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Da criação

por João Távora, em 06.02.24

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Li por aí que se calcula terem já habitado a Terra cerca de 108 biliões de pessoas, considerando o ponto de partida há 50.000 anos, com o “casal inicial”. Para se chegar a este número foram usados dados históricos e arqueológicos, bem como estudos da ONU sobre o aumento populacional ao longo da história. Mais curioso para nós leigos, é que o método usado pelo demógrafo Carl Haub do Population Reference Bureau não tenha sido aquele que aparentemente seria mais lógico regredindo nas gerações e somando todos os ascendentes de cada um dos 7 biliões de seres humanos actualmente vivos. A formula usada foi o de uma pirâmide com início no ano 50.000 a.C., a partir do "casal inicial" da nossa espécie (Adão e Eva?), e cujos descendentes se multipliquem até chegar aos actuais 7 biliões.

Se a demografia é uma matéria fascinante, atrai-me mais conjecturar sobre a questão existencial que o assunto levanta. Ou seja, por este estudo semicientífico (porque segundo leio implica alguma especulação) já viveram na Terra 108 biliões de pessoas como eu, como cada um de nós, seres únicos e irrepetíveis, cada vida uma história particular, cada um com o seu drama, tragédias, alegrias e tristezas, dores e consolos. Como é que é possível que esta criação não possua um sentido existencial superior é algo que parece não fazer qualquer sentido. É ilógico reduzir-se a humanidade a um mero acaso. A consciência de nós mesmos, o anseio de liberdade, o desejo de amor e de beleza, multiplicado por tantos indivíduos únicos e irrepetíveis que alicerçam a nossa História, reclama um sentido superior à nossa existência. Jesus Cristo afirmou-o e lançou o mote para a modernidade: “E quanto aos muitos cabelos da vossa cabeça? Estão todos contados” (Mateus 10:30). Cada pessoa como templo único e irrepetível de Deus.

Coisas estranhas

por João Távora, em 15.07.22

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Há poucas coisas mais difíceis hoje em dia na minha casa que ver em família uma série de televisão em streaming. Acontece que há sempre alguém à hora combinada que não pode estar presente na sala por causa de programas inadiáveis, sempre interessantíssimos, que justificam o resto da comunidade ficar solidariamente em suspenso à espera duma oportunidade consensual. Acontece que os episódios estarão lá indefinidamente ocultos, mas disponíveis, toda a gente sabe; por isso adia-se mais uma vez. Mais valiam os meus tempos de juventude: naquele serão de 5a feira, quem não estava, que estivesse. O drama só avançava um episódio por semana mas não dependia de apetites individuais.

Vem isto a propósito de “Stranger Things”, uma série escrita e dirigida pelos irmãos Duffer, cujos episódios vêm sendo estreados na Netflix deste 2016 tendo recentemente a IV temporada sido disponibilizada. Essencialmente destinada a adolescentes, com o protagonismo principal de um grupo de jovens, “Stranger Things” no entanto apresenta iconografia e referências destinadas a atrair as gerações mais velhas – uma coisa esperta.  A trama, passa-se em meados dos anos oitenta numa pequena cidade do Estado de Indiana, remetendo todo o ambiente, o guarda-roupa, cenografia, até as cores carregadas do vídeo, para essa época. Para isso também contribui a banda sonora, senhores – eles sabem brincar com a nostalgia. A intriga desenvolve-se à volta de um obscuro mundo inverso e subterrâneo onde um mora um terrível monstro que os governos da União Soviética e dos EU envolvidos em experiências cientificas tentam esconder, tem tudo para reunir a família inteira, onde ela ainda possa resistir nesses moldes. Entretenimento puro.

Ora, foi nesta série, que me foi aconselhada há uns meses pela minha filha, que aconteceu o fenómeno que aqui quero relevar: trinta e sete anos depois (!) de tocar pela primeira vez numa estação de FM, a canção “Running up that hill”, de Kate Bush ressurge e alcança o primeiro lugar das tabelas de streaming mundiais, como hino de uma nova geração – ainda não chegámos a esse episódio, por cá ainda estamos no início da III temporada. Parece que miudagem se converteu à musa da minha juventude. Deste modo Kate Bush vem batendo várias marcas inéditas, não só a de despertar a curiosidade da minha filha para uma música que me apaixonou em tempos longínquos e que eu pensava perdida para a miudagem, como estabelece o recorde do mais longo período de tempo que um tema demorou a alcançar o primeiro lugar nas tabelas de singles oficiais – 37 anos. Uma coisa verdadeiramente estranha que tenho esperança de entender quando chegar ao dito episódio. Porque será que, entre tantas canções dos anos oitenta incluídas na banda sonora da série, é com “Running up that hill” que acontece este fenómeno? A minha resposta, certamente simplista, é que a canção, incluída no álbum “Hounds of Love” de 1985, é, como sempre suspeitei, um grande tema – o disco é quase todo genial, aliás.

Alguém comentava há dias no Twitter que, por conta da canção (como todas as suas canções) lhe pertencer integralmente em autoria e direitos, este fenómeno lhe está a render cerca de 250.000 libras por semana. Kate Bush afirmou numa raríssima entrevista à BBC dada há umas semanas, estar muito espantada com o prodígio da sua recente popularidade. Com sessenta e três anos, retirada na sua casa de campo com um grande piano, confidenciou-nos não usar telemóveis espertos, o que é uma desnecessária prova da sua forte personalidade, e que para seu sossego, não frequenta redes sociais - e imagino que também não oiça música pelo telemóvel.

Talvez os mais desatentos não saibam que Kate Bush publicou em 2013 o seu último álbum, “50 Words for Snow”, uma autêntica pérola, que estou em crer terá passado ao lado da malta nova. O que eu vos posso garantir é que a cantora e compositora Kate Bush merece todo este renovado sucesso tardio. E nem sonham a sorte que têm se se dispuserem a descobrir a sua extraordinária obra. Integralmente feminina.

Ainda bem que acontecem coisas estranhas. Com sorte verei a série até ao fim em boa companhia, que há diversões que só fazem sentido dessa forma.

 

A minha enxada

por João Távora, em 29.07.21

Enquanto o mundo inteiro andava entretido com prioridades inadiáveis e assuntos de suma-importância, na terça-feira passada quando enviava um orçamento a um cliente, o meu fiel computador portátil já com doze anos de trabalho em cima e algumas letras do teclado desvanecidas, entregava a motherboard ao criador. E eu a pensar que tinha uma vida difícil... privado da minha enxada, vi-me subitamente numa grande aflição - que foi como se me tivessem cortado os dois braços. Claro está que adquiri logo um novo que me chegou cheio de mariquices que é donde agora vos escrevo esta crónica. Evidentemente que desde ontem tenho andado fanaticamente a formatá-lo para que a organização, funcionalidades e eficiência se pareçam tanto quanto possível com o meu defunto companheiro. Certo é que com estes maus-tratos iniciais já perdeu aquele irritante ar imaculado e daqui a uns dias nos iremos entender às mil maravilhas. Mas pronto, é só a minha enxada e a vida dos outros continua como se isso fosse óbvio.

Os bares, as discotecas e o puritanismo impante

por João Távora, em 17.07.21
No início achava que demasiados artistas sobrevalorizavam a importância da dança e entretinha-me com boas canções e poemas desafiantes. Rapazes e raparigas que mal se conheciam a dançarem freneticamente melodias simples com ritmos fortes? Não percebia o interesse.

Chegado à adolescência, rapidamente fui convertido a esses rituais rebeldes, tantas vezes mal aceites pelos adultos: de tarde ou de noite, e quantas vezes até de madrugada, dancei até próximo da loucura, em festas particulares, do liceu ou em espaços próprios, fosse no Jamaica, no Tokyo ou no 2001 no Estoril de onde saia com os ouvidos a apitar - desse modo conheci algumas miúdas bem giras.

Foi assim que me fiz uma pessoa inteira e livre e escolhi o meu caminho, acidentado é certo; mas graças ao qual, anos mais tarde conheci a minha mulher com quem casei para fazer família. Livre, com conhecimentos de causa - sabe Deus!

Nesse sentido suspeito que ainda estão por avaliar as mais profundas cicatrizes da paranóia do Covid19 na geração dos meus filhos. Que têm da minha parte total autorização de serem livres para gozarem em plenitude o que é próprio da sua idade.

Na clandestinidade se assim tiver de ser - diga-se.

Já não é proibido proibir?

por João Távora, em 06.05.21

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Anda p'raí um escarcéu nas redes sociais por causa dumas “denúncias” de alegados assédios a figuras públicas como se fora uma campanha de sensibilização – não é razão para menos. Pela minha parte tenho a convicção de que haverá poucas atitudes mais cobardes e indecentes do que o assédio sexual, e que tal terá de ser radicalmente condenado socialmente. Fazer disso uma “guerra de sexos” é que não me parece que faça sentido.

A questão é que não é possível uma sociedade boa sem pessoas moralmente bem formadas. As soluções aos desafios sociais e humanos não se resolvem só com legislação, muito menos com ideologias. E hoje reconheço que, antes de nós cá em casa, já os meus pais travaram uma dura batalha contra o "ar do tempo", que nos anos setenta era da democratização da vulgaridade, não das virtudes. 

Uma coisa boa deste “movimento” é um certo cheiro contra-revolucionário que dele emana e que me agrada. Durante décadas tivemos a impressão que a boa educação, a delicadeza e o cavalheirismo, fundados em valores fundamentais como o “respeito” tinham caído em desuso, como que atributos considerados hipócritas, caretas, pouco viris. Será que é desta que os bons valores da boa educação voltam de novo a estar na moda entre as elites ou será que estou a perceber mal? Ou será esta indignação fogo fátuo, mero entretenimento de burgueses anafados com demasiado tempo livre, a importação de uma histeria colectiva? 

Crise, qual crise?

por João Távora, em 23.03.21

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Ou muito me engano ou a pesada factura da pandemia que teimámos em querer domesticar não tardará a ser-nos cobrada com pesados juros, na forma das insurreições e abalos políticos que normalmente acompanham os períodos de penúria e desemprego. De resto, curioso é verificar como a radicalização da conflitualidade e a inflação dos extremos políticos aponta para essa tempestade perfeita. De facto, de há uns anos para cá vêm-se acentuando sinais de que as pessoas se cansaram da enfadonha prosperidade esforçadamente conquistada pelos nossos avós depois da II Guerra. Suspeito que o buraco existencial que é inerente ao ser humano não se preencha com entretenimento,  viagens, gadgets e outras mundanidades que no ocidente foram democratizadas e substituíram a espiritualidade. As tribos guerreiras que nas últimas decadas emergem como cogumelos à volta de toda a sorte de fracturas sociais são indicadoras de uma acesa predisposição para um conflito que aguarda ocasião propícia para eclodir com estrondo. Enquanto isso assistimos ao acelerado enfraquecimento das instituições que foram garante da nossa liberdade e dos equilíbrios precários que suportam um regime de soberania popular, expostas à corrosão das dinâmicas fragmentárias híper-individualistas da era digital.

A história da humanidade demonstra-nos à saciedade um periódico surgimento dum instinto autodestrutivo, que em tempos foi justificado como uma forma de controlo do subconsciente colectivo da demografia, mas que eu cada vez mais me convenço ser o fenómeno decorrente da veia trágica que a nossa existência comporta. Quando as comunidades saciadas não têm mais cidades para reconstruir e restaurar, pontes para reerguer e irmãos martirizados para sarar, cuidar e acolher, dedica-se ensimesmadamente a escarafunchar as suas cicatrizes... até fazer sangue.

Isto tudo é apenas uma intuição minha mas, pelo sim e pelo não, tenhamos cuidado com aquilo que desejamos e as guerras que compramos.
 

Fotografia: Dresden desperta depois do grande bombardeamento.

Versar-com

por João Távora, em 26.02.21
Das diferentes formas de conversa (versar-com) distingo duas. Uma de preponderância mais narcísica, autocentrada, emocional, que tende para o monólogo e exige do interlocutor uma enorme humildade e apagamento, e outra que, sendo carregada de afecto, é feita de construção, uma ponte para o encontro.

Hoje mais do que nunca reconheço o valor de uma rara, boa e sã conversa. Descomprometida e desinteressada, sem constrangimentos mas com atenção ao outro. Que se disfruta com pessoas próximas, amigos especiais ou em raros estados de graça. Conversa cúmplice que simplesmente acontece, e não se encomenda. Com a qual resolvermos os verdadeiros problemas do mundo e da existência, principalmente a dos outros. Discutindo o tudo e o nada, um livro, um autor; recordando memórias, aventuras, gaffes ou anedotas, risos e gargalhadas. Zombando dos outros, da vida e de nós próprios. Até às lágrimas, até ao silêncio, até à próxima.
 
A boa conversa é prática rara e fidalga que só os espíritos livres e superiores podem alcançar. Sem pretensões, pelo simples prazer de se estar vivo e de nos reconhecermos uns dos outros.
 
(texto reeditado)

Dá cá um beijinho...

por João Távora, em 19.10.18

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Sobre a discussão do beijo coercivo dos netos aos avós levantada por um descabelado participante do programa Prós e Contras que eu faço empenho em não ver mas cuja intervenção me chegou pelas redes sociais, tenho a dizer que, tirando casos extremos, cada um educa os seus filhos como achar melhor, na certeza de que dessas opções um dia haverá consequências e contas a saldar. Os cientistas sociais que se metam na sua vida.

Mas visto que o tema, para lá dos insultos que gerou de um lado e de outro, para espanto meu foi levado a sério por gente que reputo de séria, também eu quero molhar o pão na sopa e aqui dar asas à minha nada modesta opinião: sendo certo que a formação de um individuo saudável, cortês e autónomo obriga à prática de doses industriais de coercividade nas criancinhas (por exemplo para acordar cedo para ir à escola, não tirar macacos do nariz ou arrumar os brinquedos depois de os usar) decretar aos petizes a obrigação de cumprimentarem com beijinho os elementos da família chegada é definitivamente um preço barato para a promoção de um agregado familiar harmonioso e (se for o caso) um treino de renúncia que vai ser útil ao infante durante toda a sua vida, em que terá de prescindir da sua vontade e reprimir a expressão de certas emoções e pensamentos para não se tornar num pária social. É que a tão exaltada "sinceridade" o mais das vezes não é tanto uma qualidade pessoal, antes uma forma de desleixo, um perigoso preceito com valor inflacionado, que só nos serve para comprar conflitos inúteis e tornar-nos mais sós e infelizes. Além disso estou convencido que um mundo melhor só é possível amando-nos uns aos outros, que sabemos muito bem é uma atitude que não vem com os nossos instintos ou apetites. E é de pequenino que se torce o pepino.

Mais uma crónica moralista

por João Távora, em 19.09.14

Ontem á tarde, depois de umas voltas a pé pelo Chiado ocorreu-me o sugestivo achado de que, se até ao século XIX as crianças se ataviavam como adultos, hoje em dia os adultos querem é vestir-se como as crianças, por exemplo, com boné americano, t-shirt garrida com um excesso qualquer, calções e sapatilhas de Basquete (na melhor das hipóteses). 
De facto é especialmente durante o século XX que se verifica um crescente cuidado na diferenciação com o trajar infantil, na assunção da sua especificidade face aos adultos, expresso através de elementos coloridos e resistentes que evidenciassem a inocência dos petizes favorecendo a liberdade de movimentos que a brincadeira requer. Daí à proliferação de modistas e lojas especializadas foi um salto, e imagino que tardando em relação aos outros países ocidentais, nos anos sessenta já existiam em Lisboa pelo menos dois casos sérios na matéria, a italiana Brummel e a portuguesíssima sapataria Bambi para gáudio das mães mais extremosas e endinheiradas. Facto não despiciendo, é que o trabalho infantil só vem a ser proibido bastante mais tarde.
Democratizada como objecto de consumo acessível e transversal no ocidente, a moda é hoje inevitavelmente um reflexo do "espírito do tempo". Talvez por isso o adulto resista a qualquer formalismo e sofisticação, mais preocupado em vestir-se para chamar a atenção... pelo espanto. Idealizada a infância, acontece que ela é a representação aproximada do “bom selvagem” o devaneio de Rosseau, bem-aventurado, livre e inocente porque desligado de quaisquer normas e espectativas sociais que o corromperão (e quem é que inventou essa de que a infância é na sua natureza tempo de felicidade e inocência?!). Deste modo por estes dias a forma de vestir tende para uma cada vez maior informalidade, mas anacronicamente esmerada e até dispendiosa - todos diferentes, todos iguais, numa mensagem de emancipação e afirmação de inconsequência, exterioridade, descomprometimento, completa e inexoravelmente só. 

Em defesa deste discurso moralista tenho a dizer que me admiro tanto com uma garota de biquíni subindo a Avenida da Liberdade quanto um homem de fato e gravata no areal duma praia. E que acredito na liberdade de escolha individual como valor fundamental, e que ao fim do dia todos temos o direito de nos imaginar até um artista de rock. O que me parece trágico é que, se a evolução estética ocorrida na moda infantil durante o século XIX e XX reconhecia essencialmente a especificidades da criança com inequívocos direitos a um desenvolvimento no sentido da responsabilização e urbanidade, hoje os seus filhos ou netos parecem reclamar através das mais bizarros trajes um estatuto de total puerilidade, como uma geração que recusa ou resiste a crescer e assumir a sua quota de responsabilidade para o sustento ou avanço da civilização.
No outro dia duas pessoas à porta do colégio dos meus filhos, despedindo-se utilizavam uma expressão aparentemente vulgar e incipiente mesmo entre duas caricaturas de adultos: "Adeus, pá, porta-te mal se puderes!". Talvez pelo enquadramento a coisa deixou-me a pensar. Certamente não quer dizer nada e não me lembro de como estavam vestidos. 

Outono

por João Távora, em 14.09.14

Parece mentira mas ao Verão, a estação que, conformados, todos já enterrámos na areia há algum tempo, ainda lhe falta mais de uma semana para acabar, prova de que a substância tem preponderância sobre a forma. Para além da meteorologia, acresce que amanhã a criançada regressa em força às aulas, o definitivo reforço da exigência das rotinas que relegam as férias para uma longínqua memória. De um momento para o outro os dias irão tornar-se muito mais atarefados, mal despertos ao lusco-fusco, com mochilas, trabalhos de casa e dentes lavados para monitorizar, engarrafamentos no trânsito e rotinas para enfrentar. Está na hora de reforçar o ânimo e extirpar de dentro a luminosidade que se vai extinguindo no sol cada vez mais mandrião.  

Admirável mundo novo

por João Távora, em 22.08.14

Isto dos "telefones espertos" vai-se a ver e são muito úteis para diferentes situações, como a de nos refugiar naqueles intermináveis momentos de intimidade forçada nos elevadores, ou como passatempo enquanto esperamos pela nossa extremosa "mais que tudo" retida numa loja de indumentária feminina.

A insustentável consciência de Ser

por João Távora, em 18.08.14


“É curioso, mas não posso ler um anúncio de qualquer medicamento sem concluir que sofro precisamente da doença em questão e logo na sua forma mais perigosa”.

J.K. Jerome in

Três Homens num Bote

 

 

O desconcertante suicídio dum comediante no pico das férias de Verão, época tão propensa a superficialidades, trouxe para as redes sociais o sedutor tema da depressão e do suicídio, que à boleia concedeu um inaudito protagonismo à disciplina da psicologia, uma “ciência” de extraordinária inexactidão e subjectividade que como uma religião, por estes dias exerce um enorme fascínio popular. Talvez porque, como reza o ditado, “de médico e de louco todos temos um pouco”, nessa medida todos sejamos também psicólogos experimentados, autorizados a conjecturar e opinar, e o mais perigoso, a diagnosticar aqui e ali as mais rebuscadas patologias crónicas, de preferência e com um nome difícil de pronunciar.
De facto, ao final de algum tempo de passagem por este mundo, a incomensurável complexidade de cada pessoa integra no seu legado genético e cultural a sua história, também feita de frustrações e mazelas mais ou menos insanáveis. O resultando é um carácter, uma pessoa, cuja explicação definitiva, para além de irrealizável, seria totalmente inútil. Acontece que todos nascemos marcados pelo “pecado original” da consciência da morte, da dúvida existencial, da intuição do absoluto em oposição ao relativo, e da capacidade para tudo colocar em causa na procura de um sentido para a vida.
Se o número de suicídios que são praticados todos os anos nos alerta para a necessidade de reforço de uma consciência sobre a importância da saúde mental (e quem sabe para a urgência de aprendermos melhor a “tomar (em) conta” uns dos outros), tenho ideia que a banalização duma abordagem pseudocientífica de laivos deterministas a respeito da dor da tristeza, se por um lado corresponde aos interesses económicos dos lobbies industriais e profissionais que a indústria da saúde mental envolve, tais conceitos constituem essencialmente uma ameaça ao livre arbítrio do individuo que afinal só se realiza verdadeiramente na plena assunção e superação da sua realidade. De resto, como é sabido, existem
 remédios muito eficazes para a extinção radical do sofrimento, como é o exemplo da heroína uma droga ainda hoje muito em voga. Fatalmente, como acontece com as outras soluções exteriores à pessoa, vai o bebé pela janela fora com a água do banho.
Irónico que num mundo utópico projectado pelo Homem, assim como não envelheceria ele também não entristeceria jamais. Se as consequências previsíveis da primeira seriam catastróficas, sem a dor da depressão, a maior parte das obras-primas da humanidade jamais teriam visto a luz do dia. A depressão o mais das vezes é apenas o meio-caminho para sermos gente inteira. Sem as dores dilacerantes desse abismo que é a incompletude humana jamais procuraríamos a redenção. Acontece que a causa mais profunda da inquietação humana é o confronto com a solidão ontológica, "disfarçada" com perigosos entretenimentos narcísicos e outros ilusionismos. E suspeito, pelo que me foi dado experimentar, que o único “tratamento” definitivo para esse mal está na Fé, num caminho de pedras que é a construção dum encontro com Deus, com uma ordem superior das coisas que concede sentido ao sacrifício (palavra maldita, eu sei). Justamente a saída que a sociedade urbana, científica e materialista, na sua arrogância pretende deitar para o caixote do lixo da história. Como consequência e no seu lugar, a indústria vem “pesquisando” as mais improváveis Causas biológicas e culturais, rotulando e justificando “cientificamente” as mais imaginativas propensões, moléstias e manias, produzindo dispendiosas mezinhas para tranquilizar tanta inquietação. O pior, é que como observava Chesterton “o homem quando não acredita em Deus tende a acreditar em tudo”.
A propósito de um caso concreto acontecido com alguém que me é muito próximo, confidenciava eu há dias a um amigo que estas incontornáveis ciências novas, deveriam inspirar dos seus profissionais, aprendizes de feitiçaria, uma enorme modéstia e realismo quanto às limitações das técnicas com que operam – Graças a Deus, afinal. 

 

Banda sonora Trouble Will Find Me The National.

Os nossos heróis *

por João Távora, em 14.08.14

Não vêm nos jornais nem atraem as televisões, não deixam obra científica ou literária mas marcam o mundo. São heróis anónimos, “atletas da existência”, vidas venturosas realizadas na relação que cura, no resgate do outro nos territórios mais obscuros do sofrimento e desesperança. Seres de luz que tecem laboriosa e persistentemente uma rede de vida, entrega verdadeira, incontornável legado de humanidade que faz da nossa terra um sítio decente.

Identifico-me com aqueles a quem a aspereza, as contrariedades e a tensão acesa pelo desafio cavam rugas de expressão. Aqueles que não disfarçam o desassossego de uma meta que resvala com o horizonte, aquela da escolha de seguirem o modelo de Cristo. Uma caminhada inconformada, exposta às tortuosas perplexidades de uma vida abraçada de peito aberto. Todos sabemos quais os traços com que se esboça um herói – com o mais cristalino júbilo e a mais insuportável das dores. O resultado é aquele que nos deixa o mais preciso tesouro como herança – o de acreditarmos que é possível.

 

* Dedicado ao Zala, incansável cuidador de "escangalhados", que Deus o tenha em sua infinita glória. 

Fragilidade

por João Távora, em 14.08.14

Herdadas ou adquiridas são muito nossas e intrínsecas as fragilidades que fatalmente nos moldaram desde o berço ou antes disso, quais buracos negros havidos de morte. Foi um engano, uma arrogância, quando pensámos que as eliminávamos com o músculo do nosso querer treinado pelos anos. É desconcertante verificar como basta uma faca afiada que entre as couraças das nossas defesas encontre o caminho para aquela carne viva, para que a dor lancinante nos recorde as debilidades de que afinal sempre fomos feitos, apesar das grossas muralhas, que não podemos negligenciar: estão lá porque somos frágeis, não porque somos fortes. 

 

 

Felicidade

por João Távora, em 16.05.14

Arrisco-me a dizer que ela só existe quando a chamamos, e ainda é preciso reconhecê-la, condão que a muitos falta.

 

 J. Rentes de Carvalho, Tempo Contado.

O que é o amor?

por João Távora, em 15.05.14

Casamento - Foto Instagram minha

 

Sobre o Amor romântico sei dizer pouco: ao fim de quase 50 anos de leituras os testemunhos dos poetas deixam-me sem palavras, Filipe. Sobre o casamento acho que já sei alguma coisa. Que ninguém está tão pouco casado quanto um par de noivos à saída da Igreja - falta ainda tudo. Que é construção, é civilização, e por isso não é relativo aos apetites de cada individuo.  Sei que o amor ajuda, mas precisa resistir às suas próprias sombras. Que é racionalidade, arte e projecto: eu estou aqui e quero chegar ali, àquela finalidade àquele final feliz. O Criar os filhos, sim. Dar-lhes educação. Construir uma casa. Partilhar um legado, ajudá-los a crescer, moldar-lhes as almas com boas memórias. Ter uma companhia, uma testemunha privilegiada de cada passo da existência de cada um. Alguém com quem escrever uma história. Alguém a quem ler histórias. Alguém com quem dormimos. Já pensaste a extraordinária cumplicidade de adormecer ao lado de alguém, Filipe? Pode isso ser banal?
Tive um amigo que até aos trinta e poucos anos já tinha casado quatro vezes - não sei se verdadeiramente chegou a adormecer com alguma delas. Na altura testemunhei a sincera paixão e entusiasmo com que ele seduzia a quinta noiva, de quem como é óbvio, dois anos depois se estava a divorciar – a pobre ficou um destroço. Era obrigatório casar? Não. Suspeito que o Amor romântico é egoísta, é auto-contentamento e ganâncioso, tem pouco a ver com Casamento que é fazer família. Suspeito que perder uma tarde de Sábado com a mulher na Baixa à procura de um candeeiro ideal para montar naquele canto da sala para onde parece ter sido projectado de propósito, vale tanto ou mais quanto uma noite num hotel romântico. Desconfio que a biblioteca que marido e mulher constroem, tem o dom duma bênção divina – não separe o homem aquilo que Deus uniu. Assim como o grupo de catequese de casais que religiosamente os dois frequentam todos os meses, há anos e anos a fio, e onde resiste um viúvo com uma cadeira de lembranças e saudade ao seu lado. Suspeito que muita gente achará esta perspectiva muito romântica. Que afinal me refiro ao Amor. Que isto não é possível sem amor. Ora, se tudo o que refiro não são histórias de amor, o amor não existe.

 

Alegoria

por João Távora, em 10.05.14

Um produto como um detergente da louça pode dar-nos uma lição de vida: lançado com forte poder abrasivo e cheiro a limão só não economiza a espuma que extravasa. Depois, aparece em cores pastel, aromas exóticos, propriedades dermatológicas e... deixa de lavar pratos.

Gente realmente importante *

por João Távora, em 24.03.14

 

Foi na discrição com que habitualmente acontecem os milagres mais decisivos das vidas das pessoas, que se deu este episódio na sexta-feira passada, na plataforma da estação de Entrecampos, a poucos minutos da chegada do comboio Fertagus das 10:30 - Sarita, cabo-verdiana de 23 anos estudante residente na margem sul, assiste aterrorizada à queda na linha de um carrinho com um bebé lá dentro, inadvertidamente empurrado pelo irmão de quatro anos, enquanto a mãe de ambos, alheada, lutava com a máquina de venda de bebidas. Perante uma estação quase deserta, a cerca de quatro minutos da chegada do comboio, Sarita encheu-se de coragem e precipitou-se para a linha, de onde conseguiu a custo resgatar o bebé. Mas a jovem não ganhou para o susto, tanto mais que só após várias tentativas e socorrida por um passageiro entretanto chegado se conseguiu elevar para a plataforma, pondo-se a salvo a poucos segundos da chegada do comboio. 
Sem parangonas nos jornais, medalha de mérito ou outro reconhecimento que não seja o dos que testemunharam este pavoroso susto, ou quem a conhecendo bem, ouviu da sua boca trémula pela emoção o milagre por si vivido, esta jovem junta-se ao clube dos grandes heróis, que nos fazem sentir orgulho da nossa divina natureza. Com um enorme sorriso de Deus. 

 

* Titulo roubado ao meu homónimo e correligionário João Afonso Machado 

Sou do tempo do telex

por João Távora, em 28.01.14

Por favor senhores cientistas e engenheiros informáticos parem por uns aninhos de inventar coisas novas e "disrruptivas" que eu estou cansado de me actualizar e não tenho mais saco para ser moderno.

Ingratidão

por João Távora, em 15.01.14

Nota-se bem à mesa do jantar: os miúdos pequenos só não nos contam tudo porque não se sabem expressar. Quando crescem e aprendem, se for possível não nos contam nada.


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