Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]



A arte de enfeirar

por João Távora, em 12.06.16

Mercado-de-Campo-de-Ourique.4.jpg

 A Praça de Campo de Ourique 

 

Somos feitos também com memórias de acontecimentos e experiências banais, que é do que trata esta crónica. Foi quando eu era pequeno que começaram a aparecer em Lisboa os primeiros supermercados, uma revolução enorme na forma de comercialização dos mais variados produtos de uso doméstico, principalmente alimentares, que assim eram disponibilizados em grandes espaços fechados, num sistema de self-service, num ambiente limpo e de arrumação racional onde qualquer pessoa de qualquer condição social se sentia convidada a entrar. Ainda bastante pequeno, lembro-me de algumas incursões com o meu pai, que gostava de cozinhar e era um bom garfo (nos dias de hoje seria chamado “gourmet”). 

Mais comum nesse tempo eram as mercearias, pequenas e obscuras lojas o mais das vezes contiguas à residência do proprietário, que tinham um pouco de tudo, desde tabaco, detergente ou feijão seco, que dada a proximidade e familiaridade com o freguês, atendiam fora de horas por especial favor, concediam crédito e carregavam nos preços.
Mas do que guardo melhores recordações de então é das idas ao Mercado com a empregada da casa dos meus Avós. A “Praça” como lhe chamávamos, algo que os meus filhos simplesmente não conhecem, era um género de feira num gigantesco recinto semifechado que abria todos os dias menos à segunda, onde se vendiam além de toda a sorte de produtos domésticos, alimentos frescos como carne, peixe e legumes, frutas e flores, comercializados em longas alamedas de bancas pelas vendedeiras que chamavam os clientes, quase sempre donas de casa ou empregadas de servir, tratando-as por “minha querida” e “meu amor”. Então, eu acompanhava a Celeste, empregada dos meus avós, fascinado com os coelhos pendurados a pingar sangue, os pombos, patos e galinhas vivos em grandes caixotes, pelas pescadas de olhos esgazeados e bocarra aberta, molhos de carapaus rebrilhantes, o assustador tamboril, a fruta e os legumes da época, sempre na esperança de ganhar um chupa, um gelado ou chocolate de recompensa por bom comportamento. Um dia regressei a casa radiante premiado com uma jovem rola viva que por uns dias cuidei extremosamente na varanda que dava para a Rodrigues Sampaio… até o fabuloso e ingrato bicho ensaiar um voo e desaparecer nos telhados vizinhos para meu enorme desgosto. A dureza da vida também se aprende com os abandonos, e esse terá sido um dos primeiros de que me lembro.
Tenho ideia que havia um mercado destes em cada bairro da cidade e lembro-me de conhecer pelo menos os de Picoas, da Alexandre Herculano e o de Campo de Ourique onde era a casa dos meus pais. O mais curioso é como o sistema exigia à dona de casa possuir não só uma intuição especial para reconhecer a qualidade e frescura dos alimentos e não se deixar enganar nas medidas e nos pesos – na altura poucos produtos eram embalados e alguns, como os frangos ou os patos era usual serem mortos e depenados ao momento – como ainda ter a arte de regatear os preços com firmeza e compará-los entre as diferentes bancadas vizinhas. Tratava-se de uma importante contenda em que as mais experientes donas de casa disputavam autênticos troféus para no final exibirem com vaidade às vizinhas e com eles premiarem a família na mesa do jantar… como um caçador ufano da sua presa.
Vistas bem as coisas, o facto é que me parece que a realidade muda sempre mais na forma do que no conteúdo e hoje os supermercados, maiores ou mais pequenos, recriam o jogo das compras através de intrincadas promoções e cartões de descontos em que os fregueses mais sabedores podem alcançar uma semelhante sensação de glória na poupança de muitos euros. Irónico é constatarmos como, para o melhor aproveitamento dos descontos e conseguirmos uma dispensa preenchida com produtos mais baratos, temos não só que ser inteligentes como ter uma carteira bem recheada. Quem disse que a vida era justa?

Mercearia-e-Vasco-santana4.jpg

Vasco Santana no papel de merceeiro  

 

Fotografias Roubadas daqui e daqui.

O piropo

por João Távora, em 28.12.15

El-piropo_Ruth-Orkin.jpg

 Confesso que ao contrário de algumas feministas eu gostava de ter tido direito a ouvir uns piropos. Julgo aliás que a coisa mais próxima dum piropo que alguma vez ouvi remonta aos tempos da minha tenra infância, quando eu ia ao talho ou à mercearia fazer um recado à minha mãe. Infelizmente os galanteios provinham invariavelmente de senhoras com idade para serem minhas bisavós. Verdade seja dita, a gracinha acabou antes de eu chegar à puberdade. Aliás, sempre me custou a perceber o porquê das vizinhas velhotas me acharem tanta graça ao mesmo tempo que as miúdas da escola teimavam ser sempre tão reservadas e distantes no que ao assunto diz respeito. Entendi mais tarde que havia uma questão de “papéis”: afinal competia-me a mim ser duro, destemido e cortejador. Não muito convencido disso, ainda tive esperança de usufruir de alguns benefícios da dinâmica igualitária da revolução sexual que teve particular impulso durante a minha juventude. Privilégios que fossem mais estimulantes do que lavar a loiça e cozinhar que então se juntavam aos tradicionais de ir buscar as minhas irmãs a casa das amigas, carregar com a bilha de gás e os sacos das compras. É muito azar: a revolução afinal foi demasiado lenta e não será certamente agora, pai de família careca e consumido por mais de cinquenta anos de erosão que me habilito a ouvir um piropo atrevido. 

Vem isto a propósito desta notícia do DN, referindo que desde Agosto um piropo possui carácter de "propostas de teor sexual" com relevância criminal. É uma pena: se estou convencido de que não é com decretos-lei que se irá acabar com a perversão humana, acredito que com o moralismo se pode acabar com muita boa disposição.

Relido e revisto

por João Távora, em 13.10.15

O casamento tradicional foi "vendido"  por hollywood
à geração dos meus pais como um conto "happily ever after"
e resultou num estrondoso "baby boom".
Completamente fora de moda por estes dias,
não se prevê que eu tenha grande sucesso explicando-o aos meus filhos
como instituição ligada à responsabilidade, ao altruísmo, à perseverança e ao prazer diferido.

Minha querida família

por João Távora, em 10.10.15

Wall familia canta 1906.jpg

Nunca ninguém garantiu que a liberdade, a escolaridade e a prosperidade democratizassem o sentido de responsabilidade ou o bom senso. Vem isto a propósito de um fenómeno que o "inverno demográfico" esconde: se é previsível que daqui a dez ou quinze anos tenhamos metade das escolas ao abandono, mais graves serão as consequências duma  crise que se adivinha na "família" como célula mãe da sociedade, capaz de corroer de forma dramática os alicerces da nossa civilização. 

Sou daqueles que teve a sorte de crescer numa família tradicional - sem dúvida um espaço alicerçado no equilíbrio entre a tolerância e repressão - daquelas com abrangência alargada, com casa dos avós, tios, primos e tudo; como que um mosaico de pequenas comunidades, mais ou menos interligadas numa rede de solidariedade, afectos e partilha de história comum - e que de forma decisiva em tempos me socorreu. É certo que para que este antigo e eficaz modelo se generalizasse na sociedade contemporânea, concorreu uma equívoca mistificação do casamento romântico na geração dos nossos pais: O casamento tradicional foi-lhes "vendido" por Hollywood como um conto happily ever after e resultou num estrondoso baby boom. Completamente fora de moda por estes dias, denúnciada a família como “instituição burguesa,decadente e repressora” pela geração do Maio de 68, não se prevê que eu tenha grande sucesso explicando-o aos meus filhos como instituição ligada à responsabilidade, ao altruísmo, à perseverança e ao prazer diferido. A verdade não vende, como não ganha eleições. 

Como bem sabemos, cada vez há menos casamentos, no sentido da formação de novas “casas”, modelo de sucesso comprovado inspirado na aristocracia liberal europeia. Consta que no ano passado, das poucas crianças nascidas, mais de metade terão sido fora do casamento. Por exemplo, durante o ano de 2014 na paróquia do Monte da Caparica na margem sul do Tejo – sei bem que é um microcosmos algo especial - realizaram-se apenas quatro casamentos católicos. Curioso como no meio conservador que frequento também são cada vez mais raros os sinais de cedência dos jovens a esse modelo, sendo frequentes as relações amorosas "liberais" prolongadas, assumidas com um pé dentro e com outro fora da casa dos pais – julgam que obtêm assim o melhor dos dois mundos. Por ironia trata-se do reconhecimento de como a casa de família que alguém edificou e mantém para eles, é afinal útil e virtuosa instituição como seu último reduto de refúgio e reconhecimento, apesar de votada à extinção.

Temo que estejamos a criar uma sociedade de indivíduos isolados e frágeis com pertenças difusas, precárias ou inexistentes até. A família como eu conheci, como um organismo intermédio, projecto perene, crivo cultural com história própria, território protector do grande monstro igualitário da cultura dominante para a formação de seres críticos e livres, atravessa uma grave crise. Essa família que ainda hoje acolhe os deambulantes jovens adultos, quais eternos filhos pródigos que adiam assumir as suas opções e uma realização plena, por troca dum prato de lentilhas ou um smartphone de última geração, símbolo da sua “liberdade individual”. Se calhar ao definir este fenómeno como se de uma crise se tratasse, estarei a ser optimista. Porque esse termo por definição designa algo passageiro – e eu estou longe de pressentir alguma mudança no rumo da história.  

 

Fotografia daqui

Onde nos poderemos encontrar

por João Távora, em 14.08.15

Mine craft kid.jpg

 

Ao longo do paredão entre o Estoril e Cascais decorre por estes dias uma cativante exposição onde se confrontam lado a lado em grandes painéis, fotografias actuais e coloridas das diversas praias e falésias com registos antigos das mesmas vistas, concebidos naturalmente a preto e branco entre 1900 e 1960. Um gosto especial para quem como eu se sente parte duma comunidade que integra, não só uma história e uma geografia, mas uma cultura transgeracional,  que comporta os antepassados que conceberam a realidade que nos coube de presente. Foi assim que há dias quando regressava da praia com o meu miúdo pequeno, enlevado, consegui cativá-lo num jogo em que os dois comparávamos e procurávamos diferenças nos diversos elementos das paisagens. Aquela casa ali está igual, acolá não havia ainda uma estrada, naquela praia as rochas estão iguais, no outro lado o comboio era a vapor, ou os fatos de banho masculinos de corpo inteiro. Eis senão quando a minha criança, cuja cabecita voadora, apesar dos muitos serões com leituras das minhas referências juvenis, mal consigo interpretar, me assevera que a vida no meu tempo devia ser muito aborrecida. Encaixei com custo a inocente atoarda "esquerdista" do agora-é-que-é-bom-antigamente-era-o-obscurantismo. Sem lhe perguntar porquê, (talvez porque adivinhasse que a razão desse juízo devia ter que ver com o facto de no meu tempo não haver o Minecraft, um jogo de computador de que é fanático) o pequenote esclareceu-me que “as casas agora são muito mais modernas e giras”. Um fosso de incompreensão geracional rasgou-se profundo entre nós os dois.

De certa forma este episódio vem corroborar uma perspectiva segundo a qual, do nascimento à idade adulta se faz um percurso político, assim a modos de dizer… da esquerda para a direita. Explicando-me, há um caminho de redenção que se faz da total inconsciência de si no nascimento onde se inicia a construção de um ego insaciável e reivindicativo que, de protesto em protesto, em função de si e das suas necessidades a todos obriga à sua volta. Depois, no jardim-de-infância, com mais sofisticação, já a coisa resulta na bem conhecida teoria de que “tudo o que é meu é meu, e o que é teu é nosso”. É a fase revolucionária, da solidariedade obrigatória, da restruturação da dívida e da reivindicação permanente de direitos, e recusa terminante de deveres - enfim, o "bom selvagem" em potência. Esta crise só terá paralelo no pico da adolescência, que é por assim dizer o “meio da ponte” entre a infância e a idade adulta, uma fase perigosa em que muitos optam por estacionar definitivamente – mergulhados no seu guloso umbigo, com total desprezo pela realidade, nunca vão entender que já havia vida inteligente e sensível na terra antes ou para lá de si próprios (este é um perfil comum em boa parte dos militantes do PS e do Bloco de Esquerda, anarquistas e fumadores de cannabis). Com um desenvolvimento saudável a maioria vai assumindo a inevitabilidade do protagonismo que lhe cabe na sua vida, e que aquilo que do Mundo que está na sua mão "mudar" se circunscreve aos seus próprios comportamentos. Com o uso de um pessimismo metódico mas rejeitando sempre o cinismo - que não é mais do que o “conhecimento” descarnado de amor - cada um vai intuindo a estonteantemente complexa precariedade humana e de como ao longo da história da humanidade, para lá do desenvolvimento técnico, afinal as mudanças se deram mais na forma que no conteúdo. Finalmente a evolução natural resultará um dia no espírito do sereno e pacificado conservador, que é a encruzilhada da consciência onde certamente o meu filho e eu nos voltaremos a encontrar.

Mariquices de outros tempos

por João Távora, em 17.04.15

namorar1.jpg

I’m slowing down the tune
I never liked it fast
You want to get there soon
I want to get there last

(...)

Leonard Cohen 

 

Hoje em Cascais no jardim em frente ao meu escritório o meu olhar estranhou um casal que caminhava entrelaçado em passadas lentas e alinhadas. Essa visão lembrou-me manifestações antes tão comuns que depois catalogámos de possidónias, como bailaricos ou passeios nas tardes domingueiras com roupa de “ver a Deus”, nos jardins ou avenidas, a ecoarem ao fundo os gritos das crianças a brincar e o relato da bola num transístor. Se os nossos avós que tiveram de namorar “de janela”, se conformaram a encontrarem-se só em lugares públicos com um irmão mais velho ou uma criada, a minha geração envergonhada erradicou qualquer exibição de compromisso. E agora morram de vergonha os jovens leitores: o meu saudoso pai contava que antigamente no Liceu Passos Manuel onde estudou, os bons amigos andavam de braço-dado no recreio.
Claro que a minha geração, medrosa e puritana como se fez, baniu esses indecentes hábitos sociais de gente careta, iletrada, rude  – no meu tempo do liceu, tempos revolucionários, do rock pesado e da “poesia com mensagem”, já só sabiamos dançar sozinhos e caminhar de “mão dada” tornou-se uma pieguice. 

Enfim, a mesma geração que institucionalizou o nudismo, o amor livre e toda a sorte de fantasias eróticas, envergonhou-se de namorar, um assunto que circunscreveu à poesia. Curioso como ao mesmo tempo que aprenderam a tolerar demostrações públicas em homossexuais, homem e mulher tenham desaprendido de andar de braço dado com o andar sincopado. Curioso como, com tanto sexo em prime-time, criámos uma comunidade tão estéril e fragmentada. Porque o romance para fazer história tem de ser mais longo que uma canção pop. 

Em calhando

por João Távora, em 15.12.14

Sporting.jpg

Lembro-me bem, Filipe: vinha eu ontem de Alvalade a digerir o melão do empate com o Moreirense enquanto pelo relato da telefonia escutava os comentadores de serviço a tecer rasgados elogios à equipa azul e branca, que já falhara várias ocasiões de golo, na exacta medida em que depreciavam a postura constrangida do Benfica, esmagados que estavam com a autoridade dos donos da casa. Até que o Lima marcou o primeiro golo, julgo que pouco depois da meia hora de jogo. “Olha-me a sorte dos lampiões… calhou!” Foi o que eu pensei. Confesso que não vi o resto do jogo, que esta coisa de um pai de família quando chega a casa tem outras prioridades e contrapartidas a prestar, principalmente quando passou a tarde de Domingo precisamente na bola. 

Vem isto a propósito do estranho e súbito veredicto repetido mil vezes pelas sumidades da bola que enxameiam os canais por cabo e os jornais da especialidade ou nem por isso, que a malta consome na ânsia de prolongar o gozo da vitória ou encontrar bodes expiatórios que amenizem a depressão da derrota:  a vitória do Carnide reflectia afinal uma exibição brilhante e uma extraordinária estratégia por parte de Jorge Jesus
Ora acontece que, tão certo quanto Jorge Jesus ser um bom treinador, os resultados futebol dependem em grande medida do factor “calhar”, que os portugueses tão bem exprimem com o “em calhando”. Acontece que "em calhando" uma ou duas bolas na trave, um montículo de relva que desvia a bola, podem custar três pontos. Não, não é só do campo inclinado pelo árbitro vendido, da capacidade de liderança do treinador, da qualidade táctica e técnica de um mais ou menos harmonioso conjunto de jogadores que depende um resultado da bola. Em calhando num dia mau ou num dia feliz, perde-se ou ganha-se um jogo, essa é que é essa! Com a regra do “em calhando” perdem-se campeonatos e despedem-se treinadores. A regra do "em calhando" é preponderante e obviamente não é a única com influência no resultado, mas é precisamente essa que dá magia ao futebol: o Benfica ontem jogou pouco, mas calhou ganhar - ficaram felizes os lampiões, não há quem os ature. E a segunda parte do Sporting seria suficiente para a vitória... mas não calhou. De resto, caro Filipe, se não sabes ficas a saber que esta regra é verdade cientifica, excepto com os chatos dos alemães.

Texto originalmente publicado aqui

Mais uma crónica moralista

por João Távora, em 19.09.14

Ontem á tarde, depois de umas voltas a pé pelo Chiado ocorreu-me o sugestivo achado de que, se até ao século XIX as crianças se ataviavam como adultos, hoje em dia os adultos querem é vestir-se como as crianças, por exemplo, com boné americano, t-shirt garrida com um excesso qualquer, calções e sapatilhas de Basquete (na melhor das hipóteses). 
De facto é especialmente durante o século XX que se verifica um crescente cuidado na diferenciação com o trajar infantil, na assunção da sua especificidade face aos adultos, expresso através de elementos coloridos e resistentes que evidenciassem a inocência dos petizes favorecendo a liberdade de movimentos que a brincadeira requer. Daí à proliferação de modistas e lojas especializadas foi um salto, e imagino que tardando em relação aos outros países ocidentais, nos anos sessenta já existiam em Lisboa pelo menos dois casos sérios na matéria, a italiana Brummel e a portuguesíssima sapataria Bambi para gáudio das mães mais extremosas e endinheiradas. Facto não despiciendo, é que o trabalho infantil só vem a ser proibido bastante mais tarde.
Democratizada como objecto de consumo acessível e transversal no ocidente, a moda é hoje inevitavelmente um reflexo do "espírito do tempo". Talvez por isso o adulto resista a qualquer formalismo e sofisticação, mais preocupado em vestir-se para chamar a atenção... pelo espanto. Idealizada a infância, acontece que ela é a representação aproximada do “bom selvagem” o devaneio de Rosseau, bem-aventurado, livre e inocente porque desligado de quaisquer normas e espectativas sociais que o corromperão (e quem é que inventou essa de que a infância é na sua natureza tempo de felicidade e inocência?!). Deste modo por estes dias a forma de vestir tende para uma cada vez maior informalidade, mas anacronicamente esmerada e até dispendiosa - todos diferentes, todos iguais, numa mensagem de emancipação e afirmação de inconsequência, exterioridade, descomprometimento, completa e inexoravelmente só. 

Em defesa deste discurso moralista tenho a dizer que me admiro tanto com uma garota de biquíni subindo a Avenida da Liberdade quanto um homem de fato e gravata no areal duma praia. E que acredito na liberdade de escolha individual como valor fundamental, e que ao fim do dia todos temos o direito de nos imaginar até um artista de rock. O que me parece trágico é que, se a evolução estética ocorrida na moda infantil durante o século XIX e XX reconhecia essencialmente a especificidades da criança com inequívocos direitos a um desenvolvimento no sentido da responsabilização e urbanidade, hoje os seus filhos ou netos parecem reclamar através das mais bizarros trajes um estatuto de total puerilidade, como uma geração que recusa ou resiste a crescer e assumir a sua quota de responsabilidade para o sustento ou avanço da civilização.
No outro dia duas pessoas à porta do colégio dos meus filhos, despedindo-se utilizavam uma expressão aparentemente vulgar e incipiente mesmo entre duas caricaturas de adultos: "Adeus, pá, porta-te mal se puderes!". Talvez pelo enquadramento a coisa deixou-me a pensar. Certamente não quer dizer nada e não me lembro de como estavam vestidos. 

Meets e arrastões

por João Távora, em 30.08.14

Hoje foi uma das raras vezes que me identifiquei com uma ideia do Daniel Oliveira e que até concordei genericamente com uma sua crónica no Expresso (coluna que por assumido preconceito não costumo ler para não me chatear) onde ele aborda os jovens e o “epifenómeno” dos meets, tema que acalorou um pouco os dias vazios deste resfriado e agonizante mês de Agosto. Da ideia já eu fizera em tempos menção numa das minhas usuais crónicas moralistas: o “aborrecimento”, um estruturante estado emocional democraticamente distribuído às crianças e jovens do meu tempo, é hoje roubado às novas gerações de jovens e crianças, empanturrados que vivem com centenas de canais televisivos, telemóveis, jogos electrónicos e Internet, um infindável chinfrim de distracções fáceis, em desfavor da dúvida existencial e da consolidação duma “interioridade” que a apenas o silêncio, a solidão e os tempos mortos estimulam.
Quanto ao mais, meets ou “arrastões”, convenhamos que uma análise ponderada e racional descredibiliza os alarmismos de cariz xenófobo com que os tablóides exploram os medos mais básicos às pessoas. Há dias refastelado numa praia do Monte Estoril onde quando eu era miúdo molhar o pé era desaconselhado por causa dos esgotos que despejavam ali bem perto, confrontei-me com um panorama só aparentemente peculiar: o duma mistura saudável de bandos de miúdos de subúrbios de todas as cores (a linguagem é de facto aterradora), ao desfio a mergulhar do pontão para as águas límpidas, turistas do centro da Europa, filhos de emigrantes em visita à Pátria, tias, sobrinhos e dondocas da Linha, todos a partilhar um areal exíguo mas asseado, numa concessão balnear ao nível de um luxuoso hotel de cinco estrelas. O que eu quero salientar é que, apesar dos incidentes que são a excepção e confirmam a regra, é um facto que no meu País, na minha cidade e no meu bairro, a qualquer hora do dia, sinto-me seguro para me deslocar a pé, consultar o telemóvel e transaccionar um bem no espaço público sem grandes desconfianças. Tudo isto é um privilégio que não sendo um dado adquirido, constitui um precioso legado, um consenso negociado e consolidado ao longo de gerações de uma pacífica comunidade de desconhecidos aliados tacitamente, conquistado diariamente através de cedências individuais em prol de uma sã convivência e prosperidade para todos, ou tantos quanto possível. Assim saibamos preservar isto, que é o fundamental.

Opíparo, meus senhores!

por João Távora, em 08.07.14

Os nossos leitores não sabem, mas isto de ter um blog colectivo o melhor que tem é mesmo o convívio e as jantaradas. E se Jesus Cristo fundou a Igreja à mesa com os apóstolos, nós portugueses cedo percebemos que é à mesa que se podem resgatar as almas das trevas. Afinal quando as coisas correm bem “é o que levamos daqui”, como diz a sabedoria popular.
E assim foi, debaixo de um majestoso pôr-do-sol na Praia da Poça em São João do Estoril, que decorreu ontem mais um dos já afamados jantares do Corta-fitas. Foi a segunda vez que um destes acontecimentos saiu de Lisboa, depois de uma inesquecível experiência há uns anos na Ericeira e pode dizer-se que descontando as notadas ausências da Luísa e dos correspondentes do Norte, Vasco Lobo Xavier e João Afonso Machado, foi um sucesso. De notar que mesmo assim a incidência de "Vascos" foi marcante, com os Vascos Rosa e Mina a tirarem claramente vantagem pelo facto. O Peixe-galo foi comido em saborosos filetes que é o que se aconselha a uma segunda-feira mesmo num restaurante à beira-mar. Por diversas vezes foram as conversas convenientemente interrompidas com sonoros brindes de Saúde a Ricardo Salgado, tristes compungidos e solidários que estavam os presentes com as recentes arrelias do demissionário banqueiro. Chegados aos cafés, acesos os cigarros e cigarrilhas, o Duarte Calvão não se coibiu de humilhar os presentes com um enorme charuto com que aliás acompanhou mais um brinde ao Dr. Ricardo Salgado – inteiramente correspondido com chávena em punho pela nossa especialista em assuntos de banca, a Maria Teixeira Alves.
Com o ventinho enregelado a chegar aos ossos, o José Mendoça da Cruz que percebe destas coisas, convidou os comensais para fecharem a noite com um último copo na sua acolhedora casa, gentileza bem recebida por todo o grupo, não sem antes, divididos em três carros, fazermos uma ruidosa paragem na bomba de gasolina para municiamento de whisky e tabaco. Foi quando eu me senti rejuvenescer trinta anos, e reviver por instantes os tempos da minha juventude rebelde.
Já nos aposentos do nosso anfitrião, ainda tivemos a oportunidade de, mais uma vez, beber uma saúde ao malogrado Dr. Salgado, que não lhe falte nada na velhice, amigos e consolo dos que lhe são chegados - foram os nossos sinceros votos. 

 

PS.: Da próxima levo a minha grafonola e uns quantos Foxtrots e Ragtimes que é um regalo.

Os nossos mortos

por João Távora, em 03.07.14

Curioso como quase sempre recordamos os nossos mortos pelos seus traços principais, momentos luminosos, devidamente despoluídos das mesquinhezes, desgastantes rotinas e conflitos. É uma questão de sobrevivência pois que somos também feitos dessas memórias, e por isso resguardamos as boas, que dessa forma nos completam e animam no projecto de sermos gente pela vida fora. Só assim é possível prestarmos tributos, amar os nossos heróis, construir os nossos panteões. Chegamos à idade adulta quando não dispensamos os nossos mortos, assim idealizados e suportados nas suas grandezas, perdoadas e resolvidas as disputas e mal entendidos. Assim nos integramos numa comunhão de pensar, ás vezes até em diálogos íntimos como preces, sobre tudo e sobre nada, sábios conselheiros que eles são.
Assim pela vida fora os nossos mortos ajudam-nos a crescer. Precisamos de amar os nossos mortos, e a nossa memória encarregar-se-á de arrumar a casa toda. Distanciados pelo tempo entendemos as precariedades mundanas e os pecadilhos terrenos. Perdoando-os também aprendemos a nos perdoar, a entender o difícil caminho da santidade, esta eterna construção. Que é permanecer com os nossos, pelos nossos depois da nossa vez. No sentido da Luz. 

 

Foto: O meu irmão e eu nas docas de Alcântara por volta de 1967

Junho

por João Távora, em 15.06.14

Tem boa onda o mês de Junho - é tempo de escola cumprida, promessa de grandes férias grandes ainda por desvendar. Junho é mês de feriados e arraiais, com fumo de assar sardinhas e cheiro a farturas com canela, sangria gelada em noites retardadas por um sol arrogante num desaforo de cores nos limites da decência. O mês de Junho desponta o corpo destapado do inverno que já toma a temperatura ao oceano: submerge com os primeiros banhos de praia num engano de emancipação, logo dissipada como a espuma duma cerveja ao final dum Domingo. Depois há toda esta comunhão planetária, euforia partilhada do futebol em horas impróprias. Uma crescente ilusão de irmandade global de afectos, como num anúncio de chuteiras em que se junta o mundo inteiro nos olhos fundos duma criança. Ou de como o chuto numa bola rasgando o espaço interrompe uma guerra, adia os negócios, diverge os amantes, acelera os corações e suspende as marés. Com alguma sorte entramos em Julho de cabeça nas nuvens.  

Uma casa ou uma história de resistência

por João Távora, em 18.04.14

Com uma pose bem-humorada pouco comum numa fotografia
de família do início do século XX (algures em 1908/9) aqui se apresentam,
de cima para baixo, a minha tia avó Carlota,
o meu avô José Maria de Lancastre e Távora
e os meus tios avós, Pedro, Rita e Luísa.

 

Num recanto paradisíaco de Lisboa entre Campo de Ourique e a Lapa, em frente a um prazenteiro chafariz ficava a casa para onde se mudaram no início dos anos quarenta os meus avós paternos, que hoje faço o mote das memórias que aqui partilho.

Não conheci o meu avô José, que morreu três meses depois de eu nascer: muito culto e severo, segundo rezam as crónicas do meu Pai, teve uma vida aventurosa entre a universidade onde a revolução da república o apanhou - e que não abandonou apesar de tudo - as incursões monárquicas que incorporou mais tarde com Paiva Couceiro, depois o exílio político, e finalmente a Iª Grande Guerra nas fileiras da Legião Estrangeira em que se alistou na Bélgica. Com temperamento pragmático, terá sido o primeiro membro da sua família tradicionalista, da antiga nobreza de Portugal, a completar um curso superior, opção que lhe veio a proporcionar uma profissão como engenheiro civil e a independência necessária para fazer face às mudanças de estilo de vida que no início do século XX pela Europa fora se radicalizavam. A fortuna da família que resistira às reformas e perseguições dos liberais, ao fim dos morgadios e a décadas de oneroso apoio ao Rei Dom Miguel, não resistiria às despesas do exílio da família em St Jean de Luz nos durante a 1ª república, à crise económica decorrente da Guerra e a uma manifesta falta de bom senso que a realidade exigia. A venda do Palácio de Santos ao Estado Francês foi consumada pelo meu bisavô João em 1917.

O exílio do meu Avô terminaria 1935 quendo regressou do Luxemburgo sete anos após o seu casamento com Maria Emília Casal Ribeiro Ulrich, senhora quase vinte anos mais nova: foi a minha madrinha, uma pessoa austera mas conversadora espirituosa, que recordo com saudade, de volta dos seus tricots, livros, ou até a assistir à transmissão dum relato de futebol ou ao Grande Prémio de Fórmula I, modalidades de que era entusiasta. 

Outra personalidade inesquecível desta casa que a adoptou e de que era alma também, era a Tia Lalita, sobrinha direita do meu avô, solteira sem filhos e extremamente amiga da minha Avó, que acompanhou até aos seus últimos dias. Lembro-me bem da sua companhia em tardes soalheiras a costurar, numa pequena salinha aproveitada duma marquise, enquanto eu me entretinha com construções de Lego, a desfolhar livros da Becassine ou revistas do Cavaleiro Andante, todos sob o olhar atento do papagaio Jacó. Lembro-me também dos passeios que dávamos para os lados de Belém no Volkswagen carocha que a minha avó conduzia com desenvoltura. Consta que terá sido das primeiras senhoras em Portugal a tirar a carta de condução. 

A casa dos meus avós Abrantes tinha algumas particularidades engraçadas: contrastando com os móveis antigos e os pesados quadros a óleo dos nossos antepassados, era equipada com tecnologias  na época pouco usuais aos meus olhos, como uma grande televisão com comando à distância – por fio se bem me recordo - torneiras com misturadoras na casa de banho, centrifugadora para sumos e outros prodigiosos electrodomésticos. Para gáudio dos netos dispunha dum encantador jardim rectangular com limoeiros, onde podíamos correr e sujar de forma controlada. Era uma casa com uma área não muito grande, mas em três andares e com uma organização logística muito moderna para a altura. No rés-do-chão onde vivia a Lurdes, a exímia cozinheira da casa e o seu marido Manuel Brito com os filhos José e Maria Emília. Era no mesmo andar onde se situava a garagem e uma lavandaria com espantosa maquinaria, que estava na origem dos fascinantes ribeiros, às vezes com espuma e outras não, que corriam em direcção ao muro das escadas para uma misterioso “túnel” escuro, que servia para inúmeras brincadeiras com carrinhos, bonecos e pauzinhos. Foi nesse espaço mágico onde a determinada altura vivia escondida entre o carvoeiro e as capoeiras uma corsa assustadiça e focinho húmido - Seiça de seu nome. Tinha muito medo de mim e dos meus irmãos. Numa das janelas

rebaixadas sobre o jardim encontrava-se por vezes a Aninhas atrás da sua máquina de costura, muito velhinha, de que me lembro ouvir queixar-se dos olhos consumidos pelo trabalho...
Uma particularidade inédita desta casa - presumo que por influência do declive da rua - era uma zona, particularmente no segundo andar onde ficava a sala de televisão, em que o sobrado inclinava ligeiramente, favorecendo as corridas com os automóveis miniatura. Da janela dessa sala, nos dias de calor era comum eu ficar a ver num misto de inveja e repugnância, a miudagem a banhar-se com espalhafato no chafariz da rua, perante a condescendência do polícia de guarda à embaixada da Suíça, elegante edifício que com a fachada cor-de-rosa fazia do todo um quadro pitoresco.  

De resto, a memória feliz que guardo das vezes que fiquei a dormir na Travessa do Patrocínio, é a sensação de viver no campo que se tinha ao levantar pela manhã; sem ruído de automóveis e com a perfusão de chilrear dos pássaros. Apenas interrompida pelo ecoar do altifalante do centro de saúde da Caixa de Previdência ali mesmo à esquina. Exóticas sensações e panoramas que ainda hoje se podem vivenciar em muitos microcosmos de intimidade quase bucólica, afinal bem no centro da cidade de Lisboa.

 

Patrocinio2.jpg

Fotografias:

1 - Arquivo de família

2 - A casa no final do século XIX - Arquivo da C.M.L.
3 - Perspectiva do Chafariz, por Ozias Filho
4 - Aspecto actual, por Ozias Filho

Bola de Berlim, um merecido tributo

por João Távora, em 18.11.13

Foi uma genuína homenagem ao cada vez mais raro Bolo de Arroz autêntico que o Padre Tolentino de Mendonça consagrou em tempos numa numa sua crónica no Expresso, que inspirou estas linhas que hoje dedico à tão portuguesa “Bola”, que como veremos "de Berlim" tem muito pouco. E que me perdoe o Duarte Calvão esta tão simplória mas franca incursão aos seus territórios da culinária e gastronomia, no caso a despretensiosa pastelaria portuguesa.
Se a Bola de Berlim é há muito um inegável megassucesso universal, um precoce sinal da globalização, acontece que as versões recriadas em cada País têm tanto em comum quanto o seu modo de pronunciar: de Berliner Pfannkuchen ou Berliner Ballen na Alemanha onde são recheadas com compota, ao Sonho no Brasil com “doce de leite”, passando pelo Sufganiyah de Israel, ou  Borlas de Fraile como são conhecidas na Argentina e no Uruguai, ao Doughnut anglo-saxónico cujo recheio é, como bem sabemos, um buraco no meio (são danados para o negócio os bifes). Por exemplo em Essen  na Renânia do Norte-Vestfália, chamam-lhes Kreppel, e apesar de serem em argola, eu vi-as serem vendidas na rua quase do tamanho dum Pão Saloio (são uns bárbaros estes germanos). No fundo estes bolos pelo mundo fora, apenas partilham do facto de serem redondos, fritos e feitos com  farinha doce com fermento, o que convenhamos não é muito. Mesmo na pastelaria portuguesa, ou de Lisboa onde as Bolas de Berlim "com ou sem creme de pasteleiro” são mais populares, o seu sabor difere completamente de fabricante para fabricante.  
Se é certo que na infância uma oleosa Bola de Berlim de quinze tostões comprada na padaria em frente à escola numa manhã gelada de Inverno nos fazia as delicias - até porque o critério preço/tamanho era decisivo - um parecido fenómeno sucede ainda hoje ao fim de três horas de jejum e actividade física ao ar quente e oxigenado de uma praia, com o apetite ao rubro. Também recordo as Bolas assim quentinhas que se vendiam em Alcântara noite louca adentro onde fazíamos bicha de madrugada para serenarmos os ânimos e aconchegar o estômago mal tratado. E se a meio de uma viagem formos assaltados por um bichinho no estômago, também é verdade que numa estação de serviço um Doughnut até marcha e é bem capaz de nos poupar uma má surpresa.  
Mas acontece que há uma receita de Bola de Berlim que em mim resulta um pouco como a célebre Madalena com chá de Proust em ”Do Lado de Swann”. Distingue-se pela sua uma massa leve, fofa e amarelada, exclusivamente pelas propriedades do ovo, e com um fino sabor amargo-doce no final. Esta Bola de Berlim ideal, que vos garanto define um bom pasteleiro, dispensa o creme: o açúcar cristalizado que adere à suave camada exterior, fina e bronzeada é recheio que baste. Ainda a encontramos, por exemplo, na Pastelaria Aloma em Campo d’ Ourique e na Garrett no Estoril, locais onde garantidamente vale a pena peregrinar para fruir uma autêntica experiência divinal, metafísica. 

 

Foto: Wikipedia

O grande bruxedo

por João Távora, em 03.11.12

 

 

Enquanto os adultos andavam num desinço a discutir o insondável significado de “refundar” e as criancinhas excitadas com o Halloween promovido com esmero pela escola pública e outros estabelecimentos comerciais, suspeito que tenha passado despercebido à maioria das pessoas que vivemos na 5ª feira o último feriado de Todos os Santos, ancestral solenidade da cristandade criada em honra dos seus heróis, consagrados ou anónimos, consolidada entre os séc. IV e VIII, quando ser “de Cristo” era uma arriscada escolha de profunda radicalidade.
Revela-nos a História que então, como ainda hoje acontece no Natal e na Páscoa, as comemorações cristãs não dispensavam uma acolhedora vigília noite dentro, culto para o qual as comunidades se deslocavam a comemorar atraídas pelo Encontro nas iluminadas e aquecidas Igrejas e Catedrais. No norte da Europa medieval, era costume bruxas e druidas nessas noites organizarem cultos satânicos, literalmente “alternativos”, assinalados à entrada com abóboras iluminadas, para aliciar os caminhantes.
Dou de barato que numa sociedade laica e hedonista, os católicos tenderão a ser cada vez menos… talvez mais conscientes e temerários como os primeiros clandestinos. Mas provoca-me sincera apreensão que, para bem do comércio e do circo, a adolescentocracia dominante tenha imprimido às principais solenidades religiosas um cariz consumista, exterior e leviano. O chocolate e o coelhinho ocuparam a páscoa de Cristo, o Pai Natal e as renas instalaram-se no Presépio, e o Halloween impõe-se ao Dia de Todos os Santos. Os portugueses penhoraram a soberania económica, mas a identidade cultural há muito que se vai diluindo, desnaturando. E a maior patranha que a modernidade nos vendeu é a de que Satanás não existe.

 

Foto: Outono profundo - efeitos Intagram 

A grande maldição

por João Távora, em 27.10.12

 

Na quinta-feira passada não resisti a assistir a mais uma amarga derrota do Sporting e assim me certificar do seu acelerado fenómeno de decadência. Uma pessoa não se habitua à dor e palavra de honra que fiquei incomodado, com um inaudito melão. 
Como já referi mais do que uma vez, nestas coisas da bola sou apenas um adepto de paixão que não leva a sério a discussão de estratégias facilmente objectadas por uma bola à trave, uma lesão fatal ou má arbitragem. Ou seja, este é daqueles temas em que sou meramente “clubista”, ou seja, parcial e apaixonado - o que me move (me faz saltar) são as bolas lá dentro.
As razões atrás expostas não me permitem portanto uma análise lúcida da situação. Isso tem na língua portuguesa uma expressão clara e explícita, diz-se: o Filipe é do Benfica, o Vasco é do Porto e o João é do Sporting. Uma relação de propriedade, inevitabilidade umbilical, siamesa, da qual não há fuga ou libertação possível. Entendamo-nos: se fosse ao contrário e o Sporting fosse meu, eu rifava-o, escondia-o no sótão no baú dos trastes de família, aí mesmo onde estão todos os descarnados esqueletos. Mas não; para desgraça minha sou eu que sou do Sporting, qual Fausto que por uma miragem de felicidade vendeu a alma, e que assim alcançou a dor lancinante do perpétuo fogo dos infernos diabólicos. Não há rádio, jornal ou noticiário que a cada hora não me confronte com esta maldita condenação de assistir com uns palitos nos olhos ao naufrágio clube de que sou refém.
Agora mais a sério: temo bem que pouco haja a fazer nestes dias para resgatar um pouco de orgulho e alegria aos sportinguistas, que em boa verdade, desde os anos sessenta, animados por umas poucas e fugazes vitórias, vivem dos seus pergaminhos. E se há pessoa que sabe que, exceptuando para a um alfarrabista, o valor prático dos pergaminhos é igual a zero sou eu; acreditem. Como diz o povo, "fidalguia sem comedoria é gaita que não assobia" e pelos vistos acabaram-se as filhas dos brasileiros ricos para “bem casar”, que o dinheiro custa a ganhar em todo o lado. E sem palhaços acabou-se o circo. É uma gaita.

Vítor Damas

por João Távora, em 24.07.12

Vítor Damas, um dos melhores guarda-redes portugueses de sempre, nasceu a 8 de Outubro de 1947 em Lisboa e morreu prematuramente aos 55 anos, em Setembro de 2003. Este mítico jogador, senhor de inaudita elegância dentro e fora dos relvados, fez nada mais nada menos do que 444 jogos oficiais em dezanove épocas ao serviço do seu clube do coração. A sua ascensão à titularidade no primeiro escalão do futebol leonino coincide com a minha tomada de consciência “sportinguista”. Acresce que um guarda-redes destaca-se no campo não só porque se equipa de cor diferente, mas porque assume o solitário papel idiossincrático dum homérico contrapoder – cabe-lhe a missão de se transcender de corpo inteiro, incluindo as mãos, na obstrução do maior objectivo dum jogo que se joga com os pés: o golo. Assim se entende como ele é por natureza um cromo tão difícil, definição que encaixa como luvas no mítico guardião leonino.

Talvez seja por isso que, na perspectiva de uma criança, não só o ponta-de-lança mas também o guarda-redes, adquiram tanta importância num jogo ainda difícil de interpretar: tratam-se afinal do primeiro e último reduto do exército no campo de batalha. Nesse sentido, tomar consciência do futebol com protagonistas como Yazalde e Vítor Damas foi um privilégio que sustentou o meu sportinguismo. Nas brincadeiras, “ser o Damas” era o privilégio de ser a antítese de Eusébio, o incontestável ídolo da época, que quando um dia lhe perguntaram qual a sua melhor memória do velhinho estádio de Alvalade, em vez de se referir aos seus golos ou vitórias, aludiu-se a uma extraordinária defesa do Damas ocorrida em 9 de Novembro de 1969 que então ocasionou a vitória ao Sporting por 1-0. Por estas e por outras é que Carlos Pinhão, histórico jornalista de A Bola, descreveu em manchete o mítico guarda-redes leonino como “o Eusébio do Sporting”. Foi sem dúvida um dos melhores guarda redes portugueses de sempre.

De facto, Vítor Damas distinguia-se entre os postes pela garra, intuição, agilidade e elegância. Mas fora dos relvados diferenciava-se por uma erudição na época invulgar no meio: sabia exprimir-se como poucos colegas, e a determinada altura manteve até uma crónica regular no jornal do Sporting - um traço que para mim fazia toda diferença. 

Dizem que Damas era irreverente e que tinha "mau perder", que entre os postes era capaz do melhor e do pior de um jogo para o outro. Mas acontece que era um líder da equipa e que do coração sangrava verde e branco até  a última gota. Uma qualidade rara nestes tempos: foi desde menino que orgulhosamente envergou e dignificou a camisola verde e branca, pela qual toda a vida se bateu e com a qual morreu tornando-se um verdadeiro ídolo para várias gerações. Assim, decidiu viver para sempre. Quantos contratos milionários isso não vale, Rui Patrício?

 

 

Publicado originalmente aqui

 

O caminho

por João Távora, em 29.04.12

 

Sem repararmos, a tinta das paredes da casa, há muito escolhida num catálogo de infinitas tonalidades, empalidece aos poucos. As cortinas, os sofás, um dia imaculados num enxoval de expectativas, arruçaram-se com o uso. Uma torneira teima em pingar e não veda. E o tapete qualquer dia também já vai a restaurar. Na caixa das memórias, as fotografias perdem cor; e bilhetes com sentimentos vividos, cartas e postais ganham tons de pergaminho. São fragmentos de uma história já antiga.

O tempo, implacável, tudo desagrega e tudo corrompe. Habituámo-nos a festejar os aniversários dos miúdos todos os anos, sem contar que a existência passa sem que a possamos pausar. Para abarcarmos definitivamente aquela pele imaculada e aqueles olhos fundos e tão grandes, incondicionais, brilhantes de surpresa e expectativa, tão cheios como o céu, como a vida. O tempo escapara-se-nos entre rituais.
Vieram novos projectos, dias banais, aflições, trabalhos e tantas estações. Limpezas de primavera, roupas de Verão e roupas de Inverno. Mas ressuscitámos sempre o amor, ainda mais quando o frio apertava. Fazendo das misérias as forças, para não morrermos nem um bocadinho. Sempre atentos a juntar os pedaços, a compor e restaurar sempre o mesmo amor. Reinventando velhas harmonias, moldando uma obra divinal. Sem desistir da grande utopia de vencermos o tempo e o mal. Sem nunca renunciarmos a ser felizes e gente maior.

 

Texto reeditado. 

Visto de fora... "da caixa"

por João Távora, em 27.01.12

 

Por detrás duma aparentemente equilibrada apreciação à polémica da eliminação dos feriados, o editorial de hoje do jornal i da autoria da Ana Sá Lopes esconde algumas contradições que eu gostaria de aqui salientar.
A cronista defende um esvaziamento simbólico das duas efemérides, nomeadamente que a República, “é um dado adquirido e irreversível”, cujas comemorações “já não comovem ninguém”, e na mesma lógica, uma suposta minoria de monárquicos não justifica a continuidade do dia da Restauração da Independência. Estes dois argumentos confluem num surpreendente equívoco: então porquê o ribombante remate ao texto, com a afirmação de que, a confirmar-se a eliminação dos dois feriados civis, “a derrota da UGT foi mesmo em toda a linha”? Precisamente porque estamos no âmbito do simbólico é que esta conclusão me parece contraditória.
Mas no final de contas eu até entendo a avaliação da Ana: dispersados em diferentes partidos, prioridades e causas, tantas vezes concorrentes entre si, os monárquicos de facto raramente dão notícia, são gente pacata o que é uma clara desvantagem competitiva face aos poucos republicanos: não parecem ser capazes que matar ninguém, muito menos o chefe do Estado. Apesar disso parece-me um erro subestimar o seu número e o seu potencial. E depois está errado concluir que apenas existe “o que é notícia”, para mais se considerarmos os alvoroços pueris com que se preenchem as manchetes da espuma dos dias nos media de consumo. 

De resto a vida dá muitas voltas, e em 1907 a força e representatividade dos republicanos era pouco mais do que barulhenta, assim a modos como Bloco de Esquerda nos dias de hoje. Nessa altura nenhum analista ou cidadão informado se atreveria a prever o caminho vertiginoso que a História acabou tomando.
Finalmente uma palavra sobre a suposta “escandalosa submissão do governo à Igreja Católica”: até os comunistas do PREC aprenderam com a História (da 1ª República) que afrontá-la só serve para a fortalecer. A grande ameaça ao cristianismo está na decadência da Europa, e na sua negação de berço duma ética perene, valores ofuscados por uma alucinação colectiva de hedonismo estéril. Em sentido contrário, a expansão da Igreja de Cristo está, sempre esteve e estará, onde houver sofrimento humano e repressão, ou simplesmente existências inquietas, exigentes. 

A Dona Lurdes *

por João Távora, em 21.01.12

 

O meu prédio, o meu bairro, o meu mundo hoje despertou triste e mais pobre: a D. Lurdes morreu durante a noite no hospital. Vi-a sair uma destas manhãs frias para uma ambulância, pequenina e enregelada, levada numa cadeira de rodas. Não cuidei que fosse muito grave, algum tratamento quem sabe. Há pessoas que se instalam na nossa vida e que julgamos eternas.

Quase centenária, a minha vizinha morava no rés-do-chão, num esconso de arrecadação adaptado a residência. Chegada em 1975 na ponte aérea das ex-colónias instalou-se aqui em S. João com o marido, nove filhos e uma indómita força de viver. O seu homem não se refez do choque duma vida perdida do outro lado do oceano. Desistente, por entre as entregas de chamuças que a mulher fazia às centenas, passava o tempo à porta de casa a fumar com os olhos fixos em lado nenhum, conta quem o conheceu. Sem vontade, morreu cedo, e a D. Lurdes continuou obstinadamente a fazer chamuças e a criar os filhos que aos poucos foram indo às suas vidas.

A D. Lurdes vivia pouco mais do que sozinha com a modéstia que lhe permitia uma magra pensão de sobrevivência e um filho problemático, que só não conseguiu consumir a determinação e o amor da sua mãe. Ela era uma senhora muito, mesmo muito pequena mas só no tamanho, com pele escura e enrugada, muito curvada pelo peso duma vida arrancada a ferros. Inspirada numa resoluta Fé cristã, exibia com generosidade um dos sorrisos mais francos e bonitos aqui do bairro.

Quando nos encontrávamos logo me perguntava pelo “seu amigo”, referindo-se ao meu miúdo pequeno, com quem mantinha uma viva relação: a D. Lurdes era das poucas pessoas a quem o meu rebelde filhote cumprimentava de beijinho com boa vontade. Com a minha mulher, a D. Lurdes partilhava confidências, dores e contrariedades. Visitava-nos por vezes para nos dar umas chamuças, ou algum doce caseiro que teimava em manufacturar apesar das suas aflitivas limitações físicas. O seu sorriso, o seu “bom dia senhor João”, nas escadas ou à mesa do café saboreando a sua preciosa bica, vai fazer muita falta à nossa vida. A sua falta vai notar-se dramáticamente na preceta, no bairro… e na humanidade. Porque são estas pessoas que dão uma coluna vertebral e um sentido de rotação certo ao nosso mundo insano. 

D. Lurdes hoje juntou-se ao seu marido e aos  filhos que viu partir, algures onde com a infinita misericórdia de Deus finalmente descansará em paz.

 

* D. Lurdes é um nome fictício que utilizo para testemunhar uma pessoa e factos reais. 


Corta-fitas

Inaugurações, implosões, panegíricos e vitupérios.

Contacte-nos: bloguecortafitas(arroba)gmail.com



Notícias

A Batalha
D. Notícias
D. Económico
Expresso
iOnline
J. Negócios
TVI24
JornalEconómico
Global
Público
SIC-Notícias
TSF
Observador

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Comentários recentes

  • O apartidário

    Continuação Para esta manipulação do parlamento co...

  • O apartidário

    A 29 de Julho de 1976 o comunista José Rodrigues V...

  • Carlos

    Vou fazer uma lista com as asneiras, só as grossas...

  • balio

    Será necessária uma nova, delicada, definição de c...

  • anónimo

    As divisões territoriais históricas são diferentes...


Links

Muito nossos

  •  
  • Outros blogs

  •  
  •  
  • Links úteis


    Arquivo

    1. 2024
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    14. 2023
    15. J
    16. F
    17. M
    18. A
    19. M
    20. J
    21. J
    22. A
    23. S
    24. O
    25. N
    26. D
    27. 2022
    28. J
    29. F
    30. M
    31. A
    32. M
    33. J
    34. J
    35. A
    36. S
    37. O
    38. N
    39. D
    40. 2021
    41. J
    42. F
    43. M
    44. A
    45. M
    46. J
    47. J
    48. A
    49. S
    50. O
    51. N
    52. D
    53. 2020
    54. J
    55. F
    56. M
    57. A
    58. M
    59. J
    60. J
    61. A
    62. S
    63. O
    64. N
    65. D
    66. 2019
    67. J
    68. F
    69. M
    70. A
    71. M
    72. J
    73. J
    74. A
    75. S
    76. O
    77. N
    78. D
    79. 2018
    80. J
    81. F
    82. M
    83. A
    84. M
    85. J
    86. J
    87. A
    88. S
    89. O
    90. N
    91. D
    92. 2017
    93. J
    94. F
    95. M
    96. A
    97. M
    98. J
    99. J
    100. A
    101. S
    102. O
    103. N
    104. D
    105. 2016
    106. J
    107. F
    108. M
    109. A
    110. M
    111. J
    112. J
    113. A
    114. S
    115. O
    116. N
    117. D
    118. 2015
    119. J
    120. F
    121. M
    122. A
    123. M
    124. J
    125. J
    126. A
    127. S
    128. O
    129. N
    130. D
    131. 2014
    132. J
    133. F
    134. M
    135. A
    136. M
    137. J
    138. J
    139. A
    140. S
    141. O
    142. N
    143. D
    144. 2013
    145. J
    146. F
    147. M
    148. A
    149. M
    150. J
    151. J
    152. A
    153. S
    154. O
    155. N
    156. D
    157. 2012
    158. J
    159. F
    160. M
    161. A
    162. M
    163. J
    164. J
    165. A
    166. S
    167. O
    168. N
    169. D
    170. 2011
    171. J
    172. F
    173. M
    174. A
    175. M
    176. J
    177. J
    178. A
    179. S
    180. O
    181. N
    182. D
    183. 2010
    184. J
    185. F
    186. M
    187. A
    188. M
    189. J
    190. J
    191. A
    192. S
    193. O
    194. N
    195. D
    196. 2009
    197. J
    198. F
    199. M
    200. A
    201. M
    202. J
    203. J
    204. A
    205. S
    206. O
    207. N
    208. D
    209. 2008
    210. J
    211. F
    212. M
    213. A
    214. M
    215. J
    216. J
    217. A
    218. S
    219. O
    220. N
    221. D
    222. 2007
    223. J
    224. F
    225. M
    226. A
    227. M
    228. J
    229. J
    230. A
    231. S
    232. O
    233. N
    234. D
    235. 2006
    236. J
    237. F
    238. M
    239. A
    240. M
    241. J
    242. J
    243. A
    244. S
    245. O
    246. N
    247. D