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A paz no mundo

por João Távora, em 17.11.23

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Por estes dias ouve-se falar muito de paz, da necessidade de paz, do fim das injustiças e da guerra, e eu reconheço que esse é um debate muito estimulante. O problema é que implementá-la à força constituiria sempre uma extrema violência, uma guerra ainda mais atroz. Quase que me envergonho de afirmar que a paz entre os homens é contra-natura. Eu cresci no meio de cinco irmãos, quase com a mesma idade, e sei do que falo. Lembro-me de como o sistema repressivo implementado pelos meus pais nem sempre funcionava como o de um colégio modelar, e que entre nós às vezes armávamos umas guerras intestinas tão acirradas que chegávamos a “vias de facto” – é inerente à espécie humana a competitividade, a luta pelo poder, já para não falar de sentimentos obscuros e outras motivações muito pouco nobres. Além disso a inquietação humana, tanto dá para gestos e criações de grande nobreza como para os mais mesquinhos e destrutivos. Não é invulgar que o excesso de bem-estar em conjugação com o tédio promovam o conflito (a decadência) em todas o género de comunidades. É sabido que quando o ser humano não tem problemas vitais para solucionar inventa-os.

Que a Miss Mundo e poetas entontados pretendam acabar com as guerras é perfeitamente compreensível – até eu se me distrair caio nesse equívoco. Só que eles não entendem que o que desejam é um mundo sem pessoas. Sem pertença familiar, cultural, religiosa, enfim; sem desejo, sem afectos, sem humanidade.  A canção “Imagine” do John Lennon é um logro infantil. Mas não pensem que eu não desejo a paz no Mundo: rezo por ela frequentemente, mas principalmente pela minha paz interior, que também é difícil, mas está mais ao meu alcance. E não precisamos de ir para o Médio Oriente para perceber como é extremamente difícil desmontar os equívocos intrincados e sobrepostos de erros políticos talvez bem-intencionados que ao longo da história cavaram feridas e acicatam ressentimentos, zangas e ódios, por estes dias gravados na pedra. No outro lado de um acto de justiça encontra-se muitas vezes uma brutal injustiça, invisível do ângulo contrário. A história ensina-nos como a arquitectura de uma paz duradoura provém quase sempre duma guerra com um claro derrotado que produza uma narrativa a preto e branco, onde dificilmente cabe um espírito humano, muito menos a história dos povos envolvidos. Depois, a excessiva simplificação de um conflito complexo é a tentação de quem pretende tomar posição nele. Sem o assumirem, os activistas quando reclamam a paz num determinado conflito tomam partido pela capitulação dum dos lados. Vejamos: eu posso em causa própria oferecer a outra face (render-me) para terminar uma determinada contenda que pareça insanável, mas não posso exigir que um terceiro o faça para minha conveniência, ou para conveniência de valores que eu considere superiores.

Assistir a uma guerra é um enorme incómodo para os nossos olhos, é uma aberração para qualquer alma nobre e bem-intencionada. Esfrega-nos na cara como as pulsões de morte convivem dentro de nós, domesticadas e arrumadas numa recôndita prateleira da nossa consciência funcional. Não é difícil, num conflito profissional ou familiar, como os que acontecem aos comuns mortais, adivinhar essa força brutal que habita no fundo de cada um com raízes num indomável instinto de sobrevivência. O melhor mesmo é não submergir nessas águas sombrias.

Só há uma coisa pior que a desconcertante e trágica natureza humana: aqueles que acham possível mudá-la através da lei ou de sistemas políticos. Está mais que provado que a construção de um Homem Novo é um processo por demais sanguinário e violento. O espírito humano não se encaixa dentro dumas talas. Além do mais a verdadeira salvação só será alcançável através de um acto de liberdade – pessoal e intransmissível. Só pretende mudar o mundo quem tem receio de se mudar a si próprio.

Publicado também no Observador

Setembro

por João Távora, em 09.09.23

Um enorme tédio, e às vezes fastio, é o sentimento que nos assalta ao ver os telejornais nestes primeiros dias de Setembro, à falta de investigação um desafio à imaginação dos jornalistas que “editam a nossa democracia” como diz Miguel Poiares Maduro hoje no Expresso. Que saudades tenho do mês Agosto marcado no seu início pela intensidade da JMJ e, mais tarde, quando o alheamento à realidade naqueles mornos fins de tarde era voluntário.  Não se passa nada, até o campeonato de futebol (nos relvados, não o dos comentadores) foi interrompido por duas semanas, para dar lugar aos jogos da Selecção, que sendo um enfado, simboliza materializa a mítica ideia de União Nacional. A mítica identidade nacional. Principalmente assiste-se ao desespero dos telejornais e comentadores de serviço fazerem render especulações sobre putativos-proto-candidatos a candidatos a presidente da república, um assunto por demais entediante e sobreavaliado. Ou sobre as frases ribombantes e promessas saídas das Academias ou Universidades de Verão que marcam a nossa infeliz “reentrada”. Não podíamos ter ficado em Agosto?

Nada, mas mesmo nada, se aproveita dos “editores da democracia” que nos inspire alguma esperança numa saída do profundo buraco em que o país, ligado à máquina, está atolado – nada funciona: nem os hospitais, nem as escolas, nem os transportes, nem os serviços públicos. Desistentes também, os jornalistas que têm de fazer pela vida, ainda tentaram fazer render os silêncios e murmúrios saídos de um inútil Conselho de Estado. O que me sobra destes desinteressantes tempos de interregno não sei bem de quê, é a certeza de que não há esperança, não há saída à vista desta mediocridade de regime. E o que mais temos a fazer, aqueles que puderem, é dedicar os tempos livres aos amigos, à música, à leitura, e a muita oração e súplica.

Confissão

por João Távora, em 06.06.23

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Os encontros e relações pessoais mais desagradáveis com que deparei ao longo da minha vida social e profissional deram-se sempre com aqueles indivíduos com uma autoconfiança desmesurada face às suas reais capacidades intelectuais. Numa relação de continuidade, obrigam-nos a um grande esforço de tolerância e autodomínio. Mais trágico é quando essa segurança não se faz acompanhar pela necessário calibre ético e moral. Estamos a falar do vulgar aldrabão que, se for dotado de uma esperteza acima da média, pode provocar muitos estragos aos seus semelhantes, e mais ainda se tiver enveredado na política. São pessoas que falam alto com frequência, com as certezas na mesma proporção em que lhes faltam escrúpulos. Numa análise precipitada, a mentalidade moderna igualitária favorece-os, mas, na verdade, mais cedo que tarde, a corrida de longo curso que é a existência acabará por fazer justiça. É uma intuição minha, que já vou para velho.

O problema da autoconfiança desmesurada é que ela com frequência impede um olhar panorâmico sobre um problema e, o que é pior, demasiadas vezes inibe a capacidade de se colocar no lugar do outro, anulando-o. A pressa de proclamar um veredicto também não ajuda. A complexidade da realidade é por natureza uma lição de humildade. A riqueza do olhar exterior resultará no mesmo. Por isso é que a insegurança e a dúvida são agentes de empatia entre as pessoas, que são uma amálgama de imperfeições. Um pequeno defeito físico pode até constituir um factor estruturante para uma personalidade mais empática, mais rica, mais inteira.

Esse é o fascínio da humanidade. Como um interminável e intrincado puzzle, com falta de peças e de desenho difuso em constante ajustamento. Pessoas que nunca mais acabam somos todos, a reclamarem olhos suficientemente curiosos e atentos para se deixarem seduzir. Como é que é possível não acreditar em Deus, num desígnio maior? O defeito, o erro, a precaridade revela-nos esse conceito de perfeição, um absoluto, algures.

Eu sei bem quais os pequenos arranjos que a minha pessoa precisava para ser mais perfeita, para que alcançasse superiores patamares de realização, talvez de santidade. Gostava de não me preocupar tanto com o olhar ou a voz dos outros, que às vezes me provocam arritmias e me embargam a voz que queria dizer tudo certinho. Gostava de saber ouvir melhor os outros, de ler mais, ter mais memória, ser mais rápido no pensamento, mais versátil na verbalização, como alguns advogados ou políticos que vemos na televisão.

Não estou é nada certo que a minha gente gostasse dessa pessoa. Estamos bem assim 

Não me gritem! *

por João Távora, em 24.05.23

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É fácil constatar que é cada vez mais difícil juntar 10 convivas num jantar sem o risco de uma zanga e alguns amuos numa cacofonia de arengas inconvenientes. As redes sociais confirmaram que deixou de existir um chão comum, uma base de entendimento, que toda a gente, mesmo toda, pode ter e afirmar a sua opinião muito própria, sobre história, física quântica ou teologia, e até da vida dos outros. Há muito que as opiniões de alguns, os mais afoitos ou até alcoolizados, extravasou o café do bairro para o Facebook ou o Twitter. Entretanto, as correntes de opinião foram sendo cortadas em fatias cada vez mais fininhas para dar para todo o pessoal, cada vez mais categórico e cioso da sua originalidade.

Evidentemente que ainda sobram os grupos de amigos que não subjugam uma boa conversa a um duelo de opiniões ribombantes arremessadas para prazer narcísico, ou apenas por “intransigência nos princípios”. A boa conversa é uma arte delicada que não resiste à tirania de quem quer impor uma perspectiva “muito sua” da verdade, muito menos da vida alheia. O pior por estes dias é mesmo a atomização das razões por que cada um pugna, com tanto denodo. Tempos houve em que poucos mais temas como o divórcio ou a homossexualidade fracturavam os salões da sociedade que “contava” – hoje tudo serve e o país tornou-se num gigantesco circo de indignações. A democratização das opiniões deu cabo das velhas regras de boa educação e do bom senso que durante séculos serviram para domesticar os mais extremos ímpetos opinativos, com um normativo que delimitava o âmbito das conversas, para não aborrecer os convivas (não se falar de doenças) ou evitar que a refeição acabasse numa zaragata (não falar de política e religião). Aqui chegados, constata-se que as opiniões próprias que todos se vêm animados a cultivar revelou-se um exercício pouco mais que estéril. Como toda a gente sabe é esse o destino das ideologias em decadência: foi o que aconteceu com os trotskistas de quem se dizia que “um trotskista é um partido, dois são uma internacional, três preparam uma cisão”. Ou o fenómeno acontecido com o movimento monárquico depois de 1910, definhando num processo de apuramento insaciável de pureza ideológica e de princípios, enquanto o Estado Novo punha ordem nas hostes. Ou como a direita portuguesa que desistiu de tentar juntar liberais e conservadores, num processo de desmultiplicação em correntes de graduação progressiva. E vem o Chega dar mau nome aos conservadores, há décadas (ou séculos, desde o rei Dom Miguel) oprimidos no colete-de-forças que era o CDS quando queria ocupar o centro político - um lugar à mesa do destino da Pátria. Já para não falar dos católicos entrincheirados em correntes progressistas ou tradicionalistas, guerras intestinas pela missa em latim, contra a missa em latim, contra a comunhão na mão ou a favor da comunhão na boca, a favor do Papa quando é “progressista” e contra ele quando é conservador – as discussões que para aí correm, meu Deus!

Evidentemente que toda esta impertinente vozearia é potenciada pelas redes sociais, instigando permanentemente os incautos utilizadores ao desafio a fazer exaltados juízos definitivos sobre tudo e nada, com a pretensão que lhes cabe – a cada um - o sagrado papel de educar o seu semelhante – sim, eu sei que isto tudo começou com os blogs, e que eu tenho a minha parte de culpa. O problema é que este fenómeno, que na política nos roubou o pouco sossego possível em democracia, um chão comum e algum sentido do longo prazo, está a transformar o sistema num exercício ensurdecedor de populismo, de gente exaltada e ofendida em constante troca de posições. É neste ambiente que emergem das catacumbas dos partidos personagens de inimaginável vulgaridade.

Mas o pior mesmo – e é essa a mais grave das ameaças - é permitirmos que esta cacofonia invada os salões das nossas casas a estragar qualquer conversa civilizada, livre de moralismos ou proselitismos. Cuidado, não deixem que o Twitter se sente à vossa mesa, que o que sobra da nossa civilização ruirá bem mais depressa, pois não haverá convivialidade que resista. Uma opinião é apenas uma opinião, e só tem utilidade a quem a pedir. Por favor, não no-la gritem aos ouvidos.

 

* Título adaptado do genial livro “Não me grite” de Quino, cujo desenho da capa ilustra esta crónica

Consolação

por João Távora, em 09.08.22

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Uma das palavras que mais gosto é “consolação” por causa dos seus significados. Lembrei-me disso, a banhos na praia do Medão, ou Supertubos como é conhecida agora por causa dos surfistas, a meio caminho entre Peniche e a Praia da Consolação. Esta, delimitada a sul por uma falésia é encimada por um forte com o mesmo nome, deve-o à Capela quinhentista existente nesta localidade de Atouguia da Baleia, dedicada a Nossa Senhora da Consolação. 
 
Analisemos então a sua semântica. Se “consolação” não significa exactamente Conforto, Felicidade, Prazer, Alegria, Contentamento ou Estado de Graça, pode-se associar a qualquer destes sentimentos. Mas é muito mais importante e presente que qualquer um deles: a consolação é uma sensação dinâmica, que é precedida de certa maneira por um estado de espírito negativo, associado a sacrifícios ou à ansiedade – pode ser inquietação, dor, medo, cansaço, etc., em manifestações mais ou menos intensas. É na sequência destes padecimentos que podemos ser agraciados por um momento de consolação, que naturalmente não significa que o mal que nos afectava tenha sido erradicado - "enquanto o pau vai e vem folgam as costas", diz o povo na sua crueza. Consolações são, no fundo, acontecimentos singelos da vida quotidiana: a notícia de que o nosso filho entra para a universidade, ou aquando num hospital recebemos a visita de um velho amigo. Mas também pode ser uma refeição feliz com a família e amigos, o término de um trabalho exigente, uma cerveja fresca num fim de tarde quente. Mas se é certo que um prazer pode ser um consolo, uma e outra são coisas bastante diferentes. Ouvir uma peça musical que gostamos muito ou saborear um pitéu, serão certamente prazeres sem caberem propriamente na categoria do consolo. Os consolos não se inserem na ordem dos nossos desejos carnais ou intelectuais, mas antes possuem um vinculo divino, são-nos inteiramente oferecidos - surpreendem-nos. Eu explico-me: é coisa mal-aceite na ordem histriónica vigente, mas absolutamemte incontestável, que a vida é essencialmente feita de padecimentos e consolações: uma consolação é o que nos impele a continuar a ultrapassar as dificuldades que o destino nos desafia diariamente. Consolação não se confunde imediatamente com alegria, que é um sentimento mais intenso, exterior, por vezes eufórico – a alegria é sedutora e mundana, já o consolo é espiritual e reflexivo. O máximo com que se exprime o consolo – a consolação não obriga à expressão - é com um suspiro ou talvez sorriso discreto. Porque raramente partilhamos um autêntico consolo, sem que o outro nos seja íntimo e cúmplice. É um consolo chegarmos a casa depois de umas férias agitadas, é um consolo chegarmos a casa depois de um dia intenso de trabalho, é um consolo fazermo-nos entender sobre um tema complicado. É um consolo uma palavra amorosa da nossa cara-metade ou o sono angelical do nosso bebé. É um consolo uns minutos de oração no silêncio de uma igreja vazia numa tarde de Verão. É um consolo terminarmos uma crónica sobre um tema que há muito tempo nos estava a inquietar e reclamava ser escrita.
 
A falta que nos fazem consolações...
 
Crónica dedicada à Tia Teresa de Castro Simas, que nos seus 87 anos de idade partilha comigo o gosto de reflectir e debater estes temas complexos e fundamentais.

São as histórias que nos salvam

por João Távora, em 17.06.21

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Vem-nos da infância o irresistível fascínio por histórias. Uma história que nos resgate do vazio, dos medos e angustias, da fria solidão que se esconde na camada mais interior de nós mesmos. Talvez por isso, naquele sombrio lusco-fusco de alma que era a hora de adormecer, da criança largar as amarras ao dia agitado pelos espantos, afectos e sensações novas, antes do mergulho no escuro, na ausência, fosse tão precioso consolo ouvir uma boa história contada pelo pai ou pela mãe à beira da nossa cama.

Se na infância é uma boa história que nos salva a vida, não o é menos na maturidade; afinal passamos a vida à procura de histórias, somos caçadores de histórias, que nos restabeleçam as energias e o ânimo para abraçar a luta diária de deveres e maçadas. É assim que nos descobrimos ávidos por uma história oculta num retrato todo formal, numas ruínas duma casa, numa obscura gravação sonora antiga ou nas glórias passadas exibidas em símbolos, num emblema ou brasão de armas ou através de testemunhos confidenciados em documentos amarelecidos pelos séculos. A perdermo-nos num nunca acabar de pistas e enigmas, de parentescos por desvendar, contradições que reclamem pela nossa curiosidade e atenção, e a não menos necessária especulação, que no fim do dia nos permita ganhar uma história que nos resgate para longe das nossas misérias, da nossa precaridade, que nos expanda para outros horizontes temporais e existenciais. A descodificar, a investigar as pontas soltas duma história mal contada, numa relação íntima, o mais das vezes um mensageiro do passado, a que nos rendemos como a um velho amigo. Através de frases que nos chegaram por testemunhos vividos (quase sempre temos direito a uma tia ou parente com uma memória prodigiosa, repositório de mil e uma histórias), caracteres desvendados em vetustas fotografias que carecem de nomes; feições ou trajes, recados nas entrelinhas de diários ou cartas. As condecorações retratadas ao peito dum ufano antepassado do século XIX dizem muito das suas andanças políticas…  

Se é esse o trabalho do historiador, sistematizado com as suas ferramentas, métodos científicos e ciências auxiliares, esta é também uma actividade eminentemente humana, responder à democrática inquietação que nos desafia a enfrentar o mistério, descobrir os dramas que se escondem à nossa volta, as peças escondidas de um puzzle sempre inacabado, que reclama pela nossa curiosidade e onde vamos à procura de mais humanidade, quem sabe o projecto de Deus lá escondido. Era isso que procurava o meu pai, que venho redescobrindo tardiamente pela sua obra historiográfica, estudos e publicações, em particular à volta da genealogia e da heráldica medieval. Agora percebo que o que ele pretendia não era apenas listar nomes e ligações genealógicas, ou enumerar as regras e as formas dos antigos “emblemas” de famílias ou comunidades geográficas. O que o meu pai procurava era conhecer as pessoas que daí emanavam e quem sabe descobrir alguma história. Porque a história é feita de histórias com pessoas lá dentro, de onde resgatamos a nossa humanidade.  

Do passado onde nasci

por João Távora, em 09.03.21

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Tenho andado desaparecido destas andanças do blog porque me vi confrontado pelo luto e com a subsequente desmontagem da casa dos meus pais que ainda perdura. Uma operação profundamente emocional, que exige revisitar objectos, armários, gavetas, papéis, fotografias, esqueletos e memórias de tempos passados, sentimentos díspares e contraditórios que só agora me autorizo espiolhar.

Em particular, descobrir ou revisitar manuscritos do meu pai remete-me para uma proximidade que, se não fossem estas circunstâncias, nunca me atreveria a reivindicar. Esse encontro tem-me ajudado a perceber uma narrativa que perpassa pelas paredes daquela casa de família, através dos quadros, gravuras, daguerreótipos ou fotografias de antepassados e, não menos importante, na iconografia miguelista que é legado da família que o meu pai com zelo manteve e cultivou como pode, pelo menos numa perspectiva histórica e simbólica - qualquer pessoa mais atenta perceberia que naquelas paredes se contava uma história, onde é que eu andava com a cabeça...

Do seu espólio diversificado, entre muitos ensaios históricos e publicações que revisitei por estes dias, também sobra um interessante conjunto de documentos referentes ao CDS e à situação política nos anos de 1974 a 1976, duas versões manuscritas de um romance duas vezes começado, duas vezes terminado e jamais publicado; entre muitos outros textos e papéis escrevinhados na sua letra bem desenhada em papel almaço quadriculado, que era onde as pessoas como ele escreviam naquele tempo em que ainda não havia blogs. Uma bebedeira de informação e sensações emerge do revirar das estantes, que não só o pó em que todos nos tornaremos um dia. Por vezes reavivaram-se-me na memória os melhores tempos daquele espaçoso andar do princípio do século XX em Campo de Ourique onde nós, os cinco irmãos “Abrantes”, crescemos e nos fizemos gente.

Vem isto a propósito do gosto pela história que sempre nutri, mas que desde os meus quarenta e tal anos ganhou foros de voyeurismo, na emoção que é procurar o encaixe de peças de um puzzle pouco intuitivo, com a leitura de livros, ensaios, documentos e até cartas antigas, com a partilha de testemunhos dos tios mais velhos (tenho várias horas de gravações das suas memórias), de conversas com amigos que nos ajudam a deslindar enigmas genealógicos (o importante que vêm sendo os meus amigos nestes últimos tempos), cujas soluções às vezes escondidas à frente do nosso nariz guardamos como troféus, como se de alicerces existenciais tratassem, tomados de uma espécie de paganismo – Deus há-de perdoar-me. De resto compreenda-se este meu amor acrisolado pelo passado, atendendo à resposta que Churchill deu quando o questionaram sobre o assunto: "Claro que gosto do passado, nasci nele".

Resta saber o que serei capaz de fazer com o legado histórico que me tem sido desvendado e há anos venho juntando e organizando. Depois do luto, talvez.

Tempo de trevas

por João Távora, em 14.01.21

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Das regras de confinamento ontem decretadas pelo governo, a melhor das excepções é sem dúvida a liberdade dada aos nossos jovens e crianças de frequentarem os seus estabelecimentos de ensino. Parecia-me pouco realista e até bastante insalubre do ponto de vista mental fechá-los em casa, restringidos a aulas e contactos sociais virtuais em espaços confinados – é contra natura. Depois, há um equívoco que urge desmontar: as aulas virtuais são um potenciador das desigualdades, que não apenas as económicas. Prejudicam profundamente os miúdos menos expansivos social e intelectualmente, que carecem de acompanhamento e estímulos mais exigentes. 
Sempre aqui manifestei as minhas dúvidas quanto ao real impacto dos diversos pacotes de restrições que ao longo de quase onze meses nos vêm sendo aplicadas à experiência. A ideia com que fico é que a dinâmica da epidemia lhes é em grande medida indiferente, mas como é bom de ver, esta é uma perspectiva tabu, maldita até - chamem-me "negacionista". Por isso pressinto nas inúmeras excepções que nos são concedidas neste Estado de Emergência uma certa cedência a essa tese: perdida a batalha da economia num panorama global de profunda depressão, o que as "autoridades" pretendem é manter a ilusão de que nos estão a proteger, que têm um plano e uma estratégia científica de limitação de danos da pandemia, e que ao fim do dia o seu sucesso dependerá do sentido de responsabilidade de cada um e não de um vírus extremamente contagioso. Para tal ilusão contribui o sensacionalismo das notícias em directo das enfermarias (adoptado agora também em repugnantes campanhas de publicidade) em prime-time, a imporem um verdadeiro estado de terror às pessoas indefesas encerradas nas suas casas – e note-se que nem no Verão, quando os números de internamentos e as "vítimas" do Covid19 eram baixos, essa narrativa do terror nos deu tréguas. Acontece que é neste tabuleiro que o regime (lato sensu) joga sua sobrevivência democrática. Para mais, é sabido que depois do medo, é com a culpa a melhor forma de se vergar um indivíduo.
Quase um ano passado deste inferno real e mediático, resta-nos rezar por uma rápida campanha de vacinação. Das chagas das solidões e da pobreza teremos de cuidar depois, quando se forem esvaziando as UCIs e os “especialistas” do Infarmed desocuparem o palco que lhes demos. E isso também não vai ser fácil, porque o poder é das mais funestas tentações.

Grosseria, a outra epidemia

Reflexões sobre a anormalidade do novo normal

por João Távora, em 24.07.20

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Existem danos colaterais da pandemia que, na hierarquia das prioridades vistas da enfermaria, acabam menosprezados e não deviam. Nem me vou centrar no problema causado pelo distanciamento social que, para muita gente que com esforço fomentava a sua rede de relações, a dinâmica será difícil de inverter. Constato com alguma tristeza como, apesar do desconfinamento, muitos ainda resistem a uma presença física numa reunião, mesmo que dentro das regras sanitárias, na possibilidade de poderem fazê-lo através de uma plataforma virtual. E nem estou a falar daqueles mais frágeis, prudentes ou temerosos, mas daqueles que por comodismo ou timidez evitam deslocações ou confronto pessoal. Acontece que as relações humanas são por natureza uma construção complexa que, para a maioria das pessoas civilizadas mas sem especiais dotes, exige algum esforço. Talvez por causa dessa falta de “ginástica” venho notando aqui e ali algumas sensibilidades exacerbadas e espíritos melindrosos. A manutenção de uma rede de afectos compensadora requer exercício contínuo e músculos oxigenados em sociabilidade. O problema não são os outros, está sempre em nós. Também não me vou centrar na questão do teletrabalho. Há muitos anos que o pratico, mais por necessidade que por opção. Evidentemente aqui, uma vez mais, a dinâmica relacional faz muita falta seja na tomada de decisões ou no processo criativo, já para não falar da competitividade que o convívio presencial promove com consequentes resultados na produtividade. A convivência com uma equipa ou hierarquia permite uma aprendizagem que nenhuma ferramenta virtual substitui. Além do mais o teletrabalho impede uma saudável separação de dois mundos distintos mas complementares, o familiar (e de lazer) com o laboral.

Mas se queremos mesmo encarar a regressão civilizacional que nos ameaça, devemos ter cuidado com a degeneração do cumprimento e das boas maneiras em geral. Digo-vos que aquela cotovelada adoptada pelos políticos em Bruxelas que vemos na televisão é uma coisa esteticamente deplorável. Mais vale usar a vénia chinesa. Suspeito que vai ser difícil voltar a por toda a gente a cumprimentar-se com urbanidade.

Mas isso dá muito trabalho tanto a ensinar quanto a praticar. Desde pequeno que na minha família todos fomos insistentemente educados a ser corteses e cumprimentar todas as pessoas, de qualquer condição, na obediência de um protocolo exigente. Evidentemente que não me esqueço como era desagradável quando em ocasiões festivas ou à porta da missa tinha de cumprimentar alguma senhora de cerimónia, com perfume demasiado intenso e muito pó de arroz na cara. Havia o risco de ficar com a marca do batom impresso numa bochecha que me enojava. Em casa dos meus avós o protocolo era uma longa tarefa de distribuição de beijinhos e pequenos inquéritos pretensamente simpáticos, a começar nos donos da casa e a continuar nas tias, terminando a empreitada nuns desafiantes passou-bens apertados, que me deixavam as mãos em brasa, ministrados pelos meus tios mais caturras. Só depois de consumado todo este ritual, estava livre para brincar com os meus primos. Imaginem vocês que os meus pais até nos ensinaram a beijar a mão a senhoras de um certo estatuto socio-etário, e nos deram aulas práticas de como se cumprimentam os príncipes. Esses ”sacrifícios” apesar das voltas que a nossa vida deu para longe desses universos, vieram a revelar-se-me muito úteis. Acontece que as boas maneiras são o chão com que se constroem relações harmoniosas e sãs. As boas maneiras são uma boa máscara para os nossos estados de alma, o mais das vezes instáveis, por razões tantas vezes obscuras.

Por estes dias de COVID19, nos encontros sociais que graças a Deus já vou retomando, tenho notado por entre a miudagem nova um certo alívio por estarem formalmente dispensados de cumprimentar os mais velhos, preceito que, suponho, sentem como uma espécie de incómoda vassalagem ou simplesmente uma limitação da sua liberdade. Ainda não descobriram que somos todos vassalos uns dos outros, e que estas cortesias todas nos enquadram e libertam para relações francas, construtivas e mais duradouras. Sem equívocos desnecessários.

De resto, como bem sabemos, é mais fácil destruir que construir. Por isso suspeito que não será fácil a retoma das boas maneiras, principalmente entre os mais novos, sabendo nós que é graças a esses complexos protocolos que construímos a nossa civilização. Que espero ninguém queira trocar por outra coisa.

A falta que faz um pai

por João Távora, em 13.12.18

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Queria escrever um texto sobre a importância da paternidade, advogar em causa própria (tornei-me um pai a tempo inteiro), algo que nestes tempos de feminismos exacerbados e decadência da chamada “cultura patriarcal”, talvez seja um atrevimento. Não quero de todo contrariar o cânone contemporâneo de que Pai e Mãe devem partilhar funções em casa: de facto não está escrito nos cromossomas quem deve lavar a loiça, mudar a fralda ao bebé a meio da noite ou pendurar a roupa no estendal. Mas parece-me importante homenagear as virtudes masculinas inscritas na paternidade, mais ainda quando tenho a convicção de que os tempos modernos consolidaram a matriz maternal do Ocidente, em cima da marca feminina da cultura católica, e se chega ao democrático século XX da revolução Pop, pelas utopias do Maio de 68 “Imagine all the people”, que cimentou o império do amor romântico e outros sentimentalismos muito femininos, já para não falar do predomínio da psicologia, da introspecção, do autoconhecimento, do diálogo e da compreensão, de afectos e negociações, tudo atributos de forte pendor maternal – que me perdoe o Eduardo Sá que é um modelo de mãe. Toda a cultura moderna exorta o pai a ser mais como a mãe, a seguir estes valores pacifistas, a saber interpretar sinais subtis, nuances emocionais, desejos não explícitos, sentimentos implícitos, negociações infindáveis; e há que conceder que perante este caldo, o macho arrisca-se a perde-se em pieguices melosas, terrenos pantanosos que não são inteiramente seus; e pior que isso, os filhos arriscam à grande perda de terem de crescer com duas “mães” ternurentas e protectoras, e muita confusão nas suas cabeças. Sim, é importante que o Pai procure entender e tire vantagem da sensibilidade e da astúcia feminina da sua companheira, e saiba optar por diferentes estratégias para a aproximação com os filhos – em matéria de educação, levar a carta a Garcia exige equilíbrios sensíveis, muito afecto, diplomacia, algum contorcionismo e, principalmente, razão. Aqui chegados e entendidos parece-me que hoje em dia é preciso reclamar a libertação do papel masculino da repressão igualitária que arrisca fazer do casal uma cataplasma incipiente e incapaz de cumprir os seus desígnios. Tanto mais que acho injusto exigir à mulher outras disposições que não as suas mais naturais, que significariam uma sobrecarga ao instinto maternal que lhe confere demasiadas obrigações e, quem sabe, complexos de culpa. O facto é que a “veia masculina” do Pai faz falta às crianças, com tudo o que o excesso de endorfinas lhe confere, para cortar a direito quando é preciso, de empurrar as crias para a arena do risco e do desafio, ou de assumir a tirania de clarificar as meias tintas, de desmontar a manipulação, assumir a voz grossa para impor limites ao que não se pode mais tolerar, disfarçar a angústia numa resolução salomónica, sacrificar a acomodação e a paz que se tornou podre, impedir uma injustiça, pôr um adolescente na ordem... enfim. 

Fui educado por um pai que, talvez por ser muito brincalhão e afectuoso avant la lettre, do alto do seu 1,90 de tirania e potente voz de tenor, muitas vezes me desconcertou com as suas fúrias bravias – boa parte delas com alguma razão. Passadas mais de duas décadas de saudade, tenho a certeza que muita falta faz para a formação do bom carácter dum infante a complementaridade harmónica mas distinta das marcas paternal e maternal. Que a febre da igualdade não acabe com isso é o meu desejo. De resto, a vida descobre sempre caminho e um pai faz muita falta.

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Expulsa do Éden, a humanidade tornou-se escrava dos elementos, receosa da criação, desconfiada do seu olhar. O homem ganhara consciência de si, prenúncio de uma tragédia. Com o tempo, foi aprendendo (e obrigado) a olhar à sua volta, a interpretar o Mundo e assim defender-se da sua violência, iludindo a precariedade. Olhando para fora identificou as ameaças mas descobriu a Beleza onde se esconde Deus. Seduzido pelo seu reflexo, assim foi progressivamente fortificando a ideia de individualidade que o olhar de Cristo consolidou na noção de Livre Arbítrio (vontade) e na consciência da sua singularidade de criatura divinal e dramática. Esse percurso é reflectido nas artes, da literatura à pintura, passando pela música; do formalismo à exacerbação do filtro das paixões, desejos e frustrações, da genialidade com que o artista foi submetendo a realidade à sua recriação. Daí ao auto-convencimento da supremacia do seu olhar sobre a realidade em si mesma, fixado na sua auto-suficiência, o “eu” arvorou-se no fim e o princípio de todas as coisas e até a beleza caiu em desuso. Não interessa mais o que são as coisas, mas como cada um as sente, e vai aonde te leva o coração. Assim, o individuo desliga-se dos outros e da História, descarta o compromisso por troca com o efémero, todos filhos únicos, geração espontânea,  tudo é relativo, sensações, uma pedrada, uma “experiência”, um estado de espírito, o amor-próprio e outras balelas, uma "assinatura" esborratada num monumento, “ó Leonilde is lôve”, que a Arte é um direito de todos como a opinião. 

Aqui chegados, tornámo-nos todos narcisos definhando estéreis à beira do rio que flui indiferente, embevecidos (ou acabrunhados) com o próprio reflexo, que a vida são só dois dias e amanhã é o fim do mundo.

 

Imagem: Metamorfose de Narciso, Salvador Dali 

Vamos conversar sobre o tempo?

por João Távora, em 02.08.18

Poucos climas há tão encantadores como o de Portugal. O Inverno é neste país menos áspero que nos países do norte, mesmo menos áspero que a região central de França. A neve só cai nos cumes dos montes. Gozam-se dias admiráveis que rivalizam com os nossos mais amenos dias de Primavera. No Verão, a temperatura é muito mais elevada do que em Espanha. E passam-se aí às vezes calores de abrasar, mal moderados pelos ventos quentes do Oceano Atlântico; mas encontram-se ali tantos sítios maravilhosos, onde reina uma Primavera eterna.  

Maria Rattazzi,

Portugal de Relance,

1880

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À hora que escrevo esta crónica deve estar o estimado leitor em casa, de cócoras debaixo da mesa de jantar para se proteger dos raios UV, com uma garrafa de água gelada numa mão uma peça de fruta fresca na outra, com ar condicionado no máximo e a avó fechada no WC dentro de uma banheira de água fria, enquanto a televisão sintonizada num canal de notícias, emite alertas vermelhos e o repórter questiona os incautos transeuntes sobre que acham do onda de calor - todos temos direito à nossa importante opinião. A Comunicação Social há uma semana antecipa em parangonas que com a chegada do mês de agosto chegarão dias de inclemente canícula.

Triste sina esta de ser da geração em que "o tempo" se tornou conversa séria. Tempos houve em que esse era tema de quem não tinha nada para dizer. Aqui chegados, até eu sou bem ensinado e concedo que o assunto é importantíssimo, numa sociedade em que ao Estado deixou de competir a boa governança da coisa pública e em troca de votos se advogou responsável pela felicidade das suas mal-agradecidas gentes - uma causa obviamente perdida. Em boa verdade fomos todos transformados em Princesas da Ervilha, que merecemos ser educados para o nosso bem-estar, com o aconselhamento da periodicidade conveniente para um retemperador copo-d’água e dos benefícios de nos recolhermos numa revigorante sombrinha quando confrontados com temperaturas altas. Bom é saber que entidades oficiais cuidam de nós, venerandos e obrigados. De resto nesta altura do campeonato, ao sol só trabalham os vendedores de bolas de Berlim, alguns operários da construção civil, os agricultores e uns quantos maduros voluntários a montar festivais de Verão e bailaricos de província – a luta de classes é um assunto quase encerrado.

Em tempos que já lá vão era da sabedoria popular que para o bem-estar da família nestes dias tórridos em casa corriam-se as cortinas e fechavam-se gelosias. Bem sei que corriam tempos em que o sol era um parceiro de duvidoso estatuto: todos os homens usavam chapéu e donzela reputada tinha a tez clara, andava de sombrinha, e só ia á praia mediante receita médica. A pele tisnada não era um bom indicador social, mas sim indício da actividade laboral na pesca, construção civil ou na lavoura. De resto eu sou do tempo em que só os estrangeiros e uma certa elite se entretinha a passar o estio nas nossas paradisíacas praias, besuntados de bronzeador (uma mistela gordurosa à base de tintura de iodo) e pomada Caladril em cima das feridas do nariz e das bochechas. Nos anos sessenta, enquanto Sir Paul McCartney e Sir Miguel Sousa Tavares se deleitavam no paraíso virgem Algarvio, em Milfontes no Baixo Alentejo, onde eu assisti à chegada do homem à lua, a praia no Verão era uma extravagância de dúzia-e-meia de famílias veraneantes que os autóctones exploravam legitimamente e que só acediam ao Domingo para piqueniques tribais, todos vestidos de cima a baixo, homens de chapéu e as senhoras de lenço na cabeça e as viúvas de preto, a distribuírem caldeirada de um grande tacho para a prole de pele alva até aos braços. A democracia demorou a chegar aos banhos.

Voltando ao tema quente da actualidade, quer-me parecer que os portugueses da metrópole (uns mais que outros, bem se vê…) sempre tiveram de enfrentar períodos tórridos durante o Verão, como dizia Maria Rattazzi nos anos 80 do Século XIX. Há que colocar a questão sob perspectiva e sem alarmismo. A minha memória não chega tão longe, mas lembro-me na infância de umas tardes tórridas no 3º andar de Campo d’ Ourique que perturbavam particularmente o génio do volumoso Senhor Marquês, meu saudoso Pai. Recordo-me como arfava nesses dias abrigando-se a escrever fanaticamente atrás de uma ventoinha que, de caminho desaustinava e sublevava também as folhas de papel manuscritas, por entre golos de água fresca que sofregamente consumia de uma garrafa de vidro para seu uso exclusivo. E lembro-me de um célebre dia 13 de Junho, julgo que em 1980, num "Passeio de Domingo" do Centro Nacional de Cultura, em que perto de 100 associados navegaram pelo Tejo acima numa barcaça dos fuzileiros, sob temperaturas perto dos 50º sem uma sombra digna desse nome até Escaroupim, perto de Salvaterra de Magos, onde pernoitámos em tendas cedidas pela marinha – íamos morrendo todos. E do saboroso que pode se tornar uma cerveja morna, já que a excursão tinha o patrocínio da Cerveja Sagres "Europa", novidade na altura em que a CEE era um mito exótico e mobilizador.

Como se verifica pelo atrás descrito, o Tempo pode ser afinal um bom motivo de conversa. E se não tivermos assuntos sérios com que nos preocuparmos, uns dias com dois graus em Lisboa, um nevão em Vila Real de Trás os Montes, ou acima dos trinta na Capital abrem noticiários e convidam-se meteorologistas e sociólogos a dissertar sobre as alterações climáticas e o fim eminente do Mundo como o conhecemos. Nada que por estes dias umas Ameijoas à Bulhão Pato e uma garrafa de Vinho Verde gelado não resolvam. E depois, como nos está prometido um dérbi para a 3ª jornada do campeonato no final de Agosto, descansem os meus amigos animação não nos vai faltar. Como dizem os ingleses, “Stick to the weather”!

 

Nota: agradeço ao Eurico de Barros a inspiração para a ilustração desta crónica.  

Setembro

por João Távora, em 15.09.17

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Em Setembro vinha o tempo de férias que sobrava e se arrastava, desenganado e indolente com o sol a baixar e as sombras a crescer, dia após dia, até chegarem as primeiras nuvens e a brisa fresca, como um prenúncio do Outono, o início das aulas, o fim da festa. Eram dias em que fazíamos da rua extensão da casa asfixiante de enfado, a jogar à bola com os outros miúdos desocupados e impacientes, perante a inquietação das mães que espreitavam à janela ansiando pelo novo ano escolar. Aquele tempo era um tempo de gloriosa imprudência em que criançada, sem medos, em pequenos bandos corria pelas ruas de Campo d’Ourique, que lhes conhecia todos os segredos, do recanto que faz de baliza para jogar à bola, aos quintais escondidos entre os prédios, os figos doces que sobejavam nos ramos mais altos da figueira – que valiam tanto ou mais que o gelado que os nossos filhos, numa pausa dum jogo de consola, vão buscar comodamente ao congelador. Aquelas tardes do mês de Setembro lembram-me a minha magnífica bicicleta verde-garrafa, altaneira em cima dos seus pneus 26’ que me obrigavam a esticar todo para chegar aos pedais. Era tempo passeatas pachorrentas ou de corridas contra-relógio entre a malta do bairro a bater recordes ali na Praça Afonso do Paço, onde o rectângulo inclinado convidava a uma pedalada desafiante na subida e estonteante na descida. 

O mês de Setembro também valia umas últimas fugidas à praia, com o areal meio abandonado, de águas tépidas e melancólicas num prenúncio da insurreição das marés vivas que nos iriam devolver de volta a casa, aos longos dias de espera pelo início das aulas que tardava. O tédio é um privilégio que as novas gerações não conhecem, entre o estímulo constante dos videojogos e os canais temáticos com aventuras e animação sem cessar – obrigava-nos a inventar, a ousar e às vezes a desatinar.
O fim de Setembro era o tempo das primeiras incursões à escola ou ao liceu, em busca dos horários e das turmas, cuja publicação tardava – tempos houve depois do 25 de Abril em que as férias se arrastaram até ao final de Outubro. Vinham as primeiras chuvas, as listas do material escolar e a ansiada visita à papelaria: lembro-me do gozo que me davam o cheiro do estojo novo, os cadernos imaculados, quem sabe uma mochila para estrear. Eram dias de um estranho júbilo que disfarçavam a melancolia do fim do Verão, a noite que cavalgava pela tarde dentro, as árvores que se despiam das folhas secas a estalar debaixo dos meus pés no caminho para a escola, nos primeiros dias de um novo recomeço, de rever outros amigos. Verdadeiramente o ano terminava gasto e envelhecido, em Setembro.

 

Dedicado ao meu filhote José Maria que por estes dias começa o segundo ciclo numa escola e vida nova.

Mais uma crónica na Estação Tola

por João Távora, em 04.08.17

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Se há altura do ano em que a conversa fiada e a especulação sobre a bola é legítima e até recomendável é nesta época estival, também conhecida como tola, em que as equipas se preparam e os adeptos se enchem de expectativas para as competições que tardam em recomeçar. Na verdade por estes dias o calendário futebolístico inicia-se cada vez mais cedo, um fenómeno que também vem acontecendo com o ano lectivo que roubou o mês de Setembro aos nossos miúdos que nem sonham como era ocioso e estruturante o longo Verão dos seus pais. Este ano o Campeonato Nacional que modernamente se chama “Liga” (os portugueses são peritos em mudar os nomes às coisas convencidos que dessa forma as mudam) começa na primeira semana de Agosto, entrando pelas nossas férias adentro, quando os adeptos deviam estar, não nas bancadas dos estádios, mas à beira-mar a ler preguiçosamente novidades sobre reforços milagrosos e as tácticas inexpugnáveis que dizimarão os adversários, atrasando a leitura do clássico que estava prometida para estas férias. 

Mas a verdadeira e grande novidade da época futebolística que se avizinha é sem dúvida o vídeo-árbitro. Este novo actor, mais do que revolucionar o futebol que passará a ter mais uma ou outra paragem inócua, que estou convencido trará mais justiça e transparência à disputa, acima de tudo promete incendiar ainda mais a indústria do comentário futebolístico em grande expansão nos canais da televisão por cabo. A coisa promete, pela simples razão de que muitas das decisões dos árbitros, mesmo com a ajuda do vídeo, continuarão a ser subjectivas e falíveis, dependendo da perspectiva (da cor da camisola) do observador: o milímetro a mais ou a menos do fora de jogo indefinido, a bola na mão ou a mão na bola dentro da grande área - ou a milímetros do seu limite; já para não falar da apreciação à intensidade do contacto do defesa que derruba – ou não - o atacante e da (in)justiça do consequente castigo máximo. Com a agravante das decisões de agora em diante provirem de uma análise ponderada. Por isso não vão faltar teorias da conspiração e toda a sorte de condenações e pressões sobre… o vídeo-árbitro. Se é previsível que o uso das tecnologias irá beneficiar a justeza das decisões em campo e o futebol atacante em geral, o vídeo-árbitro passará ele próprio a ser mais um inevitável protagonista do espectáculo, condenado umas vezes, exaltado outras tantas, em debates insanos por essas televisões afora.
Pela parte que me toca, continuarei a privilegiar o espectáculo do futebol dentro das quatro linhas, onde ele possui uma inegável e entusiasmante beleza. O seu prolongamento será feito à maneira antiga, ao vivo e com alma, à boa conversa ao balcão do café com os vizinhos, ou com os amigos numa aprazível esplanada. Venha daí então o campeonato que desta vez é que vamos ganhar.

 

Publicado originalmente por simpático convite no blogue Delito de Opinião

A irmandade

por João Távora, em 01.06.17

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Quis o destino e os meus pais que eu tivesse crescido com um irmão e três irmãs. Não sendo eu o mais velho, quando era pequeno sentia a obrigação de ajudar a tomar conta desse rebanho caótico em que nos tornávamos nas idas ao jardim Zoológico, à Feira Popular ou de comboio para uma praia da Linha do Estoril com a minha mãe. Sorte a nossa, apesar de franzina como era, ela não deixava os créditos em mãos alheias, e hoje estou em crer que foi com a ajuda divina nunca apanhámos mais do que um pequeno susto nas nossas múltiplas expedições de lazer. E lembro-me bem como ela tinha de negociar duro com o motorista para viajarmos os seis num só táxi, num tempo em que não se usavam cintos de segurança. 

Deus plantou quatro irmãos na minha vida, e no princípio eram eles os principais povoadores do meu mundo de brincadeiras e que me ajudavam a relativizar os sucessos e frustrações vividos fora de casa. Éramos cinco, conhecidos pelas outras casas da família pelos “Abrantes”. Todos em escadinha, pouco mais de um ano diferença entre cada um, não me perguntem como, mas cabíamos num Volkswagen carocha com o meu pai ao volante e a minha mãe com a mais pequena ao colo no lugar do morto. Foi nesses preparos que viajámos algumas vezes para férias de Lisboa para Milfontes.

Os meus irmãos eram o barulho à minha volta, o choro e o riso, horas e horas de brincadeiras, provocações, lutas e disputas que preenchiam o imenso tempo livre que tinham as crianças do meu tempo. Mas foram os tempos difíceis de uma crise complicada que vivemos a seguir ao 25 de Abril que nos obrigaram a crescer mais depressa e nos entrelaçaram para sempre. Por essa altura a treinar a democracia em casa, habituámo-nos a dizer uns aos outros o que nos passava pela cabeça – a sinceridade é um perigo - e foi devagarinho que a vida cuidou, com algumas zangas de premeio, de nos ensinar a preservar melhor os espaços de cada um. Mas julgo que foi também por causa dessa cumplicidade excessiva que os nossos conflitos sempre se resolveram, com a ajuda do tempo e com pedidos de desculpas, mais ou menos hesitantes, mais ou menos a contragosto. Ao contrário do que nos querem fazer crer os versos e as fotografias idílicas partilhadas nas redes sociais no “Dia dos irmãos”, desconfio que ser irmão é das coisas mais difíceis que existem: se na infância a nossa “fraternidade” lúdica era muitas vezes interrompida por zaragatas épicas, com a adolescência e mais tarde na idade adulta, o nosso olhar, mesmo que inocente, começou a conter o peso da nossa história e as suas susceptibilidades. Se a relação chegada entre irmãos é tida como o modelo para a solidariedade entre as pessoas, é dessas relações que sempre nasceram discórdias de dimensão bíblica – veja-se o caso de Caim que se deixou dominar pela corrosão do ciúme e da inveja, assassinando cruelmente o seu irmão Abel. Ser irmão é um regime muito perigoso e desafiante: um dia convivemos descaradamente no ninho, perdemos a cerimónia enquanto nos cresciam as penas, vimo-nos por dentro uns aos outros – somos feitos da mesma massa. As zangas quando acontecem são brutais. Ser irmão fora dos tempos de crise que nos unem em entreajuda, exige um particular cuidado e sensibilidade.

Mas há uma atracção fatal que nos mantém unidos, e quando nos encontramos os cinco, somos bem mais do que testemunhas das décadas que nos vêm amarrotando. Certo é que todos somos parte integrante do que cada um se fez e do rumo que tomou. E que esse sentimento de pertença nos leva a marcar presença e dizer “pronto” sempre que  surge alguma urgência ou aflição - as raízes acabam sempre por falar mais alto.

A guerra nas nossas ruas

por João Távora, em 01.03.17

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Rua de Stº Antº dos Capuchos em Lisboa

 

Antes de instalar o meu escritório em Cascais na centralíssima e animada Rua Visconde da Luz, ao lado do jardim com o mesmo nome, fui indagar sobre o eminente cascalense que se esconde por detrás do marido traído (para não usar uma terminologia vernacular) por Rosa Montufar Barreiros, amantíssima musa de Almeida Garrett, conhecida pela sua beleza lendária. Afinal não era apenas esse infortúnio que tornara célebre o oficial do exército liberal que nesta vila piscatória construiu uma casa de veraneio e plantou algumas árvores. Dos heróis derrotados dessa guerra civil, em matéria de toponímia sobrou para amostra a Bica d’el Rei D. Miguel, restaurada há pouco ali no Arsenal da Marinha, junto ao rio Tejo.

A verdade é que a maior parte das pessoas é indiferente à origem dos nomes das avenidas, praças, ruas ou fontanários das nossas terras. E no entanto, a toponímia das nossas cidades, vilas e aldeias esconde uma contenda encarniçada que com raras excepções só os vencedores admite, mesmo que eles tenham sido os mais requintados tiranos ou umas completas nulidades.

Está hoje cientificamente provado que o revisionismo de grande parte da toponímia nacional pelos republicanos de 1910 quedou-se como o seu principal legado. Em Lisboa, entre muitíssimas outras renomeações, a Avenida Rainha D. Amélia passou a chamar-se avenida Almirante Reis, o Cândido comandante da revolta que se suicidou espetando um balázio nos miolos dois dias antes da implantação da dita, convencido de que a revolução estava perdida – sem dúvida um grande feito. E temos o pobre Frederico Ressano Garcia, arquitecto das Avenidas Novas em finais do século XIX que dava nome a uma conhecida artéria que rasgava o planalto urbano em direcção ao Campo Grande: o seu nome foi descartado e a arejada avenida forçada a ser da República. Logo ali ao lado, a Avenida António Maria Avelar foi rebaptizada por avenida Cinco de Outubro. Se eu lá morasse tinha logo mudado de casa.

Bem pior é a quantidade de eminências pardas que empestam a toponímia das nossas cidades, como é o caso flagrante de Miguel Bombarda, vulgar psiquiatra e medíocre publicista republicano assassinado por um seu doente em vésperas da revolução de 1910, de que não se lhe conhece obra que se veja mas que bate Luís de Camões, Gil Vicente, Fernando Pessoa ou outra figura pública em qualquer lugarejo deste jardim à beira-mar plantado. Se um marciano aterrasse hoje numa cidade portuguesa pensaria que Miguel Bombarda e Elias Garcia (alguém lhe conhece feito ou obra?) são as mais gradas figuras históricas nacionais.

É curioso como na cidade de Almada se cruzam ruas Catarina Eufémia, Padre Américo, Aliança Povo-MFA, Dr. António José de Almeida, rei D. Carlos, 31 de Janeiro, José Afonso e Padre António Vieira e Sagueiro Maia. Mas a suprema ironia é a história de um militante e resistente monárquico, um bravo da Galiza com papel preponderante nas Incursões Monárquicas e na Monarquia do Norte, que depois do exílio atingiu o final da vida em grande miséria, e foi viver para uma habitação social atribuída por Salazar na… Avenida Defensores de Chaves. Definitivamente o António não era flor que se cheirasse.

Tenho para mim que os nomes de personalidades a atribuir a topónimos deveriam ser submetidos ao crivo do tempo, quer dizer, da história; e as ganas da homenagem dos seus partidários serem contidas por cem anos, ou mais, antes de se tornarem um factor de desvalorização imobiliária, que é o que acontece antes das pessoas comuns se esquecerem quem foi o pilantra com o nome gravado em determinada tabuleta.

Ninguém se incomodará com uma rua Gil Vicente, Rua Alexandre Herculano, Rua Eça de Queirós, Rua D. Pedro V, Praça Luís de Camões ou Calçada Marquês de Abrantes. Entretanto, diante da expansão urbana, deveríamos fazer como os antigos que sabiam dar nomes bonitos partindo do mérito dos próprios locais. Rua da Alfarrobeira, Rua das Gaivotas, Rua dos Mastros, Rua Navegantes, Rua do Poço Novo, Beco das Terras, Rua da Vitória, Rua da Saudade, Rua da Bela Vista, Rua do Alto do Moinho Velho, Rua das Gáveas, Rua da Horta Seca, Travessa da Espera, Rua da Misericórdia, Rua das Mercês ou dos Fiéis de Deus — tudo nomes que irradiam encantamento e que, por isso, estou convencido, têm o condão de ajudar a fazer dos seus habitantes pessoas melhores e mais felizes...

 

Publicado originalmente no jornal i

O factor humano

por João Távora, em 19.12.16

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Foi na quinta-feira passada que me desloquei a Coimbra, ao Tivoli, por ocasião da festa de Natal do hotel em que se celebravam os 25 anos da sua abertura, na qual numa outra vida eu participei. Foram momentos comoventes em que revi colegas e amigos de longa data passados num almoço que reuniu todo o pessoal do hotel no restaurante habitualmente exclusivo para os clientes.

Poucas pessoas terão a noção do que significa pôr um hotel acabado de construir a funcionar, e menos ainda da importância que para isso tem o factor humano. Tão importante como o edifício, o seu requinte, design e comodidades, são os diversos grupos de pessoas que, como formiguinhas, trabalham com mais ou menos discrição 24,00hs sobre 24,00hs nas ribaltas do grende "cenário".  Movem-se pelas zonas de serviço como as cozinhas, copas, andares, serviço de quartos, economatos, manutenção, escritórios de reservas, contabilidade ou comerciais; sem falar das equipas que dão a cara perante os hospedes e visitantes nos balcões dos bares, das recepções e portarias, ou a servir às mesas, na reposição das comidas, etc., etc. Um hotel é um microcosmos composto por uma larga equipa de dezenas ou centenas de pessoas, heterogenia e interclassista, por uma questão de disciplina e eficiência muito hierarquizadas. Integrados em equipas, certo é que todos os colaboradores se movem por resultados exigentes e cruzam-se nas zonas de serviço, balneários, refeitórios e sala de convívio, partilhando refeições e momentos de lazer entre os turnos, como se o hotel fora a sua segunda casa, uma casa onde se passa muito tempo, se vivem emoções fortes, frustrações e alegrias, tensões que geram conflitos e cumplicidades que se fazem amizades, como se o trabalho fora uma inevitável segunda família.
A gestão dos recursos humanos é por tudo isto o maior desafio na boa administração dum hotel. É o factor humano que ao longo do tempo imprime uma “cultura” própria à empresa, que pode cativar ou repelir o cliente. Se o marketing determinado para uma marca define um certo "carisma", as pessoas que o aplicam, no relacionamento entre si e com o cliente, vão ser sempre determinantes e condicionar o resultado.

Foi a trabalhar nos hotéis que depois de passar por diversas funções e experiências descobri a minha profissão de Relações Públicas e mais tarde de Marketing e Comunicação em que hoje trabalho. A maior parte dessa experiência de vida adquiri-a ao serviço dos nos Hotéis Tivoli, uma marca com história e genuinamente portuguesa, com um carisma muito forte, onde o factor humano foi sempre valorizado.

A cadeia de Hotéis Tivoli têm origem na Pensão Tivoli na Avenida da Liberdade fundada no final dos anos 20 da associação entre os empresários José Cardoso e Joaquim Machaz. Estes dois empreendedores construíram uma marca incontornável na história da indústria hoteleira portuguesa. Depois de várias reformulações, a partir dos anos oitenta o grupo passou pelas mãos de diferentes accionistas até chegar aos dias de hoje em que o grupo hoteleiro foi resgatado  pelos tailandeses da Minor. Certo é que o seu principal capital sempre esteve nos empregados e na cultura que geraram ao longo de décadas. Por isso não foi surpresa para mim quando na quinta-feira em Coimbra me senti parte de uma grande família que não esquece os seus. Também eu não esqueço todos os amigos que lá deixei. 

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A Casa da Avenida

por João Távora, em 18.11.16

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A «casa da Avenida», como ficou conhecida na família, deixou em mim uma marca indelével, como que um pilar da minha personalidade. Como casa da Avenida entendo não só o primeiro andar direito do n.º 232 da Avenida da Liberdade mas todo um ambiente caloroso de afectos e brilho que lhe imprimiam os meus avós, tios e todo o pessoal que lá servia, que, a seu modo, fazia parte da família.

Com esta crónica, que serve de introdução a uma biografia ficcionada que estou a escrever sobre o tema, pretendo fazer uma homenagem aos meus avós maternos, João e Chunchinha, que, com a minha bisavó, foram os grandes obreiros dessa casa acolhedora e aberta ao mundo, onde se cultivava a antiga arte da boa conversa, elegante e inteligente, como refere Augusto Ataíde no seu livro de memórias Percurso Solitário (Bertrand, 2016) ou Leonor Xavier em Casas Contadas (Asa, 2009), sem descurar a edificação dum sólido e fecundo núcleo familiar de matriz cristã onde cresceram a minha mãe e os meus tios. Ainda hoje nas reuniões familiares com a minha mãe e os meus tios se testemunha esse legado tão nobre de amizade, humor e graça, qualidades que sem mascarar dificuldades que em todo o lado existem, são sementes de civilização e carácter.

Pensando bem, aquilo que mais me marcou na Casa da Avenida foi a liberdade que me era concedida, a mesma que, pressupondo sentido de responsabilidade, fez dos meus tios e da minha mãe pessoas inteiras. Pessoa de enorme carisma, a Avó Chunchinha tinha, de facto, uma forma de relacionamento que sempre me cativou, talvez porque nunca pressenti qualquer sinal da complacência com que habitualmente os adultos se relacionam com as crianças.

Para a forte idealização daquela casa que germinou em mim ao longo da vida, contribuiu não só a enorme saudade das estadias felizes que até aos 12 anos lá passei, sozinho ou com o meu irmão José — onde éramos queridos e obtínhamos mais atenção do que aquela que poderíamos ambicionar em casa dos pais, em que a concorrência era grande —, mas também a memória do espaço físico e do fervilhar de vida circundante, ao mesmo tempo cosmopolita e de bairro, que naquela época fruía naquela zona de Lisboa ocupada por uma mistura bem equilibrada de serviços, comércio e habitação.

A Casa da Avenida foi estreada em 1892 pela minha bisavó Valentina Leitão aos quatro anos, quando para lá se mudou com os seus pais e irmãos. O elegante prédio de cinco andares com direito e esquerdo, situado no quarteirão entre a Barata Salgueiro e a Alexandre Herculano, onde então terminava a Lisboa cidade, tinha acabado de ser construído, e dele reza a lenda de ter sido o primeiro a ter instalação eléctrica de raiz. Os apartamentos eram grandes e tinham um pé direito alto como há muito não se usa.

A casa dos meus avós era atravessada por um longo corredor que ligava a parte nobre, com duas varandas voltadas para a Avenida da Liberdade, à zona de serviço, com entrada pelo n.º 77 da Rua Rodrigues Sampaio. Entre as salas da frente e a generosa cozinha e os aposentos das minhas tias e das criadas nas traseiras, ficavam mais quartos e duas casas de banho, que para um prédio do século XIX era muito avançado. O edifício também ostentava um curioso sistema acústico de intercomunicadores, numas mangueiras com bocal de cobre nos extremos, entre a portaria no hall de entrada e o interior de cada fracção.

A fachada era discreta, mas icónica me parece hoje a altaneira e pesada a porta principal, circundada de alvenaria trabalhada, cujo chiar do amortecedor antecipava um estrondo que me fazia fugir degraus acima, assustado. As escadas de madeira eram muito largas e enceradas almofadadas por uma passadeira encarnada, ladeadas de mármore de um lado e por um elegante e sólido corrimão de madeira que terminava numa estatueta graciosa, e numas largas escadas de pedra com um corrimão de bronze que precediam um hall aristocrático com elegantes frescos.

Vivia intensamente as minhas estadias naquele extenso mundo de descobertas e de liberdade. Se naquele andar tão soalheiro a vida fervilhava logo pela manhã cedo na área de serviço com os afazeres domésticos das empregadas, a chegada do barbeiro que vinha escanhoar a barba do Avô João, do padeiro, do marçano, a mulher-a-dias que esfregava ou puxava o lustro ao chão encerado, a Celeste que saía para a Praça a fazer as compras; a avó Chunchinha acordava mais tarde para, ainda deitada, me premiar com vinte-e-cinco tostões para um gelado com que me punha feliz a andar para a pastelaria Smarta. Depois, uma visita à sala verde onde se sentava a Bisavó Valentina (Avó Tina, como lhe chamávamos) a fazer crochet, dava direito a ouvir histórias, de desventuras de outros tempos que ela tão bem sabia contar, como aquela dum criado brasileiro dos seus pais que se suicidara para não ir para a guerra ou das escaramuças entre republicanos na Avenida, que obrigavam a família a deitar-se no chão do corredor para se protegerem de uma eventual bala furtiva…

Aos almoços uma ementa variada era servida na sala de jantar pela Celeste, sempre bem fardada — e como eu gostava daquela feijoada à brasileira, receita que desconfio tivesse sido importada pela minha Avó Tina. Depois do almoço abatia-se um profundo silêncio que só era quebrado pelas minhas solitárias brincadeiras com carrinhos de brinquedo no chão, pelos caminhos desenhados nos grandes tapetes, quando não tinha a sorte de ir com a Avó Chunchinha à baixa, para comprar algum prato de faiança «cavalinho rosa» para completar o serviço, ou bolachas Araruta e uma mistura de café na casa Pereira ao Chiado.

À noite, o jantar era quase sempre um momento de exaltação familiar, com a mesa cheia e boa conversa, quase sempre com uma ou outra visita de parentes ou amigos da casa, sempre acolhedora, iluminada por grandes lustres que irradiavam festa. Com sorte, os meus primos eram visita e logo armávamos em loucas correrias pelo interminável corredor, a desafiar o António na cozinha, que era noivo da Celeste. Isto até nos mandarem parar por causa de uma queixa do mítico Senhor Cruz, um vizinho muito doente que eu desconfiava ser apenas um pretexto para nos acalmar. Lembro-me do meu avô sempre elegante, com um lenço branco a sair do bolso do casaco, à conversa com os meus tios à volta duma pequena mesa de bar, servindo-se Whisky com gelo e Água de Castello.

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Ao final da noite, com a casa já toda a dormir, aquele corredor de luz fosca parecia-me assustador de atravessar, com os murmúrios vindos dos saguões que soavam da sombra que se adensava lá mesmo ao fundo, que hoje acredito serem choros e lamentos das vítimas de histórias sombrias, acontecidas ali bem perto na rotunda ou lá em baixo ao Terreiro do Paço, e que marcaram de forma tão dolorosa a vida dos meus antepassados naquela casa.

As festas eram magníficas, não por luxos, que raramente os havia naquela casa, mas pelo empenho e generosidade dos donos da casa. Todas as festas do calendário eram assinaladas na Casa da Avenida, sempre cheia de amigos, tios e primos: do Carnaval com partidas para todos os (des)gostos, à Páscoa com ovos de chocolate para todos os netos, mas principalmente a Ceia do Natal, servida depois da Missa do Galo na igreja de São Pedro de Alcântara, com peru, chocolate quente, sonhos e muitas outras delícias da época, que comíamos depois de abertos os presentes que se amontoavam junto à árvore de Natal. A cor do papel de embrulho identificava a proveniência.

Com pouco mais de sete anos dispunha-me, afoito, a explorar as redondezas com umas moedas no fundo do bolso dos calções. Começava pela tabacaria Glória, esquina da Travessa do Enviado de Inglaterra com a Rua de Santa Marta, onde podia cobiçar uma revista do Patinhas ou um carrinho Matchbox, para o qual o meu dinheiro não chegava. Descia então pela fervilhante Rua de Santa Marta, zona de serviço das casas burguesas da Avenida, passando indiferente pelas mercearias, talhos e «lugares» de frescos, por sapateiros, relojoeiros e casas de penhores, até chegar à Rua de São José, onde dava meia-volta, para aí estoirar o dinheiro num qualquer pechisbeque de plástico com rodas numa qualquer drogaria mixuruca. Voltava então a subir a infindável Rua de Santa Marta, com um apetite cada vez mais aguçado, arrependido de não ter guardado o dinheiro para comprar um bolo.

É importante uma palavra sobre o pessoal doméstico, que de facto era parte da família: tenho consciência que nesse tempo, final dos anos sessenta princípio dos anos setenta, se vivia o final de uma era e o começo de uma outra, com uma radical democratização do consumo e uma inflação que tornava proibitivos os ordenados das empregadas. Foi a época do advento dos apartamentos pequenos, a revolução dos electrodomésticos, a vulgarização dos restaurantes e do pronto-a-vestir que substituíam uma ancestral organização doméstica. Na Casa da Avenida ainda tive tempo de me afeiçoar a figuras de referência como a Conceição costureira e a Celeste. Muitas tardes passei eu a brincar na companhia da Maria da Conceição, que me contava histórias dum universo misterioso que eram as suas origens humildes, de um irmão que perdeu em criança. E era a Celeste que me vestia em pequeno, e que eu tanto gostava de acompanhar às compras ou de ficar a vê-la moer a carne no passador, ou dobrar em meias luas a massa de rissóis. Pensava na minha ingenuidade ser ela minha amiga para a vida, e estranhei muito que tivesse desaparecido sem deixar rasto depois do 25 de Abril, supõe-se para emigrar com o seu António. Há pessoas que não suportam a dor de uma despedida.

Com a morte da minha Bisavó em 1973, os meus avós não puderam renovar o contrato de arrendamento, e no ano de todas as revoluções viram-se obrigados a mudar-se para um pequeno andar — ironia do destino — na Calçada Marquês de Abrantes. Apesar da mobília e da decoração que remetiam para a memória da Casa da Avenida, num país em convulsão e já doentes, foi com muita dificuldade que os meus avós enfrentaram a nova realidade. As mortes dos meus queridos avós ocorreram espaçadas de poucos meses pouco tempo depois, desconfio que por desistência, na dificuldade se adaptarem a mais uma nova era.

Será que, apesar dessa derradeira amargura, tiveram alguma vez a noção do extraordinário legado que nos deixaram? Prometo contar-vos esta história em que estou a mergulhar com todo o detalhe e verdade que me for possível.

A estes heróis não devemos nada menos que isso.   

Uma história de tempos felizes

por João Távora, em 06.10.16

Rua da saudade.jpg

 Curioso como é mais fácil reavivar memórias luminosas quando estas estão registadas numa casa, num determinado sítio. E todos sabemos que a saudade vive nas casas onde fomos amados, cheias dos nossos fantasmas que às vezes somos nós próprios noutras eras

Não sou de modas…

por João Távora, em 05.08.16

Village Peolpe.jpg

Chegados à meia-idade conquistamos uma visão em perspectiva que nos revela a verdadeira importância das modas. Pela minha parte até chegar à da barba de três dias, em matéria de pilosidade masculina, já testemunhei diferentes usos que se banalizaram na paisagem de cada tempo: do cabelo cortado à tijela ou “à Beatle”, à cabeleira e barba hirsutas, comprida até ao peito a encobrir uma fácies cândida “imagine all the people”, passando pela recuperação nos anos 80 da sobriedade insinuante de Morrissey com poupa à James Dean, estou em crer que, com mais ou menos ombros e lantejoulas no casaco, mais ou menos justas as calças, cada moda cumpriu a seu tempo o propósito de alimentar a vital ilusão de corte ou renovação dum sentido existencial de cada geração emergente, que organicamente se impunha com uma assinatura própria à espuma dos dias imparáveis. O problema é que, como bem sabemos, a natureza humana e as suas circunstâncias são realidades essencialmente estáticas. Sobre este complexo assunto, o povo na sua sabedoria arranjou um adágio que mete moscas e excremento. 

Curioso é o burlesco que nos soa um guarda-roupa, por exemplo, quando revisitamos uma antiga (?) série, em voga dos anos oitenta, como a do muito British e europeu “Inspector Morse” ou num ataque de revivalismo revisitamos a sonoridade e paisagem do festival Woodstock, afogada em toneladas de Canábis, pilosidade e devaneios idealistas, daquela miudagem que acreditava sinceramente que a juventude era algo mais do que um efémero acidente do seu imparável processo de envelhecimento. E quanta grosseria e boçalidade não vivia disfarçada por uns óculos escuros, longas barbas, lenço na cabeça e calças à boca-de-sino. O tempo se encarregará de fazer esquecer estes egos estéreis no anonimato da demografia e das estatísticas.
Estou em crer que a moda torna-se num verdadeiro problema quando é motor da política, subjugada ao jogo mediático na conquista das massas consumidoras e democráticas; quando ela se move e se motiva embalada pela espuma dos dias, com causas vácuas de que os nossos vindouros troçarão impiedosamente. Julgo que é exigível às lideranças partidárias, jornalistas e comentadores profissionais um esforço suplementar para a produção de um discurso mais elaborado e perene. Para tanto basta não levantar demasiado os pés da realidade e das prioridades que ela reclama, tendo em conta o bem comum. Que um jornal ou noticiário de hoje não nos pareça daqui a 30 anos um anacrónico guião de um filme pimba.


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