerais e os alunos saem da escola sem saber absolutamente nada. Desde há vários anos quiseram expulsar os factos da História: o resultado é uma quimera que só tem tido efeitos negativos. Um deles é a ignorância que grassa por aí ao mais alto nível, até entre professores universitários..." (JHS, entrevista 2002).

Rei D. Carlos de Bragança - um retrato

por Daniel Santos Sousa, em 28.09.23

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O retrato que nos é dado de D.Carlos é o de um príncipe amante das artes e dos prazeres mundanos, e com esta imagem a propaganda republicana teve o seu alvo predilecto. Os seus antecessores (D. Luís e, antes, D. Pedro V) não poderiam divergir mais no carácter: a imagem bela e lúgubre do “Esperançoso”, ao mesmo tempo frio e romântico, político tecnocrata construído a pulso, e cuja morte precoce criou no povo uma profunda devoção, contrastava com o irmão, D. Luís, homem bom e condescendente, que beneficiou de um longo e próspero reinado, ao qual, mesmo os mais insignes opositores, não deixavam de lhe revelar as virtudes, como alguém descreveu: “Reinou, não governou”.

Mas D. Carlos não beneficiaria de uma propaganda tão favorável. Inicia o reinado da forma mais violenta ao ser confrontado com o escândalo do ultimatum inglês e a revolta republicana no Porto a 1 de Janeiro de 1891. A questão dos tabacos e os adiamentos à Casa Real levam Afonso Costa a atacar o rei na Câmara dos Deputados (na sessão de 20 de Novembro de 1906): “Por muito menos crimes do que cometidos pelo Rei D. Carlos, rolou no cadafalso em França, a cabeça de Luís XVI”. Nem as palavras de Oliveira Martins auspiciando uma nova monarquia forte e restauradora da ordem podiam adivinhar a desordem que aí vinha.

Na essência, o monarca era o produto de uma cultura liberal, não era um religioso ultramontano, o seu catolicismo reduzia-se às formalidade monárquicas, aliás, a defesa dos liberais na união do Estado e da Igreja servia para manter o clero sob o controlo do Estado e, assim, impedir atitudes mais “reaccionárias” da parte da Igreja (como os próprios diziam). D. Carlos era um político de grande habilidade e um pragmático, modelo do monarca que bem podia estabelecer paralelo com o espírito reformista do seu primo Guilherme II, que se colocou à frente do movimento socialista alemão; ou Leopoldo da Bélgica, que procurou ir ao encontro das reivindicações do operariado; ou mesmo Francisco José, que promoveu na Áustria um movimento a favor do sufrágio universal.

Ainda que com algumas diferenças para com estes soberanos. D. Carlos não se via como um enviado do divino, como o Kaiser alemão, não gostava desse “regime de opereta”, segundo os testemunhos da época o rei ouvia mais do que falava, não era homem de impor a sua vontade, aceitando o poder e os limites de um rei constitucional; não tinha, tão-pouco, ensejos de grandiloquência, ou de megalomania. Era, sobretudo, um homem energético, amante do desporto, das artes e das ciências, como comprovam os seus estudos oceanográficos. Mesmo não sendo no sentido estrito um intelectual (talvez mais perto desse conceito ficasse D. Pedro V) era um homem culto.

Dava razão ao jornalista republicano Homem Cristo que analisava a antipatia que muitos sentiam para com o rei, antipatia que resultava “unicamente da forte personalidade que, desde príncipe real, D. Carlos revelara... A Lisboa silenciosa, arruaceira, indisciplinada, sentia, por instinto, no futuro reinante, um adversário. E bastava isso para que olhasse com natural antipatia o homem destinado a reprimir-lhe os abusos e a desordem.Mas tinha carácter. Não o insultariam impunemente. Não beijaria mão que o esbofeteasse. Não deixaria cair na lama o espírito de ordem e de autoridade.” Era este o perfil do rei traçado por um homem que longe estava de ser monárquico.

Mas o rei vivia também momentos vitoriosos, como lembra o momento em que numa tourada no Campo Pequeno é aclamado com o grito: “Viva o rei liberal! Viva a liberdade! Viva o neto de Vitor Manuel!”

É difícil saber como teria sido a história de Portugal se D. Carlos e o príncipe real D. Luís Filipe tivessem sobrevivido àquele dia trágico de 1 de Fevereiro de 1908. A verdade é que naquele dia começa o século XX português. A força do rei D. Carlos, última energia capaz de regenerar o sistema, desaparecia e, ademais, inaugurava ali uma prática que se iria alastrar nas próximas décadas do novo século: o assassinato político.

Recordar Ramalho Ortigão

por Daniel Santos Sousa, em 28.09.23

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Sempre considerei que Ramalho Ortigão é subvalorizado, uma sombra por detrás do colossal amigo Eça de Queiroz, mas também encoberto pela originalidade poética de Antero, ou pela produção de Oliveira Martins. Injustamente assim acabou. Ramalho não foi romancista de craveira, porque a objectividade da análise não se coadunava com as divagações da imaginação, nem um lírico, porque às reminiscências poéticas preferia a sobriedade das ideias. Podia ombrear com os melhores historiadores, mas não foi prolífero nem profundo no campo. E, contudo, dentro do estilo foi o mais inovador. "As Farpas" não seriam o mesmo sem o seu brio. No ensaio foi primoroso e na crónica um esteta. E o que deixou escrito em vários volumes recolhe a melhor prosa do século XIX.

Ramalho estava ao nível do humanista, tivesse nascido em Inglaterra seria o protótipo do cavalheiro vitoriano, versado nas artes, ciências e letras. Elegante e sofisticado comprazia às andanças da boa sociedade. Dedicou páginas ao lazer burguês de forma tão incisiva como criticou aquela mesma sociedade. Foi homem público e tribuno. Um senador. Não ficou retido nas bibliotecas participando na vida cívica.

Autodidacta multifacetado, sobre tudo escreveu. A análise apurada deslocava-se por dimensões variadas do conhecimento. Politicamente muitos o apodam de republicano, e contudo nunca o foi, como Eça lembrou. Ramalho não atacava a monarquia, mas a partidocracia. E mais tarde opõe-se à República. Foi coerente. Em carta ao jovem João do Amaral aplaude o Integralismo Lusitano, um último fôlego de um velho patriota redimido. Talvez pela independência, superioridade intelectual e espírito crítico tenha acabado renegado. Cavalheiresco e académico, elegante e erudito, Ramalho Ortigão foi talvez o intelectual que melhor soube encarnar o espírito do século XIX português.

Recordar D. Duarte Nuno de Bragança

por Daniel Santos Sousa, em 24.09.23

Duarte,_Duque_de_Braganza_1907-1976 (1).jpg

D. Duarte Nuno de Bragança nasceu a 23 de Setembro de 1907. De pretendente da linha miguelista, a esperança da restauração monárquica, sofreu a sina dos príncipes nascidos no exílio. Cresceu longe da pátria, essa que conhecia apenas na longitude das memórias alheias. Como acontece nos dramas que envolvem as dinastias, não estava destinado a assumir a pesada herança de um trono deposto. As circunstâncias assim o determinaram.

Viveu sempre na expectativa do sonho. Para os legitimistas era a revanche de D. Miguel, quando a dinastia constitucional se eclipsava com a morte sem herdeiros de D. Manuel II, deixando apenas o tronco proscrito que do nome herdara a maldição da derrota de 1834; para os constitucionais um último fôlego para vingar a derrocada de 1910; certamente para ambos uma tentativa de reconciliação.

Não terá sido unânime e sempre o pesado fardo da divergência dinástica assombrou a possibilidade restauracionista. Mas não apenas. As divergência de doutrinas, as visões antagónicas de grupos, tudo dificultava o projecto de devolver a coroa à pátria. Terá sido enganado, traído, iludido com promessas, uma personagem shakespeariana, contudo sem o feitio de guerreiro e sem a força do carisma. Poderia ter sido rei e evitado o descalabro de um século XX tenebroso, ou possibilitado a transição para um regime representativo e constitucional (nunca o saberemos).

Salazar manteve a distância. Se tivera boas relações com o exilado D. Manuel II e com a Rainha Dona Amélia, não terá ficado particularmente impressionado com D. Duarte (com o qual nunca se encontrou). Com o tempo, qualquer possibilidade de devolver o trono foi-se desvanecendo. Morreu quase esquecido, ainda que sempre amado por quantos que aguardavam ver devolvido o regime histórico e natural. Oito séculos pesavam na consciência colectiva dos portugueses, para quem a anomalia republicana parecia ser um castigo contrariando o desígnio histórico. D. Duarte Nuno, duque de Bragança, foi prisioneio de uma redoma da qual nunca se libertou. E como poderia ter sido a solução coerente a uma transição pacífica. No final, foi a tragédia de um princípe que jamais recuperou o trono dos seus antepassados. 


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