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A arte de enfeirar

por João Távora, em 12.06.16

Mercado-de-Campo-de-Ourique.4.jpg

 A Praça de Campo de Ourique 

 

Somos feitos também com memórias de acontecimentos e experiências banais, que é do que trata esta crónica. Foi quando eu era pequeno que começaram a aparecer em Lisboa os primeiros supermercados, uma revolução enorme na forma de comercialização dos mais variados produtos de uso doméstico, principalmente alimentares, que assim eram disponibilizados em grandes espaços fechados, num sistema de self-service, num ambiente limpo e de arrumação racional onde qualquer pessoa de qualquer condição social se sentia convidada a entrar. Ainda bastante pequeno, lembro-me de algumas incursões com o meu pai, que gostava de cozinhar e era um bom garfo (nos dias de hoje seria chamado “gourmet”). 

Mais comum nesse tempo eram as mercearias, pequenas e obscuras lojas o mais das vezes contiguas à residência do proprietário, que tinham um pouco de tudo, desde tabaco, detergente ou feijão seco, que dada a proximidade e familiaridade com o freguês, atendiam fora de horas por especial favor, concediam crédito e carregavam nos preços.
Mas do que guardo melhores recordações de então é das idas ao Mercado com a empregada da casa dos meus Avós. A “Praça” como lhe chamávamos, algo que os meus filhos simplesmente não conhecem, era um género de feira num gigantesco recinto semifechado que abria todos os dias menos à segunda, onde se vendiam além de toda a sorte de produtos domésticos, alimentos frescos como carne, peixe e legumes, frutas e flores, comercializados em longas alamedas de bancas pelas vendedeiras que chamavam os clientes, quase sempre donas de casa ou empregadas de servir, tratando-as por “minha querida” e “meu amor”. Então, eu acompanhava a Celeste, empregada dos meus avós, fascinado com os coelhos pendurados a pingar sangue, os pombos, patos e galinhas vivos em grandes caixotes, pelas pescadas de olhos esgazeados e bocarra aberta, molhos de carapaus rebrilhantes, o assustador tamboril, a fruta e os legumes da época, sempre na esperança de ganhar um chupa, um gelado ou chocolate de recompensa por bom comportamento. Um dia regressei a casa radiante premiado com uma jovem rola viva que por uns dias cuidei extremosamente na varanda que dava para a Rodrigues Sampaio… até o fabuloso e ingrato bicho ensaiar um voo e desaparecer nos telhados vizinhos para meu enorme desgosto. A dureza da vida também se aprende com os abandonos, e esse terá sido um dos primeiros de que me lembro.
Tenho ideia que havia um mercado destes em cada bairro da cidade e lembro-me de conhecer pelo menos os de Picoas, da Alexandre Herculano e o de Campo de Ourique onde era a casa dos meus pais. O mais curioso é como o sistema exigia à dona de casa possuir não só uma intuição especial para reconhecer a qualidade e frescura dos alimentos e não se deixar enganar nas medidas e nos pesos – na altura poucos produtos eram embalados e alguns, como os frangos ou os patos era usual serem mortos e depenados ao momento – como ainda ter a arte de regatear os preços com firmeza e compará-los entre as diferentes bancadas vizinhas. Tratava-se de uma importante contenda em que as mais experientes donas de casa disputavam autênticos troféus para no final exibirem com vaidade às vizinhas e com eles premiarem a família na mesa do jantar… como um caçador ufano da sua presa.
Vistas bem as coisas, o facto é que me parece que a realidade muda sempre mais na forma do que no conteúdo e hoje os supermercados, maiores ou mais pequenos, recriam o jogo das compras através de intrincadas promoções e cartões de descontos em que os fregueses mais sabedores podem alcançar uma semelhante sensação de glória na poupança de muitos euros. Irónico é constatarmos como, para o melhor aproveitamento dos descontos e conseguirmos uma dispensa preenchida com produtos mais baratos, temos não só que ser inteligentes como ter uma carteira bem recheada. Quem disse que a vida era justa?

Mercearia-e-Vasco-santana4.jpg

Vasco Santana no papel de merceeiro  

 

Fotografias Roubadas daqui e daqui.


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